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quinta-feira, 30 de janeiro de 2014

O Controle de Nossas Vidas: Liberdade, Soberania e Outras Espécies em Extinção - parte final

Por NOAM CHOMSKY

Adaptação da conferência proferida em 26/02/2000 no Auditório Kiva, em Albuquerque, Novo México, por ocasião do 20º aniversário do IRC (do inglês Inter Hemisferic Research Center, ou Centro de Pesquisas Inter-hemisféricas), do qual Chomsky faz parte no quadro de Diretores, sobre globalização político-econômica.

Às vezes, as lições do passado se reescrevem mais cuidadosamente e em um tom mais brando. Percebe-se hoje uma torrente de autocomplacência quando do nosso êxito em inspirar a onda de democracia nos países dependentes da América Latina. Este tema foi tratado mais cuidadosamente em uma revista acadêmica por um especialista, Thomas Carothers, que escreve, tal como ele mesmo disse, a partir de uma perspectiva interna, já que trabalhou na adminstração Reagan, no programa de fortalecimento da democracia do Departamento de Estado. Carothers crê que Washington tinha boas intenções, mas reconhece que, na prática, a administração Reagan procurou manter uma ordem mínima em sociedades não muito democráticas e evitar mudanças baseadas no populismo e, como seus predecessores, adotou políticas pró-democráticas como meio de retirar a pressão às tentativas de mudança mais radicais, mas inevitavelmente buscou apenas mudanças democráticas de baixo perfil, que não puseram em risco as tradicionais estruturas de poder das quais os EUA têm sido aliados há muito tempo, para se ser mais exato.
O mesmo Carothers se mostra insatisfeito com o resultado, mas descreve o que ele mesmo denominou crítica liberal, débil em seus fundamentos. Tal crítica deixa os velhos debates sem solução por causa de sua perene debilidade, que consiste em não oferecer nenhuma alternativa à política de restauração das estruturas tradicionais de poder, neste caso mediante o terror assassino que deixou cerca de duzentos mil mortos durante os anos 80 e milhões de refugiados, feridos e órfãos em sociedades devastadas. De novo surge a malfadada frase: NÃO HÁ ALTERNATIVA.
O mesmo dilema aparece de outro lado do grupo político. O principal especialista em América Latina do presidente Carter, Robert Pastor, encontra-se distante desta visão pacífica. Explica em um interessante livro porque a administração Carter teve que apoiar o regime corrupto e assassino de Somoza (N.T.: ditador da Nicarágua no período de 1936/1956) até seu amargo final, quando até as tradicionais estruturas de poder deram as costas ao ditador. A administração Carter teve que tentar manter a guarda nacional, formada e treinada pelos EUA, e que estava atacando a população “com tal brutalidade que uma nação normalmente reserva para seus inimigos”, escreve. Isso ocorreu aplicando-se o princípio de que NÃO HÁ ALTERNATIVA. Eis aqui a razão: “os Estados Unidos não queriam controlar a Nicarágua e nem outros países da região, tampouco queria resultados que escapassem ao seu controle. Queria que a Nicarágua atuasse independentemente, exceto se isso afetasse adversamente os interesses dos EUA”. Assim, em outras palavras, os latinoamericanos seriam livres para atuar de acordo com seus desejos, livres para eleger, a não ser que se inclinassem por opções indesejadas, em cujo caso [os EUA] seriam obrigados a restaurar as estruturas tradicionais de poder mediante violência, se necessário. Esta é a face mais progressista e liberal deste grupo político.
Há vozes fora do grupo, não vou negá-lo. Por exemplo, há uma ideia segundo a qual as pessoas deveriam ter direito a participar das decisões que continuamente modificam a essência de seu modo de vida, que não vejam suas esperanças se fecharem cruelmente dentro de uma ordem global, na qual o poder político e financeiro se concentra enquanto que os mercados financeiros ficam a flutuar sem rumo, com devastadoras consequências para os pobres, sem contar a manipulação das eleições e os aspectos negativos considerados completamente irrelevantes pelos poderosos. 
Por que há tal grau de consenso no qual a América Latina, e, por extensão, o mundo, não estão autorizados a fazer uso de sua soberania, ou seja, de tomar o controle de suas vidas? Em nível global, analogamente, é o medo intrínseco da democracia. De fato, esta pergunta é com frequência formulada de modos distintos; em primeiro lugar, no conjunto de documentos internos de que dispomos (estamos em um país livre, dispomos de um amplo registro de documentos sem classificação, alguns deles muito instrutivos). Há um argumento fidedignamente ilustrado como um dos casos mais importantes, numa conferência na qual os EUA, em 1945, passaram a impor o que se denominou Carta Econômica para as Américas, e que constituía uma das pedras angulares do mundo pós-guerra então vigente. A Carta fazia um chamamento para acabar com o nacionalismo econômico (ou seja, a soberania) em todas as suas formas. Os latinoamericanos deveriam evitar o que se denominou desenvolvimento industrial excessivo que competisse com os interesses dos EUA, ainda que pudessem proceder com um desenvolvimento complementar. Desta forma, o Brasil, por exemplo, poderia produzir aço de baixo custo que não interessasse às empresas norteamericanas. Era crucial “proteger nossos recursos”, tal como escreveu George Kennan, ainda que isso precisasse de Estados de polícia.
Washington teve problemas ao impor a Carta. No Departamento de Estado, internamente, havia sido deixado bem claro: os latinoamericanos se equivocaram na sua escolha. Eles fizeram chamamentos para implementar políticas desenhadas para melhorar a distribuição de renda e para aumentar o nível de vida das massas e perceberam que os primeiros beneficiários a ser convencidos do desenvolvimento de recursos de um país são a própria população, não os investidores norteamericanos. Para os EUA, isso era inaceitável, pois o exercício da soberania não se podia permitir. Os latinoamericanos podiam ser livres, mas deveriam acertar na escolha.
Um exemplo disso ocorreu na Guatemala, que teve um breve interlúdio de democracia, intercalado por um golpe de estado [arquitetado pelos EUA]. A explicação um tanto exótica dada aos cidadãos foi de que a intervenção americana foi em defesa daquele país contra os russos. Em âmbito interno, entretanto, o panorama era outro: os programas econômicos e sociais do governo eleito estavam de acordo com as aspirações dos trabalhadores e campesinos, inspiravam lealdade e defendiam os interesses da maior parte dos guatemaltecos mais conscientes. Para “piorar” [na visão americana], o governo da Guatemala tornou-se uma ameaça crescente para a estabilidade de Honduras e El Salvador. A reforma agrária era uma poderosa arma de propaganda, seus amplos programas sociais de ajuda aos trabalhadores e campesinos, em uma luta vitoriosa contra as classes altas e as grandes empresas estrangeiras, tinham grande destaque entre a “vizinhança” centroamericana, onde ocorriam condições similares. E assim a “solução militar” foi implantada durante quarenta anos, deixando a mesma cultura de terror que em seus vizinhos centroamericanos.
O mesmo aconteceu em Cuba, quando os EUA tomaram secretamente a decisão de depor seu governo em 1960, com a mesma argumentação. A explicação foi dada pelo historiador Arthur Schiesinger, que resumiu para o então presidente Kennedy o estudo de uma missão na América Latina em um informe secreto. A ameaça cubana, segundo a missão, consistia na “difusão da ideia de que o próprio Fidel Castro solucionaria seus assuntos internos”. Isso era uma enfermidade que poderia afetar o resto da América Latina, explicou Schiensinger, onde “os pobres e excluídos”, ou seja, a quase totalidade da população, “estimulados pelo exemplo da Revolução Cubana, estão exigindo oportunidades para uma vida decente”. Assim, alguma coisa tinha de ser feita, como: “que tal a conexão soviética?” O informe mencionava: “Enquanto isso, a União Soviética se fez mostrar, concedendo grandes empréstimos para o desenvolvimento e apresentando-se como modelo a ser seguido para se alcançar a modernização em somente uma geração”. Esta era a ameaça. A ameaça de tomar o controle de suas vidas, e devia ser destruída mediante terrorismo e estrangulamento econômico, tal como ainda se faz hoje em dia. Tudo isso é totalmente independente da Guerra Fria. Seguramente hoje, tudo é óbvio, sem mencionar um documento secreto sequer.
As mesmas preocupações do pós-guerra fria levaram ao rápido desmantelamento do breve experimento democrático no Haiti, pelos presidentes Bush e Clinton, como continuação de antigas intervenções.
Estas mesmas preocupações também pairam no fundo de acordos comerciais, como o NAFTA (N.T.: para fins didáticos, NAFTA é acrônimo de North América Free Trade Agreement, ou Tratado Norte-Americano de Livre Comércio, criado em 1993 e iniciado a partir de um acordo de livre comércio estabelecido entre Estados Unidos, México e Canadá, a fim de fazer frente à União Européia), por exemplo. Vale a pena recordar que, quando da sua implantação, a propaganda pintava um quadro maravilhoso para a classe trabalhadora dos três países-membros. Estas ideias foram discretamente abandonadas pouco depois, quando se percebeu do que se tratava. O que era óbvio desde o princípio foi finalmente aceito. O objetivo era adequar o México às reformas dos anos 80, que vieram a reduzir drasticamente os salários e enriqueceram um pequeno setor de investidores estrangeiros. As preocupações de fundo foram articuladas em uma conferência em Washington sobre estratégias de desenvolvimento na América Latina, em 1990. A advertência foi que “uma democracia aberta colocaria à prova a aposta de emergir um governo mais interessado em desafiar os EUA em aspectos econômicos e nacionalistas”. Frise-se que é a mesma ameaça de 1945, desde então superada, submetendo o México a obrigações derivadas de tratados. Estas mesmas razões permanecem após meio século de torturas e terror, não somente no hemisfério ocidental. Encontram-se também no núcleo destes acordos os direitos dos investidores, que vêm sendo impostos sob essa forma específica de globalização, delineada pela ligação de poder estado-empresas.
Voltemos ao ponto de partida: a tão contestada questão da liberdade e dos direitos, e consequentemente da soberania que disso deriva. Seria [uma questão] inerente às pessoas comuns ou somente àquelas ricas e privilegiadas? Ou inclusive a abstrações como as empresas, o capital, ou os estados? No século XX, a ideia de que tais entidades têm direitos especiais sobre as pessoas foi defendida com ênfase. Os exemplos mais proeminentes são o bolchevismo, o fascismo e a ideia de empresa privada, que constitui uma forma de tirania privatizada. Dois destes sistemas colapsaram. O terceiro está vivo e progredindo sob o manto de NÃO HÁ ALTERNATIVA ao emergente sistema de mercantilismo empresarial de estado disfarçado de eufemismos como globalização ou livre mercado.
Há um século, durante os primeiros estágios do avanço do poder por parte das empresas na América Latina, a discussão sobre estes temas era bastante aberta. Os conservadores denunciaram o processo, descrevendo-o como um “retorno ao feudalismo” e “uma forma de  comunismo”,  o  que  de  certa  forma  não  é  uma  analogia  inapropriada.  As origens intelectuais eram similares, baseadas na ideia neohegeliana (N.T.: retorno ao idealismo romântico, ocorrido na Inglaterra, Itália e América, no final do século XIX e início do século XX, que tem como tese fundamental a identidade entre finito e infinito, a redução do homem e do mundo da experiência ao absoluto) de direito das organizações abertas, juntamente com a crença na necessidade de se ter uma administração centralizada dos sistemas caóticos, como os mercados, que estavam totalmente fora de controle. Vale a pena assinalar a ideia de que, dentro do que hoje se denomina “economia de livre comércio”, uma parte muito grande das transações comerciais (denominada de comércio para despistar), provavelmente 70% destas, de fato se fazem dentro de instituições gerenciadas centralizadamente, entre empresas e entre alianças empresariais. Isso tudo sem se levar em conta outras formas de distorções radicais do mercado.
A crítica conservadora (que nem mais existe) foi acolhida pela ala liberal-progressista no início do século XX , sendo talvez seu defensor mais renomado John Dewey, importante filósofo social norteamericano, cujo trabalho centrou-se em temas voltados à democracia. Sustentou que as formas democráticas têm menor significância quando a vida do país (produção, comércio, meios de comunicação) está dominada por tiranias privadas em um sistema que ele denominou “feudalismo industrial”, e nele a classe trabalhadora está subordinada ao controle dos dirigentes e a política se tornou a “sombra das grandes empresas sobre a sociedade”. Assinalemos que ele estava articulando ideias que eram lugar-comum entre a classe operária alguns anos atrás. O mesmo ocorreu quando do seu chamado à eliminação, à substituição do feudalismo industrial pela democracia industrial autogestionada.
É interessante notar que os intelectuais progressistas que se mostraram a favor do processo de avanço do poder pelas empresas, também estiveram mais ou menos de acordo com esta descrição da situação. Woodrow Wilson, por exemplo, escreveu que “a maior parte dos homens são empregados das grandes empresas”, que atualmente constituem “a maior parte dos negócios do país”, em uma América [diga-se EUA] muito diferente da anterior, que já não é um lugar de empreendedores individuais, de oportunidades individuais e de progressos individuais”; na nova América que surge, “pequenos grupos de homens controlam grandes empresas, ostentam o poder, o controle sobre a riqueza, as oportunidades de negócio do país”, tornando-se “rivais do mesmo governo”, e minando a soberania popular, exercida através de um sistema político democrático.
Observemos ainda que isso não foi escrito em apoio ao processo. Descrevia o processo como talvez desafortunado, mas necessário, alinhando-se em particular com o mundo dos negócios por trás das destrutivas falhas de mercado dos anos anteriores, que convenceram o mundo dos negócios e os intelectuais progressistas de que se deveria administrar os mercados e regular as transações financeiras.
Questões similares estão hoje em voga no cenário internacional. Por exemplo, a reforma da arquitetura financeira e assuntos similares. Há um século, as empresas tinham garantido os direitos das pessoas através de um ativismo judicial radical, uma violação extrema dos princípios liberais clássicos. Foram, dessa forma, liberadas de antigas obrigações de se restringirem a atividades empresariais específicas para as quais tinham autorização. E ainda, em uma importante mudança de rumo, os juízes negociaram seu poder em favor dos acionistas, identificando-se em uma parceria com o controle centralizado  e  com a  pessoa jurídica. Aqueles que conhecem a história do comunismo reconhecerão que este processo é muito similar àquele muito prontamente predito pelos críticos de esquerda, marxistas de esquerda e críticos anarquistas do bolchevismo, gente como Rosa Luxemburgo, que advertiu com bastante antecedência que a ideologia centralizadora deslocaria o poder da classe trabalhadora para o Partido, para o Comitê Central, e logo para o líder máximo, tal como ocorreu pouco depois da conquista do poder estatal em 1917, que destruiu o pouco que restava dos princípios e formas socialistas. Os propagandistas de ambos os lados preferem uma história diferente que lhes caia melhor, mas creio que esta é a correta.
Em anos recentes, as grandes empresas vêm drasticamente reduzindo direitos que vão além dos direitos pessoais. Sob as regras da OIT, a grandes empresas exigem respeito ao direito de tratamento nacional. Isso quer dizer que, por exemplo, a General Motors que estiver operando no México pode exigir ser tratada como uma empresa mexicana. Este direito corresponde somente às pessoas jurídicas, não é um direito das pessoas físicas. Um mexicano não pode ir a Nova Iorque e exigir que a ele se conceda tratamento nacional, mas as grandes empresas podem.
Outras regras exigem que os direitos dos investidores, credores e especuladores devem prevalecer sobre os direitos das pessoas físicas, minando a soberania popular e os direitos democráticos. As grandes empresas, como bem se sabe, adaptam-se e atuam de muitas formas contra a soberania dos estados. Há casos muito interessantes. Por exemplo, na Guatemala, há alguns anos, houve uma tentativa de reduzir a mortalidade infantil regulando-se a comercialização de leite em pó para crianças por parte das multinacionais. As medidas que a Guatemala propôs se adaptavam às diretrizes da Organização Mundial de Saúde e respeitavam os códigos internacionais, mas a Gerber Corporation denunciou tal expropriação e a ameaça de uma queixa à Organização Mundial de Comércio foi suficiente para que a Guatemala retirasse a proposta por temor às medidas de represália por parte dos EUA.
A primeira queixa sob as novas regras da OMC foi formulada contra os EUA pela Venezuela e Brasil, que se queixavam de que as regras da Agência de Proteção Ambiental referentes ao petróleo violavam seus direitos com exportadores. Nessa ocasião, Washington aceitou, supostamente por temor a sanções, mas sou céptico quanto a esta interpretação. Não creio que os Estados Unidos tenham medo de sanções da Venezuela e do Brasil, mas provavelmente a gestão Clinton simplesmente não viu nenhuma razão de peso para defender o meio ambiente e proteger a saúde.
Questões gritantes deste porte aparecem de vez em quando com força. Dezenas de milhões de pessoas em todo mundo morrem de enfermidades evitáveis por culpa de medidas protecionistas escritas nas regras da OMC, que garantem às grandes empresas privadas o direito de fixar preços monopolistas. Tailândia e África do Sul, por exemplo, que dispõem de uma indústria farmacêutica, poderiam produzir medicamentos que salvassem vidas por uma fração do custo do preço monopolístico, mas não se atrevem por medo de sanções comerciais. De fato, em 1998, os EUA chegaram a ameaçar a OMS em retirar suas cotas se ela controlasse os efeitos das condições comerciais sobre a saúde. Estas são ameaças reais.
Isso se chama de direito comercial, mas não têm nada a ver com comércio. Tem a ver com as práticas monopolísticas de fixação de preços reforçadas por medidas protecionistas que se incluem os acordos de livre mercado. Estas medidas estão desenhadas para assegurar os direitos empresariais, que também têm como efeito a redução do crescimento e das inovações, naturalmente. Estas são somente uma parte da variedade de regulamentações introduzidas nestes acordos que freiam o desenvolvimento e o crescimento. O que motiva estas medidas são os direitos dos investidores, não o comércio. O comércio, com certeza, carece de valor em si mesmo. Somente tem valor se aumenta o bem-estar humano.
Em geral, o princípio primordial da OMC e de seus tratados consiste em que a soberania e os direitos democráticos têm que estar subordinados aos direitos dos investidores. Na prática, isso significa que prevalecem os direitos dessas gigantescas pessoas jurídicas: tiranias privadas às quais as pessoas devem subordinar-se. Estas são as razões que conduziram aos notáveis fatos de Seattle. De todos os modos, o conflito entre a soberania popular e o poder privado se pôs em evidência muito mais duramente alguns meses após Seattle, em Montreal, quando foi assinado um ambíguo acordo sobre as bases do chamado “protocolo de biosegurança”. Aí a questão ficou muito clara.
Citando o New York Times, “decidiu-se um compromisso após intensas negociações que frequentemente incitavam o enfrentamento dos EUA contra quase todo o mundo”, por culpa do que se chamou de “princípio da precaução”. Do que se trata isso? O chefe da delegação da União Européia assim descreveu: “os países devem ter a liberdade, o direito soberano de tomar medidas preventivas ante as sementes geneticamente modificadas, micróbios, animais e colheitas que se suspeitem prejudiciais”. Os EUA, sem dúvida, insistiram em aplicar as regras da OMC. Tais regras dizem que uma importação somente pode ser proibida se existir evidência científica [da modificação genética].
Fixemo-nos no objetivo. O que se discute é se as pessoas têm direito a se negar serem objeto de um experimento. Para exemplifica-lo, suponhamos que o departamento de Biologia de uma universidade entrasse aqui e nos dissesse: “Amigos, vocês serão objeto de um experimento que temos que levar adiante. Não sabemos onde isso vai nos levar. Que tal uns eletrodos no cérebro para ver o que acontece? Vocês podem se recusar, mas somente se encontrarem uma evidência científica de que isso vai lhes prejudicar”. Em condições normais, não vamos poder assinalar tal evidência. A pergunta é: vocês têm direito a recusar [o experimento]? Segundo as regras da OMC, não. Vocês são obrigados a ser objeto do estudo. É um modo daquilo que Edward Hermán chama “soberania do produtor”. O produtor reina, então são os consumidores que devem defender-se de alguma forma. Em nível interno, isso funciona, tal como Hermán aponta. Não é responsabilidade, ele diz, nem da indústria química nem dos fabricantes de pesticidas demonstrar, provar, que o que estão fazendo ao meio ambiente é seguro. É responsabilidade do cidadão demonstrar cientificamente que não é seguro, e tem que faze-lo através de agências públicas de pouca credibilidade, suscetíveis a deixar-se influir ante as pressões da indústria.
Esta foi a questão que se discutiu em Montreal, e um tipo de acordo ambíguo foi acertado. Deixemos claro que não se citou nenhum dos princípios, e isso pode se perceber por quem esteve presente.  Os EUA estavam sozinhos em um lado da mesa, a eles se uniram alguns outros países com interesses em biotecnologia e agroexportações de alta tecnologia, e do outro lado estavam todos os demais, aqueles que não tinham esperança de tirar qualquer proveito do experimento. Esta era a situação, e isso nos diz claramente quais princípios foram discutidos. Por razões similares, a União Européia favorece altas taxas sobre os produtos agrícolas, tal como faziam os EUA a cerca de quarenta anos (agora não mais, não porque os princípios tenham mudado, mas porque o poder mudou).
Há um princípio não escrito que diz que os poderosos e privilegiados devem ter capacidade de fazer o que quiserem. O corolário é que a soberania e os direitos democráticos das pessoas, nesse caso, devem passar de refratários a objeto de experimentos quando as grandes empresas dos Estados Unidos puderem tirar vantagem do experimento. A invocação das regras da OMC por parte dos EUA é muito natural, já que codificam esse princípio, e isso é fundamental.
Estes temas, ainda que sejam muito reais e afetem a um grande número de pessoas no mundo, são de fato secundários diante de outras modalidades de redução da soberania em favor do poder privado. Provavelmente, a mais importante [redução da soberania] foi o desmantelamento do sistema de Bretton Woods no princípio dos anos 70 por parte dos EUA, Reino Unido e outros. Tal sistema foi desenhado pelos EUA e Reino Unido nos anos 1940, anos de assombroso apoio popular aos programas de bem-estar social e a medidas democráticas radicais. Em parte por isso, o sistema de Bretton Woods, em meados dos anos 1940, regulava as taxas de intercâmbio e permitia controlar os fluxos de capital. A ideia era evitar a especulação perniciosa em grande escala e restringir a fuga de capitais. Os motivos eram claros e se articularam claramente. Os fluxos livres de capital criam o que se chamou em certas ocasiões de “parlamento virtual” do capital global, que pode exercer poder de veto sobre as políticas governamentais que considere irracionais. Isso inclui os direitos trabalhistas, programas educativos ou de saúde ou políticas públicas de estímulo da economia ou, de fato, qualquer coisa que ajude às pessoas e não benefícios (sendo portanto, irracional em um sentido técnico).
O sistema de Bretton Woods funcionou por mais ou menos 25 anos. Época que foi qualificada por muitos economistas como “anos de ouro” do capitalismo moderno (capitalismo moderno de Estado, propriamente dito). Foi um período que durou até os anos 1970 mais ou menos, de rápido crescimento – sem precedentes históricos – da economia, do comércio, da produtividade, do investimento de capital, de extensão do estado de bem-estar, uma idade do ouro. Tudo veio abaixo no princípio dos anos 1970. O sistema de Bretton Woods foi desmantelado com a liberalização dos mercados financeiros e a implementação de tipos de câmbio flutuantes.
O período seguinte foi descrito como “anos de chumbo”. Houve uma enorme explosão de capital especulativo a prazo muito curto, que afogava a economia produtiva. Houve uma deteriorização notável em todas e cada uma das grandezas econômicas: crescimento econômico consideravelmente mais lento, crescimento da produtividade mais lento, assim como do investimento de capital, taxas de interesse muito mais altas (que freiam o crescimento), maior volatilidade dos mercados e crises financeiras. Tudo isso tem efeitos muito duros sobre as pessoas, inclusive nos países ricos: estancamento ou declínio dos salários, jornadas de trabalho muito mais longas (fato particularmente notável nos EUA) e corte dos serviços. A título de exemplo, nesta economia da qual se fala no mundo todo, a média de renda familiar retrocedeu à de 1989, que está bem abaixo da dos anos 1970. Tem sido também uma época de desmantelamento das medidas social-democratas que tanto contribuíram para a melhoria do bem-estar humano. Em geral, a nova ordem internacional imposta ampliou o poder de veto para o “parlamento virtual” dos investidores de capital privado, levando-nos a uma queda significativa da democracia e dos direitos de soberania e a um sucateamento da saúde pública.
Do mesmo modo que estes efeitos se deixam notar em sociedades ricas, são catastróficos nas sociedades mais pobres.
São efeitos que cruzam transversalmente a sociedade, não que tal sociedade tenha enriquecido e outra tenha empobrecido. As medidas mais significativas compreendem setores globais da população. Assim, por exemplo, tomando as análises recentes do Banco Mundial, se tomarmos 5% da população mais rica e compararmos com os 5% mais pobres, a taxa era de 78 para 1 em 1988 e 114 para 1 em 1993 (sendo este o último ano de que se dispõem os dados, atualmente sem dúvida mais altos). Os mesmos dados demonstram que os 1% mais ricos tem as mesmas rendas que os 57% mais pobres (dois bilhões e meio de pessoas).
Para os países ricos, está claro. Um renomado economista, Barry Eichengreen, em sua reconhecida História do Sistema Monetário Internacional, assinalou, assim como várias outras pessoas, que a atual fase de globalização é, a grosso modo, bastante similar à situação anterior à Primeira Guerra Mundial. Sem dúvida há diferenças. Uma diferença essencial, ele explica, é que nessa época, a política governamental não estava “politizada” pelo sufrágio universal masculino e pelo surgimento do sindicalismo e dos partidos de trabalhadores. Em conseqüência, os graves custos humanos da ortodoxia financeira imposta pelo parlamento virtual podiam ser transferidos para a população em geral. Mas esse luxo, em 1945, já não esteve ao alcance na era mais democrática de Bretton Woods, dessa maneira, os “limites da mobilidade do capital foram substituídos por limites à democracia como uma fonte de isolamento das pressões do mercado”.
                  Há uma lógica nisso tudo. É natural que o desmantelamento da ordem econômica do pós-guerra venha acompanhado de um ataque à democracia substantiva (liberdade, soberania popular e direitos humanos), sob o slogan NÃO HÁ ALTERNATIVA, um tipo de zombaria grotesca do marxismo vulgar. O slogan, é sempre bom dizer, é uma fraude. A particular ordem socioeconômica imposta é o resultado de decisões humanas em instituições humanas. As decisões podem modificar-se, as instituições podem modificar-se e, caso necessário, desmontar-se e substituir-se, tal como as pessoas honestas e valentes vêm fazendo ao longo da história.

Avram Noam Chomsky (Filadélfia, 7 de dezembro de 1928) é um linguista, filósofo e ativista político estadunidense.

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