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quarta-feira, 29 de janeiro de 2014

O Controle de Nossas Vidas: Liberdade, Soberania e Outras Espécies em Extinção - 1ª parte

Por NOAM CHOMSKY

Adaptação da conferência proferida em 26/02/2000 no Auditório Kiva, em Albuquerque, Novo México, por ocasião do 20º aniversário do IRC (do inglês Inter Hemisferic Research Center, ou Centro de Pesquisas Inter-hemisféricas), do qual Chomsky faz parte no quadro de Diretores, sobre globalização político-econômica. 


Não há exagero algum quando se diz que os esforços envidados a controlar nossas vidas são algo recorrente na história do mundo, com ênfase especial nos últimos séculos, cenário de grandes mudanças nas relações humanas e na ordem mundial. Por se tratar de uma questão muito vasta, buscarei suas manifestações atuais e suas raízes, onde será delineado um quadro a partir de uma perspectiva global, que sem sombra de dúvida é o cenário de onde elas emergem.
No ano passado (N.T.: III Conferência Ministerial da OMC em Seattle - 30 de novembro e 03 de dezembro de 1999 -, em que ocorreram uma série de manifestações no primeiro dia do evento, inclusive com intervenção policial. Foi considerada um fracasso devido, principalmente, às questões divergentes sobre subsídios agrícolas e produtos transgênicos. Participaram das manifestações milhares de pessoas de diferentes setores da sociedade, que vinham desde ecologistas, anarquistas, trabalhadores sindicalizados, estudantes, pacifistas e até humanistas e tinham motivações e perspectivas políticas distintas), as questões globais foram vistas em termos vinculados à noção de soberania, isto é, ao direito das entidades políticas de seguir seu próprio curso, o que pode ser inofensivo ou nefasto, e agir sem interferências externas. No mundo real, as interferências se produzem por parte de poderes extremamente concentrados, cuja sede está nos EUA. Este poder global concentrado tem vários nomes, dependendo de qual aspecto de soberania e liberdade se tenha em mente. Assim, às vezes se chama “consenso de Washington”, ou “complexo Wall Street-Tesouro Nacional”, ou OTAN, ou “burocracia econômica internacional (OMC, Banco Mundial e FMI)”, ou G-7 (os países ricos ocidentais e industriais) ou G-3, ou melhor, G-1. A partir de uma perspectiva mais profunda, poderíamos descrever estes poderes como um grupo de grandes corporações – constantemente unidas por alianças estratégicas que administram uma economia global que constitui, de fato, uma espécie de mercantilismo corporativo que tende ao oligopólio na maioria dos setores, abertamente aliadas ao poder estatal em sua tarefa de socialização de risco e custo e para a subjugação de elementos inflexíveis.
Além disso, as questões sobre soberania surgiram em dois campos. Um tem a ver com o direito soberano de estar a salvo de uma intervenção militar. Neste caso, as questões surgem dentro de uma ordem mundial baseada em estados soberanos. Em segundo lugar aparece a questão dos direitos de soberania a partir do ponto de vista da intervenção socioeconômica. Estes temas surgem em um mundo dominado por empresas multinacionais, especialmente instituições financeiras e por um esquema coeso engendrado para servir aos seus interesses (por exemplo, alguns destes assuntos surgiram subitamente em Seattle, em novembro passado) - vide 1ª N.T.
No que se refere às intervenções militares, dois casos tiveram significado particular e chamaram atenção: Timor Leste (N.T.: conflito separatista ocorrido na Indonésia em 1999, com intervenção da ONU) e Kosovo (N.T.: conflito separatista ocorrido na ex-Iugoslávia em 1999, com intervenção da OTAN). Muito poderia ser dito sobre isso, mas vou tratar apenas sobre a segunda questão e vou me centrar nela, ou seja, em soberania, liberdade e direitos humanos. Estes são os temas que despontam no terreno socioeconômico.
Para começar, cabe fazer um comentário geral: a soberania, em si mesma, não é um valor. Torna-se um valor à medida em que relaciona a liberdade e os direitos, seja potencializando-os ou debilitando-os.
Quando se fala em liberdade e direitos, o que nos vem à mente é o conceito de seres humanos, isto é, pessoas de físicas, não abstrações ou instituições legais como empresas, estados, ou capital. Se tais entidades têm algum direito, o que é passível de discussão, deve ser derivado dos direitos das pessoas. Este é o núcleo da doutrina liberal, e a ela se opõem os setores mais ricos e privilegiados, e assim é tanto no campo político como no socioeconômico.
No campo da política, o slogan é “soberania popular em um governo do povo, pelo povo e para o povo”, mas seu funcionamento difere bastante do slogan, pois consiste em considerar o povo como um inimigo perigoso, que deve ser controlado para o seu próprio bem. Estas considerações nos remetem de volta no tempo, até as primeiras revoluções democráticas modernas, no século XVII na Inglaterra e um século mais tarde nas colônias norteamericanas. Em ambos os casos, os democratas foram vencidos quase todas as vezes. No século XVII, na Inglaterra, grande parte da população não queria ser dominada nem pelo rei e nem pelo parlamento. Recordemos que são estes os dois elementos que contendem no uso da guerra civil mas, como na maioria das guerras civis, uma boa parte da população não queria nem rei nem parlamento. Tal como se lia em seus panfletos, queriam ser governados “por gente do campo como nós, que conhecem nossas necessidades, não por cavaleiros e nobres que nos impõem leis, que são eleitos através medo, nos oprimem e não conhecem os males da população”.
Estas mesmas ideias animaram os fazendeiros rebeldes das colônias um século mais tarde. Mas o sistema constitucional foi desenhado de um modo bem diferente. Foi construído para bloquear tal heresia. O objetivo era “proteger a minoria opulenta frente à maioria”, e assegurar-se de que “o país seja governado por aqueles que o possuem.” Estas são as palavras do líder fazendeiro James Madison, e do presidente do Congresso Continental e primeiro juiz do Tribunal Supremo, John Jay. Tal concepção prevaleceu, mas os conflitos continuaram. Adotaram-se novas formas, e apesar de tudo, a doutrina elitista ainda continua intocável em sua essência.
Já no século XX, a população foi denominada “ignorante e mal educada, mete-se em tudo”, seu papel é de mero espectador e não de participante, exceto durante estas oportunidades periódicas nas quais há que se eleger entre os responsáveis pelo poder, chamadas de eleições. Durante as eleições, a opinião é considerada essencialmente irrelevante se entrar em conflito com as demandas da minoria opulenta do país.
Um exemplo contundente tem a ver com a ordem econômica internacional, com os chamados acordos comerciais. A população, em geral, se opõe abertamente à maior parte destes, da mesma forma que evidenciam as pesquisas, mas estas questões não aparecem durante as eleições. Não aparecem porque os centros de poder, a minoria opulenta, permanece unida ante a defesa da institucionalização de uma determinada ordem socioeconômica. Desta forma, estas questões não vêm à tona. O que se discute não os preocupa excessivamente. Isso é normal, e faz sentido a partir da relevância de que o papel do cidadão, como ignorante e mal-educado que se mete em tudo, é simplesmente o de telespectador. Se os cidadãos, como acontece com frequência, tentam organizar-se e meter-se na política para participar, para pressionar em favor de suas preocupações, então, surge um problema. Isso não é democracia, é a chamada crise de democracia e deve ser superada.
             Estas são as falas dos liberais, da ala progressista do grupo ideológico moderno, mas os princípios são, a grosso modo, os mesmos. Os últimos 25 anos têm sido um destes períodos, que chegam de vez em quando, onde uma importante campanha é organizada para tentar superar o que se percebe como crise da democracia e para reduzir o cidadão a seu papel apático, passivo e de espectador obediente. A política é assim.
No campo socioeconômico, ocorrem coisas similares. Desenvolvem-se, paralelamente, conflitos parecidos durante muito tempo. Nos primeiros dias da Revolução Industrial nos Estados Unidos, na Nova Inglaterra, há 150 anos, havia uma imprensa trabalhadora muito ativa e independente, dirigida por jovens mulheres procedentes das fazendas ou das oficinas de artesanato dos povoados. Condenavam a degradação e subordinação ao novo sistema industrial emergente, que obrigava as pessoas a vender-se para sobreviver.
Vale a pena lembrar que o salário foi considerado não muito diferente da escravidão já nessa época, e não somente pelos operários, mas também por grande parte da corrente intelectual dominante como, por exemplo, Abraham Lincoln, ou o Partido Republicano, ou ainda os editoriais do New York Times.
A classe trabalhadora se opôs à retomada do que foi denominado de privilégios monárquicos no sistema industrial e reclamou que aqueles que trabalham nas fábricas deviam possuí-las, evocando o espírito do republicanismo. Denunciaram o que foi chamado de novo espírito da época: enriquecer e esquecer-se de tudo menos de si mesmo, uma visão rebaixada e degradante da vida humana que deve ser embutida no pensamento das pessoas sem economizar esforços, o que de fato vem ocorrendo há séculos.
Durante o século XX, a literatura sobre a indústria da comunicação pública nos proporcionou uma rica série de instruções sobre como implementar o novo espírito da época mediante a criação de necessidades, ou melhor, através da manipulação da opinião pública - do mesmo modo que um exército dá ordens aos seus soldados - e induzindo a uma filosofia de futilidade e a uma carência de objetivos na vida, concentrando a atenção humana nas coisas mais superficiais, em grande parte referentes ao consumo da moda. Se isto for possível, então as pessoas aceitarão sua vida insignificante e subordinada, apropriada para elas, e assim deixarão de lado as ideias subversivas, de tomar controle de suas vidas.
Este é um projeto de engenharia social de envergadura. Tem sido assim há séculos, mas intensificou-se e tomou alcance maior desde o século passado. Há muitas maneiras de implementá-lo. Algumas já mencionei e seria redundante ilustrar. Outras incluem minar a seguridade, e ainda podemos encontrar várias outras maneiras. Uma maneira de minar a seguridade é ameaçar com a perda de emprego, que é uma das maiores consequências e, diga-se de passagem, um dos objetivos dos malfadados acordos comerciais (sublinho os malfadados porque não são acordos de livre mercado, já que contêm fortes elementos antimercado, de natureza variável e em sentido estrito, não são acordos, já que preocupam às pessoas e em grande parte se opõem a eles). Uma consequência desses projetos é facilitar a ameaça (que não tem por que ser real, na verdade, só a ameaça já basta) de perda de emprego, o que constitui uma boa maneira de disciplinar as pessoas minando sua seguridade.
Outro estratagema é a promoção do que se chama de flexibilidade do mercado de trabalho. Cito o Banco Mundial, que expõe a questão sem dissimular. Diz: “o incremento da flexibilidade no mercado de trabalho, apesar de sua má fama, e que se tem adotado como um eufemismo de diminuição de salários e de dispensa de trabalhadores” (que é exatamente o que é) “é essencial em todas as regiões do mundo (…) As reformas mais importantes implicam no levantamento de restrições à mobilidade trabalhista e à flexibilidade salarial, assim como desvincular os serviços sociais dos contratos trabalhistas”. Isto significa rebaixar os benefícios e os direitos que se conquistaram por várias gerações a duras penas. Quando se fala em se rebaixar as restrições à flexibilidade salarial, significa flexibilidade para baixo, não para cima. Quando se fala de mobilidade laboral não se faz referência ao direito das pessoas em ir e vir, tal como sempre se reclamou desde a teoria do livre mercado, desde Adam Smith, mas faz referência ao direito de se despedir trabalhadores quando for conveniente à atual versão da globalização baseada no fato de que os investidores, o capital e as empresas devem ter liberdade de movimento, mas não é assim com as pessoas, já que seus direitos são secundários, anedóticos.
Essas reformas essenciais, tal como denomina o Banco Mundial, são impostas em grande parte do mundo como condições para cair nas boas graças tanto do Banco Mundial como do FMI. Nos países industrializados, são introduzidas de outro modo, e também têm se revelado efetivas.
Alan Greensspan (economista norteamericano) declarou ante o Congresso que a maior insegurança dos trabalhadores tem constituído um fator importante do que se denomina o conto de fadas da economia. Mantém a inflação baixa, já que os trabalhadores têm medo de reclamar por melhores salários e benefícios. Isto se vê mais claramente se examinarmos as estatísticas: nos últimos 25 anos, período de retração da crise da democracia, os salários se estancaram ou decaíram para a maior parte da força de trabalho, para os trabalhadores sem qualificação, e as horas de trabalho aumentaram significativamente. Isso é divulgado, certamente, na imprensa do setor econômico, que o descreve como um desenvolvimento desejado de importância transcendente, com trabalhadores obrigados a abandonar seus “luxuosos estilos de vida”, enquanto que os benefícios empresariais são superlativos e estupendos (Wall Street Journal, Business Week e Fortune).
Nos países dependentes, as medidas são menos delicadas. Uma delas é a chamada crise da dívida, atribuída aos programas do Banco Mundial e ao FMI, e também ao fato de que a parte rica do Terceiro Mundo está, em sua maioria, isenta de obrigações sociais. Isso é indubitavelmente certo na América Latina e constitui um dos seus principais problemas. A crise da dívida é real, mas vamos um pouco além. De maneira alguma é um simples fato econômico. Trata-se, em um sentido amplo, de destruição ideológica. O que se costuma chamar de dívida poderia ser superado facilmente de maneiras diversas e elementares. Uma dessas maneiras seria revisar o princípio capitalista de que o que devedor tem que pagar e o credor tem de assumir o risco. Assim, por exemplo, se alguém me empresta dinheiro e eu o envio ao meu banco em Zurique e compro um Mercedes, e logo esse alguém vem e me pede o dinheiro de volta, é óbvio que não posso lhe dizer: “Cobre do meu vizinho.” Ainda que esse alguém queira assumir o risco do empréstimo, é claro que não se pode dizer: “meu vizinho pagará por mim”.
Sem dúvida, nas organizações internacionais funciona assim. A dívida não será paga por aqueles que pediram emprestado (os ditadores militares e seus comparsas, os ricos e privilegiados que apoiamos em sociedades grandemente autoritárias), estes não têm de pagar. Por exemplo, vejamos o caso da Indonésia, cuja dívida atual é de 140% do PIB. O dinheiro foi concedido à ditadura militar e aos seus “protegidos”, chegando a algumas centenas de pessoas, e será pago pela população mediante duríssimas medidas de austeridade. Os credores estão protegidos do risco em sua maior parte. Utilizam o montante resultante do repasse do risco à sociedade mediante diversas estratégias de socialização dos custos, transferindo-o aos contribuintes do Norte (EUA). Esta é uma das funções do FMI.
Na América Latina acontece o mesmo. A enorme dívida latinoamericana não se considera algo muito diferente da fuga de capitais da América Latina, o que sugere uma maneira simples de se tratar a dívida (ou, ao menos, de uma grande parte dela), sempre e quando alguém creia no princípio capitalista anterior, que resulta inaceitável, já que põe em evidência as pessoas equivocadas, a minoria opulenta.
Há outros modos de se eliminar a dívida e também se deixa entrever que se trata de uma construção ideológica. Outro método, aparte do princípio capitalista, é o princípio do direito internacional introduzido pelos Estados Unidos quando, segundo os livros de história, liberou Cuba, ou seja, quando se lhe conquistou antes de sua independência da Espanha em 1898. Uma vez livre, os Estados Unidos cancelaram sua dívida com a Espanha, com o argumento razoável de que a dívida foi imposta sem o consentimento da população, que foi imposta sob condições coercitivas. Esse princípio entrou no direito internacional basicamente pela intervenção dos EUA. Chama-se princípio da dívida odiosa. A dívida odiosa é inválida, não deve ser paga. Isso foi reconhecido pelo diretor executivo norteamericano do FMI: se este princípio estivesse ao alcance das “vítimas”, e não somente dos ricos, a dívida do Terceiro Mundo se evaporaria em sua maior parte, já que é inválida, é uma dívida odiosa. Mas isto não ocorrerá. A dívida odiosa é uma arma muito poderosa de controle que não se pode abandonar. Para aproximadamente metade da população mundial, neste exato momento e graças a este método, suas políticas econômicas nacionais são dirigidas pelos burocratas de Washington.
Ademais, metade da população mundial está sujeita a sanções unilaterais dos EUA, o que constitui uma forma de coação econômica que, de novo, mina severamente a soberania e vem sendo tratada repetidamente pelas Nações Unidas como inaceitável. Mas, ao que parece, isso não vem ao caso.
Entre os países ricos, há outras maneiras de se chegar a resultados similares. Mas antes disso, há algo que não poderíamos esquecer: as estratégias utilizadas nos países dependentes podem ser extremamente brutais. Os jesuítas organizaram uma conferência em San Salvador há alguns anos. Foi falado sobre o terrorismo de estado dos anos 80 e de sua continuidade através das políticas socioeconômicas impostas pelos vencedores. A conferência abordou ainda o que se denominou cultura residual do terror, que vem logo após a queda do terror de fato e tem como efeito a domesticação das expectativas da maioria, afugentando qualquer ideia de alternativa às exigências dos poderosos. Parece que aprenderam a lição: NÃO HÁ ALTERNATIVA (N.T.: TINA, acrônimo da frase em inglês There Is No Alternative), tal como rezava a cruel frase de Margareth Tatcher. A ideia de que NÃO HÁ ALTERNATIVA é o slogan habitual da versão empresarial da globalização. Nos países dependentes, os grandes êxitos das operações terroristas consistem em destruir as esperanças que haviam surgido na América Latina e Central durante os anos 1970, das mãos de organizações populares da região e também da Igreja, cuja “opção pelos pobres” lhe custou severos castigos por haver se afastado do “bom caminho”. (continua)

Avram Noam Chomsky (Filadélfia, 7 de dezembro de 1928) é um linguista, filósofo e ativista político estadunidense.

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