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quinta-feira, 2 de janeiro de 2014

A necessidade de novas reflexões sobre o cotidiano

 cotidiano


De grande mistério a fonte de saber, de lócus da sociabilidade a reino da alienação. Como uma junção de antíteses, o cotidiano, como objeto de estudo, constitui-se ao sabor do tempo e ao gosto de seu avaliador (daquele que o observa e o analisa).
Na história humana, inúmeras teorias já sondaram o tema e produziram explicações. É amplo o espectro de olhares e de pontos de referência encontrados nos detalhes, nas miudezas e nos sentidos dispersos nesse complexo objeto de estudo.
Diante das transformações histórico-sociais que fizeram brotar das entranhas de um não-objeto – a vida diária das pessoas – essa rica fonte de fenômenos, o que resta ao pensamento é interagir com os tormentos da matéria, contradizendo, ao longo das décadas, suas próprias ideias e previsões lógicas.
O cotidiano é uma construção social e, como tal, é reflexo não só da quimera ideológica que nos rodeia, mas, também, da inevitável base material que nos constitui. O cotidiano está para nós (como produto de ações diárias), antes de estar para ele mesmo (como ideia). Ou será que existe um espaço demarcado no interior da sociedade em que possamos dizer “aqui começa e ali termina o cotidiano”?
Poderia se dizer, como tentativa de resposta: “é esse dia a dia que nos rodeia”. Sim, mas e daí? Rodeia a quem? Que tipo de dia a dia é esse? Ele é constituído a partir de qual visão de mundo? É expresso como reflexo de quais modos e relações sociais? Que interesses há por traz dessa convencional noção de cotidiano? A quem é conveniente que essa concepção continue a ser o que é?
Com essa problemática, o tema ganha complexidade: o cotidiano é amplo. Apenas um estudo sobre a transformação de suas representações ou sobre as condições histórico-sociais que o fizeram surgir na qualidade de objeto de estudo já daria para encher muitos livros da área de Ciências Sociais. Isso sem considerar as diversas abordagens existentes que também ampliariam o leque de reflexões teóricas a respeito da questão.
Não se trata aqui de percorrer as linhagens do pensamento que se debruçaram sobre o assunto, nem de revirar questões epistemológicas, levantando as relações e os interesses encobertos pela racionalidade da ciência sociológica. Esse movimento de entendimento e de compreensão se inicia com a constatação, seja reflexiva, seja crítica de que o cotidiano compõe esse amplo universo de ações e de relações que os seres humanos constituem em sociedade.
Não é preciso ser sociólogo para perceber que esse mundinho diário existe e que se tem de conviver com ele. Não se pode negá-lo, isso é fato. Mas, do ponto de vista da reflexão filosófica e sociológica, por que o cotidiano é mais um inimigo do que um aliado na reflexão e nos processos transformação? Qual a relação senso comum / cotidiano, alienação / cotidiano?
Há toda uma tradição de pensamento, que nos leva aos antigos filósofos gregos e que se espalhou pelo ocidente, de negar o que está próximo, de desconfiar do que os sentidos nos dizem, enfim, de evitar as ilusões que o mundo corriqueiro nos traz (uma aparência espiritual e material). Assim sendo, pensando a realidade que nos cerca com certos pressupostos sociológicos, é preciso distância para enxergar melhor aquilo nos aparece como natural e óbvio dentro da lógica de organização social.
Dá para fazer uma analogia com a visão de uma obra de arte num museu, de um quadro, por exemplo. Quando vemos uma pintura expressionista, só conseguimos notar a grandeza do trabalho do autor ao chegarmos próximos da tela. Dali, podemos ver as cores fortes e as pinceladas, que mais parecem borrões sem sentido.
Com relação ao cotidiano, a situação se inverte, de perto vemos uma aparente harmonia, sentido, naturalidade. No entanto, ao tomarmos distância, podemos ver como estávamos equivocados. Com uma visão melhor de todo o quadro, vemos as contradições e os conflitos de interesses que antes não se faziam presentes.
Desse modo, o cotidiano pode ser visto como um mal necessário à reprodução do sistema. Reprodução no sentido ideológico da coisa, como sendo o cimento que cobre as frestas e as rachaduras estruturais, dando um ar aparente de homogeneidade. O cotidiano, então, é parte integrante, e fundamental, do processo produtivo do todo desigual.
O cotidiano se torna vilão da história quando relacionado ao grande balaio de saberes do senso comum. Na maioria das vezes, essa é quase uma ação imediata: pensou em cotidiano, pensou em senso comum; pensou em senso comum, pensou em cotidiano. E, quando se pensa em senso comum e em cotidiano, muitas associações são feitas: ilusão, alienação, falsidade, fantasia, mentira, não-científico etc.
Não quero com essa argumentação fazer crer que defendo o senso comum ou o cotidiano. Não estou advogando uma sociologia do senso comum ou do cotidiano. Muito pelo contrário. Não sei se esse binômio ciência/senso comum ainda tem sentido, prefiro sair dele. Mas, também, não quero negar veementemente um ou outro. Não defendo nem a ciência (em sua acepção clássica, positivista), nem o cotidiano (em sua representação puramente ideológica e alienadora). O importante é avaliar criticamente e dialeticamente cada um desses processos.
Assim como a ideia de ciência não é fechada e pronta, também a de cotidiano não é. Como podemos descartar alguma coisa sem conhecê-la de perto? Tomar como base essa dicotomia simples de oposição entre falso/verdadeiro, claro/escuro, ciência/mito não é deixar tudo no reino exclusivo das ideias? Alguns fenômenos necessitam de processos compreensivos que a lógica abstrata não consegue oferecer.
Tá certo, você pode dizer, “o cotidiano não é lá esse mau-caráter que acreditávamos, mas o que ele é de fato?” Ele é essa complexidade que se materializa a nossa frente; essa substância que se modifica à medida que o mundo muda. Por isso devemos criticar os conceitos. Estes seguem uma racionalidade própria e não se conectam com o universo humano de maneira dinâmica. No entanto, tal atitude não representa a negação dos conceitos. Ela quer refazer continuamente a ligação entre as transformações materiais e as ideias. E o que isso tem a ver com o cotidiano, ora bolas? A meu ver, tudo.
Penso que deveríamos perder esse preconceito arcaico de ver o cotidiano como pura alienação. Isso não quer dizer aceitá-lo acriticamente como ele é em sua manifestação ideológica, nem submeter-se a ele como fonte de uma explicação mais ampla e profunda. Falo sobre o cotidiano num sentido mais global. Não só como objeto de estudo, mas como realidade diária. O cotidiano deve fazer parte do nosso processo de reflexão diário. O contato com esse quebra-cabeça múltiplo enriquece muito a pesquisa social.
Alguns teóricos estão desbravando esse território desconhecido, mas ainda são poucos e a duras penas. Muitas pesquisas empíricas destacam aspectos que poderiam ser menosprezados por outras abordagens mais lógicas.
Mesmo no campo do trabalho, que é reduto de um pensamento fortemente crítico ao cotidiano, boas pesquisas foram feitas por historiadores que trouxeram, nos dados coletados, as minúcias e os detalhes de um universo diário em transformação. O cotidiano teve papel fundamental nessas reflexões, como é o caso da obra de Edward Palmer Thompson (1924-1993).
É lógico que também há muita pesquisa que não leva a nada e que só acrescenta dados insignificantes. No entanto, mesmo nesses, devemos não ser tão prepotentes. As pesquisas têm que correr livres com a fértil imaginação humana. Não há objeto de estudo melhor ou pior que o outro. Criar não-objetos só estimula o pensamento narcisista a seguir seu próprio caminho de adoração de si mesmo, sem encontrar obstáculos.
O pensamento lógico-abstrato não quer pensar em outra coisa, a não ser, nele mesmo. Devemos arriscar um movimento contrário a esse. As ideias devem acompanhar de perto a mudança e a dinâmica da história em seus pequenos processos; devem expressar o novo e não se submeter à repetição do sempre igual, à eternização dessa realidade antagônica.




LEONARDO DE LUCAS DA SILVA DOMINGUES é Graduado em Ciências Sociais pela UEL e Mestre em Sociologia pela UFRGS; membro do Laboratório de Divulgação de Ciência, Tecnologia e Inovação Social (LaDCIS/UFRGS)

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