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quinta-feira, 29 de agosto de 2013

De volta para o passado

Nojento ...

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Ayrton Centeno

Quando a História quer nos mostrar onde exatamente estamos ela cumpre este papel com uma precisão e uma extraordinária capacidade de rir de si mesma. Nem que tenha de repetir-se enquanto farsa. E onde exatamente estamos? Ou, melhor dizendo, onde está exatamente uma classe média (e médica) preconceituosa, insensível, egoísta e amamentada semanalmente com doses cavalares de arsênico pela revista Veja? Obviamente não está no Brasil, país odiado em que as empregadas domésticas agora tem — imagine só!  — até carteira de trabalho e em que a ralé elege os presidentes. Supostamente deveria estar no futuro, onde está sua imaginação de carrões, mansões, bugigangas hightech e férias em Miami. Mas está, que pena, em Little Rock, Arkansas, na frente do ginásio central da cidade. É o dia 4 de setembro de 1957 e brancos e brancas de todas as idades vaiam Elizabeth Eckford, 15 anos: “Dá o fora, macaca”, gritam. “Volta pro teu lugar!”, exigem. E mais: “Vai pra casa, negona!” e ”Volta para a África!”

É o primeiro dia de aula de Elizabeth e ela encontra uma muralha de caras hostis, crispadas, injetadas de ódio. Nervosa, abraçada a sua pasta, procura resguardar-se junto a uma mulher mais velha, que deveria ser mais tolerante. Erro: ela lhe cospe no rosto. Elizabeth e mais oito colegas negros são os “Nove de Little Rock”. Foram os primeiros escolhidos para iniciar a dessegregação racial do ambiente escolar no recalcitrante Sul da Klu Klux Klan. Elizabeth tenta entrar na escola mas, por três vezes, barreiras da polícia estadual travam seus passos. Negros não devem frequentar escolas de brancos, entende o governador Orval Faubus, do Arkansas. Pouco importa que a Suprema Corte tenha decidido pela integração racial.

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No dia 27 deste mês, a foto de um médico cubano negro cercado por jovens médicas brancas sendo vaiado em Fortaleza, Ceará, trouxe inevitavelmente à memória a iconografia da demolição do apartheid no Sul dos Estados Unidos em meados da década de 1950 e começo dos 1960. Cinquenta e seis anos separam — e unem — as vaias de Little Rock e de Fortaleza. Nos dois casos, quem empurrou as vozes gargantas afora foi a intolerância, o medo e a mesquinharia. Com uma diferença: em Little Rock, os alunos incomodados teriam que conviver com os novatos de outra cor. Que ocupariam assentos que poderiam estar acomodando bundas brancas e não negras. Um horror, portanto.

No Brasil, não há este problema. Os médicos brasileiros insultados pela chegada dos forasteiros não precisam nem mesmo olhar as suas caras. Cubanos, argentinos, uruguaios, espanhóis, etc., vão trabalhar e viver num Brasil à parte. Vão trabalhar num Brasil precário que não lhes interessa absolutamente. Vão ocupar as vagas e receber os salários que rejeitaram como indignos de seu profundo saber e do seu projeto de vida saudável. Vão atuar em 701 municípios que não possuem shopping centers. Vão atuar na periferia das grandes cidades onde os profissionais nativos não necessitarão entrar e embarrar os pneus do carro do ano. Ficará para os estrangeiros a missão primordial de botar o pé na lama e se aproximar daqueles brasileiros que não merecem a atenção dos brasileiros que se formam nas melhores faculdades de medicina do Brasil, aquelas custeadas pelo dinheiro público e sustentadas inclusive por parte da renda dos mais pobres. Estes, enfim, conhecerão talvez seu primeiro médico. 

Que não será um brasileiro.

Elizabeth e os oito de Little Rock somente entraram na escola apoiados pelo governo federal. O presidente Dwight Eisenhower, general que havia combatido o nazismo na condição de comandante dos aliados na Europa, decidiu cumprir a ordem judicial contra o apartheid de Faubus. Mandou a 101ª Divisão Aerotransportada do Exército assegurar o ingresso dos estudantes. E a força ajudou o direito a se impor. Que não falte — se for preciso – a mesma determinação a Dilma Rousseff.

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