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segunda-feira, 3 de março de 2014

O Código Neruda



 


Justiça chilena questiona versão de morte em decorrência de um câncer e testemunha-chave garante que o poeta foi assassinado 

Por Victor Farinelli 

Tenho pronta a minha morte, como uma roupa 
que me espera, da cor que eu gosto,
da extensão que inutilmente procurei,
da profundidade que necessito.

Quando o amor gastou sua matéria evidente
e a luta consome seus martelos
em outras mãos de acrescentada força,
vem a morte apagar os sinais
que foram construindo tuas fronteiras.

(trecho do poema A Morte, de Pablo Neruda)

Os versos acima foram escritos por um homem cuja morte está cercada por alguns mistérios nunca antes questionados, e que podem estar prestes a desmoronar. Sua biografia oficial diz que sucumbiu a um câncer em estado avançado e parecia que a morte havia apagado outros sinais, mas os novos indícios, surgidos nos últimos meses, demonstram que o tumor não gastou sua matéria de forma evidente, e a extensão, que ele diz ter inutilmente procurado, garante que as investigações terão a profundidade que se necessita. 
Pablo Neruda não morreu de câncer. 
Esta seria a principal revelação apresentada pelo expediente ROL 1038-2011, a partir da análise dos antecedentes clínicos disponíveis e dos primeiros exames revelados pela nova exumação de seus restos mortais, que, apesar de ainda não poderem apontar com exatidão a verdadeira causa, já descartaram a versão que se manteve como oficial durante quase quarenta anos. 
E como morreu, então, o vencedor do Prêmio Nobel de Literatura de 1971, que efetivamente sofria de câncer na próstata? 
A investigação judicial realizada pela Corte de Apelações de Santiago, liderada pelo promotor Mario Carroza (que também trabalha em outros 725 casos ocorridos na ditadura e recentemente reabertos, entre os quais se destacam o de Neruda, o do ex-presidente Salvador Allende e o do brigadeiro Alberto Bachelet, pai da ex-presidenta Michelle Bachelet), já dura sete meses, e conta com um testemunho-chave, que sustenta uma tese especialmente polêmica: Neruda teria sido assassinado pela ditadura que nascia com Pinochet à frente. 
Trata-se do taxista Manuel Araya, ex-militante da Juventude Comunista chilena durante o governo da Unidade Popular, e que havia sido designado pelo partido para ser o assistente pessoal do poeta quando este regressou ao seu país natal, em 1972, para apoiar o amigo Salvador Allende, que sofria forte pressão dos setores empresariais do país e da embaixada dos Estados Unidos. “Neruda foi envenenado por uma injeção que lhe aplicaram na Clínica Santa María, não tenho nenhuma dúvida de que a nova exumação confirmará o que estou dizendo”, garante o motorista. 
Como se chegou a este ponto crucial na história de uma das maiores referências da literatura ocidental contemporânea? Por que essa hipótese nunca foi discutida durante todos estes anos? E o mais intrigante: por que os mais interessados em apurar a verdade estão sendo questionados pela entidade criada para cuidar do legado do escritor?

Como morreu Pablo Neruda?

Neftalí Ricardo Reyes Basoalto, o homem por trás do pseudônimo Pablo Neruda, faleceu no dia 23 de setembro de 1973, às 22h30, numa cama da Clínica Santa María. A causa da morte, segundo o atestado de óbito registrado no mesmo dia do falecimento, seria a metástase de um câncer na próstata. Porém, horas depois desse registro, o diário El Mercurio, historicamente o de maior circulação no país, chega às bancas com a notícia, mas trazendo uma versão muito diferente: o poeta foi vítima de uma parada cardíaca, ocorrida depois que uma injeção de calmante provocou um choque que agravou seu estado.
A direção do Partido Comunista chileno já conhecia a versão do seu ex-militante Manuel Araya, mas precisava de alguma evidência mais concreta para poder pedir a reabertura do caso. “Além do El Mercurio, os demais jornais da cidade também reproduziram a versão da morte por parada cardíaca com aplicação de uma injeção, e o contraste com o escrito no atestado de óbito foi o primeiro indício concreto de que a versão de Araya fazia sentido”, explicou Eduardo Contreras, advogado do Partido Comunista, parte denunciante no processo.
Outro indício importante levantado por Contreras foi o fato de a Clínica Santa María, onde Neruda faleceu, surpreendentemente ter afirmado aos investigadores que não possuía a ficha médica do paciente mais ilustre. Segundo a lei chilena, as fichas médicas devem ser preservadas por pelo menos quarenta anos após a morte do paciente, prazo que ainda não se cumpriu, neste caso. “Tenho certeza que o arquivo da clínica deve manter algumas fichas de mais de 50 anos, e a que estamos pedindo ainda não tinha 38 quando eles nos deram essa resposta”, sugere Contreras.
Além disso, a de Pablo Neruda não foi a única morte sob suspeita ocorrida dentro da Clínica Santa María, durante a ditadura de Pinochet. Na tarde de 22 de janeiro de 1982, o ex-presidente chileno Eduardo Frei Montalva, antecessor de Salvador Allende, perdeu a vida, segundo o primeiro laudo a respeito, em decorrência de uma infecção bacteriana. A família Frei jamais acreditou nessa versão, e a nova exumação feita pelo Serviço Médico Legal encontrou resíduos de tálio e de mostarda sulfúrica na estrutura óssea, o que seria um claro indício de envenenamento. As recentes investigações do caso também constataram que os médicos Helmar Rosenberg e Sergio González, que não trabalhavam na Clínica Santa María, entraram no quarto de Frei Montalva minutos após o falecimento, escoltados por agentes não identificados, e realizaram uma autópsia não autorizada pela família, na qual foram retirados todos os órgãos do tórax e do abdômen, os quais não foram conservados.
Segundo o promotor Mario Carroza, que lidera as investigações sobre a morte de Neruda, sem deixar de considerar as diferentes circunstâncias em que vivia o país nos dois casos (“Neruda morreu pouco depois do golpe, quando ainda não havia uma estrutura montada para perseguir opositores, embora eles já estivessem sendo perseguidos”, lembra o promotor), as descobertas do Caso Frei Montalva poderiam levar a elementos importantes para o caso que investiga, mas antes seria preciso confirmar com exatidão a causa da morte do poeta. “Os restos mortais de Neruda foram muito mais reduzidos que os de Frei e, para podermos encontrar as coincidências do caso, precisaríamos ter uma prova concreta de que envenenamento, o que ainda não foi determinado pelo Serviço Médico Legal”, especificou Carroza.
O expediente ROL 1038-2011, por enquanto, somente descarta a possibilidade de que a morte tenha sido produto de metástase do câncer. O relatório médico anexado ao expediente foi realizado pelo Departamento de Criminalística da Polícia de Investigações do Chile e enviado à Brigada de Direitos Humanos no dia 16 de agosto de 2011.
No informativo Nº 75 do relatório médico se encontram as análises de 13 exames médicos realizados no poeta nos meses anteriores a sua morte, acompanhadas de uma carta escrita e assinada pelo médico pessoal de Pablo Neruda, Guillermo Merino, na qual ele informa ao médico urologista Vargas Salazar que o tumor que ele apresentava na próstata era benigno e não maligno. Porém, o mesmo informativo destaca exames referentes a um tratamento de radioterapia com cobalto, realizado entre os meses de março e abril de 1973, junto com um parecer que determina que esse tipo de tratamento radioterápico é recomendado somente para casos de tumores malignos, e não benignos.
Finalmente, o ponto decisivo do expediente está nas duas afirmações principais contidas no anexo “Conclusões Médico-Criminalísticas”, onde se informa, no capítulo 1: “não dispomos de exame objetivo capaz de afirmar com certeza a causa da morte do senhor Pablo Neruda”. Porém, o capítulo 4 indica: “quanto ao exame que poderia orientar a presença de metástase, estes apontaram resultados normais, o que poderia significar, entre outras possibilidades, que não há tumor maligno, ou que este estaria circunscrito somente à glândula, ou se normalizou devido ao tratamento radioterápico. Como não contamos com os antecedentes clínicos do paciente, não é possível indicar uma conclusão entre essas alternativas”.

Quem quer saber a verdade?

Era 12 de maio de 2011, dias depois de a Corte de Apelações anunciar o início das investigações sobre a causa da morte do poeta, a Fundação Neruda – administradora dos museus instalados nas três casas que constavam de seu patrimônio no momento da morte – emitiu uma curiosa nota condenando a reabertura do caso. “Não existe evidência alguma que indique que Pablo Neruda tenha morrido por outra razão que não o câncer avançado do qual se queixava há anos (…) Não parece razoável construir uma nova versão da morte do poeta com base somente na opinião de seu chofer, o senhor Manuel Araya, que insiste em sua teoria, porém sem nenhuma outra prova além do seu próprio parecer. Consideramos mais sérios e confiáveis os testemunhos das pessoas que estiveram com Neruda nos últimos dias de sua vida”, dizia o comunicado.
Quem eram essas “pessoas que estiveram junto a Neruda nos últimos dias de sua vida”, a quem a Fundação se refere? Segundo o expediente ROL 1038-2011, na página 113 (de um total de 209) figuram dezenas de depoimentos que negam de forma categórica a possibilidade de que Neruda tivesse morrido por outra razão que não o câncer. Curiosamente, todas essas testemunhas estão vinculadas à Fundação Neruda.
A instituição foi fundada e é até hoje presidida pelos irmãos Agustín e Ainda Figueroa. Segundo Manuel Araya, “eles se apropriaram do patrimônio de Neruda com a ajuda de Pinochet, e levaram a senhora Matilde (Urrutia, viúva do poeta) a lhes entregar um testamento que validasse essa entrega, para poder fazer o que fazem hoje, tratar o legado dele como um negócio”. Os museus administrados pela Fundação Neruda cobram um preço de entrada equivalente a R$ 10, além do arrecadado pela loja de souvenires, que vende livros, camisetas, bolsas, CDs e DVDs, entre outros artigos relacionados com o autor. O ex-assistente pessoal de Neruda alega que ele tinha um testamento, que teria sido ocultado pelos agentes da ditadura, no qual entregava todo o seu patrimônio, incluindo as três casas que funcionam hoje como museu e quase tudo o que é exibido dentro delas, aos trabalhadores mineiros, à Central Única dos Trabalhadores e ao Partido Comunista Chileno. A Fundação Neruda defende a tese de que o escritor nunca teve um testamento reconhecido.
Com ou sem testamento reconhecido, o fato é que Pablo Neruda, depois de morto, já não tem mais “pronta” sua morte, que está sendo reescrita. Ou, quem sabe, este capítulo póstumo de sua história reivindicada seja um breve renascimento, em busca da verdade que lhe permita, finalmente, descansar em paz. Como na primeira estrofe do poema acima citado:

Renasci muitas vezes, das profundezas
de estrelas derrotas, reconstruindo o fio
das eternidades que povoei com minhas mãos,
e agora vou morrer, sem nada mais, com a terra
sobre meu corpo, destinado a ser terra.


A frustrada fuga de Pablo Neruda

A versão do assistente pessoal sobre os últimos doze dias de vida do poeta

Por Victor Farinelli

“Temos que ter pressa! Pablo disse que lhe aplicaram uma injeção na barriga, não está entendendo nada e pediu que voltássemos com urgência”, implorava Matilde Urrutia a Manuel Araya, após falar ao telefone com o marido. Era 23 de setembro, uma fria e nublada, porém não chuvosa, tarde em Isla Negra, no litoral central chileno. O país passava por dias cinzentos em todos os sentidos, e aquela chamada iniciava o desfecho de uma das mais obscuras histórias vividas naquele então.
Neruda não costumava ir para a cama cedo, e doze dias antes de sua última ligação, na madrugada que iniciava o fatídico 11 de setembro de 1973, sequer pode dormir. Por volta das 4h, no mesmo casarão com vista para o mar, em Isla Negra, sentado junto à mesa da cozinha, acompanhou, através de uma emissora de rádio argentina, as primeiras notícias sobre obstruções militares nos caminhos fronteiriços entre Santiago e Mendoza, e tropas que partiam do sul do Chile em direção à capital.
O poeta havia regressado a seu país natal em novembro de 1972, quando abandonou a embaixada chilena na França para apoiar o governo de seu amigo Salvador Allende, que enfrentava forte resistência por parte de empresários e fazendeiros, que, por sua vez contavam com forte ajuda, inclusive financeira, da embaixada estadunidense. O Partido Comunista, do qual Neruda era militante histórico, havia então designado o jovem Manuel Araya como seu assistente pessoal, um cargo que acumulava funções de assessor administrativo, mensageiro, motorista e, principalmente, guarda-costas. “Eu o achava muito chato, havia visto palestras dele no partido, onde falava por horas, e dava sono. Os meses em que convivemos juntos foram os melhores da minha vida, embora, por causa deles, os meus anos posteriores terminassem sendo os mais dolorosos”, resumiu o hoje taxista aposentado, que naquela madrugada estava sentado ao lado do seu protegido, escutando os movimentos que antecediam o ataque ao Palácio de La Moneda.
Após as notícias da emissora argentina, todas as comunicações por rádio e telefone foram cortadas, e o que aconteceria depois era previsível, pelo menos para Neruda, que já esperava um cenário que tentasse impedir Allende de anunciar o plebiscito, com o qual buscaria o respaldo popular para a continuação de sua revolução democrática. O presidente chileno visitava Neruda semanalmente, no casarão de Isla Negra, para pedir conselhos, e também semanalmente era advertido pelo amigo sobre o golpe de Estado, que este considerava iminente. A última visita coincidiu com os alertas mais enfáticos do anfitrião, e teria sido dias depois da nomeação do general Augusto Pinochet como comandante das Forças Armadas – “não creio que seja barco para este porto”, teria dito o poeta sobre o futuro ditador, segundo Araya.
A principal preocupação durante a última visita também ditou o suspense daquela feia manhã: poderia Salvador Allende sair do palácio com vida? O isolamento, que se tornou ainda maior ao meio-dia, com tropas militares cercando o balneário onde se localizava o casarão e avisando os residentes que estava proibido circular pelas ruas ou pela praia, parecia ser um sinal, e não dos melhores.
Araya sentiu que a vida de seu protegido também corria perigo, convicção que se confirmou quando o próprio poeta tomou sua mão esquerda e para perguntar de forma emocionada:
- Companheiro, você não vai me abandonar, vai?
- Jamais, meu capitão! E se disparam contra o seu peito, eu me ponho adiante para receber a bala por você – teria sido a resposta, que emocionou seu mentor.
O jovem Manuel Araya aprendeu muito durante aqueles dez meses em que conviveram juntos, inclusive exercícios de estímulo à expressão poética. As aulas, após aquele juramento e durante todo o resto do dia, foram de história. Neruda conheceu seu primeiro golpe militar quase quarenta anos antes daquele, trabalhava no consulado chileno em Madri quando estourou a Guerra Civil Espanhola. Mesmo estando isolado em Isla Negra, imaginava as similitudes entre os dois eventos, e recriava suas maiores penas (comparou a dor da presumível morte de Allende à que sentiu quando soube do assassinato do também amigo Federico García Lorca pelas mãos do exército nacionalista espanhol) e também suas glórias (recordou sua gestão no projeto Winnipeg, que culminou com o resgate de mais de 2 mil refugiados espanhóis, que partiram da França rumo ao Chile, para fugir da ditadura franquista), vividas naqueles anos.
Ao terminar o relato, alertou o seu discípulo: “quando eles pegarem você, porque cedo ou tarde, eles vão te pegar, você terá que ser valente, sua missão será a de não revelar nada a ninguém, mesmo que isso custe a sua vida”, e terminou com uma mão sobre o seu ombro, que fez aquilo parecer reconfortante, apesar do tom assustador daquelas palavras.
Os três dias posteriores foram de tensão. Os sinais de rádio chagavam novamente ao casarão, mas o telefone funcionava somente para receber ligações. Dentro da casa, com Neruda, estavam sua esposa Matilde, sua meia irmã Laura, Manuel Araya e um grupo de mais ou menos dez empregados. A ânsia por algum contato com seus companheiros de partido não gerara nenhum intento mais concreto, mas logo descobriram que os militares que rodeavam a Isla Negra supunham algo parecido.
No dia 14, no começo da tarde, os soldados invadem a residência em busca de possíveis dirigentes do Partido Comunista que pudessem estar escondidos. Aceitaram poupar os anfitriões do incômodo e os deixaram tranquilos no aposento principal, enquanto Araya os guiou por toda a casa, onde encontraram somente jardineiros, cozinheiras e enfermeiras.
Aquela invasão despertou em Neruda a necessidade de uma reação mais concreta contra o golpe. Sentiu que sua própria vida poderia correr perigo, mas principalmente a dos que o cercavam. Decidiu que, para poder lutar contra aquele regime, precisava estar longe dele. No dia seguinte, todos os criados foram dispensados, recebendo os salários correspondentes a todos os últimos meses do ano. Sua irmã também conseguiu uma carona de uma família vizinha para retornar a Temuco. Manuel Araya foi o único que contou com a confiança do casal e pôde se manter ao seu lado naquele momento, e também a única testemunha dos primeiros movimentos para o plano de fuga.
O telefone do casarão voltou a estar totalmente mudo, o que obrigou o poeta a ir até uma hospedaria próxima, para fazer os primeiros contatos com seus colegas diplomatas. “Ele sempre manteve boas relações e recebia visitas frequentes de pessoal de todas as embaixadas instaladas no país, exceto com a dos Estados Unidos, a qual ele sabia que era o quartel general do golpe”, ressaltou Araya. Manteve conversações com vários deles, e também com o cardeal Raúl Silva Henríquez, a quem o poeta costumava qualificar como “o meu melhor contato com Deus”, e obteve respostas positivas de Gonzalo Martínez Corbalá, embaixador do México no Chile, que havia acabado de retornar de seu país, onde havia levado dezenas de refugiados chilenos, entre os quais se encontrava Hortensia Bussi, viúva de Salvador Allende. Corbalá trazia uma ordem expressa do presidente mexicano Luis Echeverría, para oferecer a Neruda estadia em seu país por tempo indeterminado, na qualidade de convidado de honra.
Os planos para a fuga foram feitos desde o dia 17, com mais pressa que cuidado. Neruda acreditava que os militares, por piores que fossem, respeitariam as autoridades diplomáticas. Deu entrada no pedido de salvo-conduto respaldado pela embaixada mexicana, e logo foi atendido. Acreditava que com ele em mãos, não haveria maiores obstáculos em seu caminho: “mal desço do avião e já denuncio esses tiranos para toda a comunidade internacional”, teria garantido diante de Araya e do embaixador Martínez Corbalá.
Logo, surgiu um problema crucial. Neruda, de 69 anos, sofria de câncer na próstata, detectado havia mais de um ano. Quando voltou ao Chile após ser embaixador na França, levou consigo uma bateria de exames que permitissem seguir fazendo o acompanhamento da doença em seu país natal. Com o salvo-conduto em mãos, e a viagem marcada para o dia 24 de setembro, Neruda foi levado à Clínica Santa María, em Santiago. “Sentiu dores no dia 20, e já não tinha as enfermeiras particulares por perto, mas não era um quadro grave, e o levamos para a clínica somente porque achávamos que era o lugar mais seguro onde poderia esperar pelo dia do embarque para o México”, relatou Manuel Araya, que enfatizou sua discordância da versão oficial, de que a morte do poeta teria sido causada pela metástase daquele câncer, dizendo que não foi a única testemunha que o viu ativo e falante durante os doze dias após o golpe e nas 48 horas finais na clínica, ressaltando também que o oferecimento do presidente mexicano comprovaria sua tese. “Quem concederia a um moribundo um convite que o sujeitaria a uma viagem de quase 15 horas, que provavelmente seria fatal”?
Veio então o fatídico 23 de setembro. Naquela manhã, um dia após sua internação, Neruda entregou a seu assistente uma lista de pertences que precisaria levar ao México, e que ainda estariam no casarão de Isla Negra (constaria na lista, por exemplo, os originais da incompleta obra póstuma do autor, a autobiografia Confesso que Vivi). Matilde Urrutia, esposa do poeta, decidiu acompanhar o jovem, porque saberia encontrar mais facilmente a maior parte dos itens listados. “Foi o erro que nos custou a vida dele, jamais deveríamos tê-lo deixado sozinho”, lamenta hoje Araya.
Chegaram ao casarão pouco antes do meio-dia. Matilde reuniu rapidamente os itens requeridos pelo marido. O Citroën prateado do poeta já estava quase pronto para o retorno a Santiago, quando o menino de recados da hospedaria próxima ao casarão chegou correndo, avisando que haviam ligado da clínica, e que era urgente.
Matilde ligou para o marido do telefone da hospedaria. Escutou um confuso Pablo Neruda dizer que uma pessoa havia entrado no quarto e aplicado uma injeção na altura do estômago, e que após aquele procedimento suas dores haviam piorado sensivelmente. Araya diz que retornou a Santiago o mais rápido que pôde, ao lado da angustiada esposa.
Chegaram à clínica pouco depois das seis da tarde. Neruda suava de febre e fazia perguntas a respeito da injeção que lhe haviam aplicado – reportagem da Revista Ñ, da Argentina, traz uma meia confissão do médico Sergio Draper, que trabalhava na Clínica naquela época: “acho o cúmulo estar constantemente sob suspeita. Não cabia a mim atendê-lo (a Neruda), mas a enfermeira de turno me disse que ele se queixava de muitas dores, e eu disse para ela aplicar o medicamento recomendado pelo seu médico pessoal, se não me engano foi dipirona. Fui somente um interlocutor”.
Minutos depois, um médico da clínica pediu a Matilde que providenciasse um remédio específico para conter a febre do ilustre paciente. Manuel Araya, que diz não poder identificar o médico que fez o pedido, foi escalado para a missão, após ter deixado os pertences de Neruda em mãos do embaixador mexicano Martínez Corbalá, que já estava na clínica, onde permaneceria até o último verso do poeta.
O endereço dado pelo médico ficava do outro lado da cidade. O assistente seguiu a toda velocidade, cruzando as barreiras militares instaladas em diversos pontos da capital chilena. Araya lembra somente que estava numa avenida do setor sudoeste quando percebeu que dois carros, que ele não viu de onde surgiram, o cercaram pelos dois lados e fizeram sanduíche do Citroën prateado. Percebeu tarde demais que tudo era uma armadilha, desde o pedido para buscar o remédio, e naquele momento, já não havia possibilidade de resistência. Os golpes começaram antes mesmo de entrar no veículo dos sequestradores, e foram piores depois que lhe puseram o capuz, que só foi retirado quando ele estava numa galeria do Estádio Nacional, entre milhares de outros presos políticos.
Araya não sabe a que horas chegou ao Estádio Nacional. Não sabe dizer se foi antes ou depois da morte de Neruda, registrada às dez e meia da noite. Soube da morte do poeta cerca de seis dias depois, quando o cardeal Silva Henríquez, um dos melhores amigos do poeta, foi ao estádio interceder por ele e por muitos outros colaboradores do governo de Allende. A notícia o devastou tanto quanto a tortura diária que sofria nos corredores do estádio. Foram quarenta dias de socos, pontapés, golpes de corrente e pontas de cigarro queimadas em seu corpo (“me pediam para confessar que era cubano, ou que tinha ligação com a embaixada de Cuba, que assim me libertariam, mas eu sabia que aquela confissão forçada seria para justificar o meu assassinato”), até que o cardeal conseguiu que o soltassem.
O cardeal também conseguiu um emprego de taxista para Araya, que chegou a trabalhar como motorista de ônibus, durante os anos 1990, para depois retomar o táxi, há cerca de cinco anos. Apesar de os problemas econômicos terem sido uma constante em sua vida desde a saída do Estádio Nacional, não foram os maiores tormentos sofridos por ele desde então. “Há mais de vinte anos, eu sonho frequentemente com Neruda, e sempre o mesmo sonho, ele sentado numa cama como a da clínica, me pedindo que denuncie o assassinato, que revele a verdade sobre a sua morte”, diz com um tom algo atormentado.
Porém, sua primeira tentativa de restabelecer a verdade se deu antes dos primeiros sonhos com o poeta. Foi quando se encontrou com a então viúva Matilde Urrutia, em 1980, que na época vivia em um hotel no centro de Santiago. Relembraram todo o acontecido entre o dia do golpe e o da última viagem a Isla Negra. Matilde contou o que houve na clínica depois da saída sem retorno de Araya, que Neruda seguiu reclamando de dores até o último minuto (versão confirmada pelo embaixador Martínez Corbalá, em entrevista ao jornal mexicano La Jornada, de 28 de maio de 2011), contrariando a versão de que teria estado catatônico durante suas últimas horas de vida. O jovem, por sua vez, explicou a armadilha que o impediu regressar aquele dia.
Diante daquela versão, Araya propôs à viúva que denunciassem juntos o assassinato do poeta, mas se deparou com uma surpreendente negativa por parte dela, que teria alegado medo de que os agentes da repressão tomassem dela o pouco que lhe restava. “Tenho uma mágoa muito grande daquela mulher até hoje”, confessa o taxista, “ela poderia ter esclarecido isso ainda durante a ditadura, e não o fez por medo”. Em seu livro de memórias Minha vida com Pablo Neruda, Matilde Urrutia menciona Manuel Araya carinhosamente em diversos trechos relacionados aos últimos dias do marido. Em um deles, diz: “era a única pessoa que tínhamos por perto nessas últimas horas, para nos ajudar. Pobre garoto, que vagabundeava com Pablo por mercados e lojas de antiguidades, desapareceu com o nosso carro, e com ele eu perdia a companhia que tinha em todas as horas daqueles dias difíceis”.

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