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domingo, 4 de agosto de 2013

Contra a diminuição da maioridade penal


(Ou: o triunfo do maniqueÍsmo numa falsa polêmica)

Por Eduardo Ferreira de Souza

"Acostuma-te à lama que te espera. O homem que nesta terra miserável mora entre feras sente inevitável necessidade de também ser fera" (Augusto dos Anjos)

Em São Paulo, região do ABC paulista, uma dentista foi assaltada. Ao constatarem que não havia dinheiro para ser levado, os ladrões decidiram matá-la. Um deles, menor de idade, a amarrou, encharcou-a com álcool e ateou fogo.

"Os índices de criminalidade no Brasil são macabros. Mata-se mais em latrocínios aqui que no Iraque. E o que a mídia grande faz? Reduz tudo a uma única questão: ser ou não ser a favor da diminuição da maioridade penal."

Os criminosos eram menores de idade e isso abasteceu os telejornais sanguinolentos de um de seus velhos combustíveis: a diminuição da maioridade penal para 16 anos. Outros crimes semelhantes se seguiram e uma emissora de TV assumiu a bandeira; a revista Veja o fez de forma implícita e o Datafolha informou que mais de 90% da população apoia. Salvo rarísimas exceções, os jornalistas se manifestam favoráveis em matérias jornalísticas e em programas popularescos de TV que tiram de seus arquivos outros episódios que envolvem crimes cometidos por menores. Por “menores” entenda-se os menores de 18 anos pobres. Os mais abastados recebem pela mídia o tratamento de “adolescentes”.
Tudo seria apenas um debate democrático válido, não fosse um porém: trata-se de uma falsa polêmica, estéril, estúpida e inócua.
Índices
Os índices de criminalidade no Brasil são macabros. Mata-se mais em latrocínios aqui que no Iraque. E o que a mídia grande faz? Reduz tudo a uma única questão: ser ou não ser a favor da diminuição da maioridade penal. Maniqueísmo boçal.
Mais:
Oto de Quadros: Maioridade penal, na edição 196 de Caros Amigos
O índice de reincidência criminal de quem sai das penitenciárias é de 70%. Diminuir a maioridade significa enviar menores para um sistema falido para que saiam ainda piores. Ou: ainda melhores. Criminosos melhores, no caso. Se nos detivermos especificamente em São Paulo eles sairão com curso de treinamento e capacitação em crime.
Décadas de desumanização do sistema prisional gerido pelo Estado e quase 20 anos de omissão e negligência dos governos neoliberais do PSDB criaram o PCC. É possível afirmar isso de maneira inequívoca,
Sensacionalismo
Os apresentadores sensacionalistas de televisão também dizem que, como a Justiça funciona mal, no Brasil ninguém vai preso. Mentira. Entre os países que mais encarceram, o Brasil está em quarto lugar. Só perde para EUA, China e Rússia. Isso prova que o aprisionamento por si só não resolve porque está estruturalmente comprometido. Com índices ínfimos de reabilitação, a penitenciária brasileira tem a única função de banir por algum tempo do convívio social o cidadão que não tem dinheiro para contratar bons advogados.
Espaço vazio não permanece vazio por muito tempo, alguém sempre o ocupa. Nos presídios paulistas foi o PCC que, na ausência do Estado, tratou de ocupar. Quando a experiência dá certo, invariavelmente contamina. Isso podemos observar pelos tumultos ordenados de dentro dos presídos para as ruas de Santa Catarina, entre outras localidades.
Aqueles que vociferam a favor da diminuição da maioridade penal deveriam empregar a mesma fúria contra o fato de que a cada 5 segundos uma criança morre de fome, mesmo existindo alimentos de sobra no mundo (ver Jean Ziegler, Caros Amigos 195).
Carência
Imagino que no Brasil os sobreviventes desse infanticídio não cresçam cercados por carinhos e regalias. Carentes de tudo, crescerão física, mental e moralmente prejudicados para comporem a maior parte do contingente de menores infratores que serão execrados pelas mídias surdas aos gritos famélicos e convictas de que eles cometem crimes por serem maus por natureza, maldade inata. A solução seria então encarcerar mais cedo. Não há, de fato, solução alguma nisso. A maneira como os últimos governos paulistas tratam os encarcerados é tão infame que hoje, nos presídos controlados pelo PCC não é permitido violência sexual entre os detentos. Ou seja, é proibido pelo partido do crime o que o partido do governo simplesmente ignorou.
Prisões
 

"Enquanto isso, pela primeira vez na história um ministro da justiça brasileiro fala o que muitos pensam: preferiria morrer a ser encarcerado num presídio brasileiro. Seria um pronunciamento alvissareiro se viesse acompañhado de uma política consistente."

Enquanto isso, pela primeira vez na história um ministro da Justiça brasileiro fala o que muitos pensam: preferiria morrer a ser encarcerado num presídio brasileiro. Seria um pronunciamento alvissareiro se viesse acompanhado de uma política consistente. Ok, a maioria das casas de detenção de São Paulo é de responsabilidade do governo estadual. Só que isso não impediria uma campanha propositiva do governo federal para melhorar as condições carcerárias no geral. Mesmo assim, um ministro da Justiça que prefere a morte à execução da Justiça de seu país já é um bom começo. Ainda mais quando esse mesmo ministro se declara contrário à diminuição da maioridade penal por considerar, acertadamente, que a medida fere a Constituição porque se inclui em cláusulas pétreas
Senso comum
Bem verdade que o grosso da população não sabe o que é cláusula pétrea e não está nem aí para isso. Eles também não querem a diminuição da maioridade penal. Se perguntados, os setores mais atrasados da sociedade pedirão a pena de morte como certos jornalistas. O homem do povo como modelo bom, como quer segmentos da esquerda, não existe. Alheios aos meandros da lei, o trabalhador pobre e honesto não é um humanista num mundo desumanizado. Sente medo, raiva e tem como doutrinadores os repórteres policiais de quem repercutem as opiniões simplistas.
“Tem de matar esses vagabundos”, é o que se repete nos portões e nos bares das periferias dos grandes centros, ecoando a imprensa sensacionalista. O trabalhador médio (assim como, aparentemente, certos jornalistas) desconhece que a proibição da pena capital também incide como cláusula pétrea
"Sinhô"
Mais de uma vez vi os jornalistas na TV zombarem do fato de os menores terminarem suas frases com “senhor”. Até imitam sarcásticamente a pronúncia distorcida: “eu não estava fazendo nada, sinhô”, “essa arma não é minha sinhô”. Sem mencionar o preconceito linguístico, falta a esses jornalistas explicar ao público que a causa disso é o condicionamento animalesco a que os presos são submetidos. Do momento em que é efetuada a prisão até o último dia de encarceramento eles devem se dirigir a todos, carcereiros, policiais, o diretor da instituição, etc etc pela forma respeitosa “senhor” em todas as frases proferidas. Quando não o fazem, por esquecimento ou nervosismo, estão sujeitos a pancadas. Acabam asimilando esse tratamento em sua linguagem cotidiana, assim como assimilam também o ódio contido que explodirá em cima das vítimas que encontrarão ao saírem da prisão .
Polícia
As emisoras de TV, em geral exaltam e enaltecem o trabalho dos policiais. É fácil entender: sem o auxílio da polícia (espécie de parceria extraoficial) seria dificultado o trabalho. Elogiar a polícia garante o acesso irrestrito à delegacia e consequentemente aos presos, expostos como culpados antes mesmo de julgados.
A tão decantada eficiência policial, todavia, não passa de mais um maniqueísmo barato. Segundo dados oficiais, para cada 100 crimes violentos cometidos em São Paulo e investigados pela polícia no primeiro quadrimestre de 2013, apenas 5 prisões são efetuadas. A solução, portanto, está longe de situar-se na diminuição da maioridade penal. É necessária reorganização do sistema Judiciário, completa reestruturação de todas as forças de repressão ao crime e a urgente humanização dos presídios.

Autocrítica
 

"Se a diminuição da maioridade penal para 16 for aprovada, logo verão que não surte qualquer efeito digno de nota. Farão auto-crítica, portanto? Claro que não. "

Isso tudo, porém, passa ao largo do que interessa aos meios de comunicação que tendem sempre a se aliar aos setores mais atrasados da sociedade em busca de audiência. Recusam reflexão mais aprofundada porque o “olho por olho” é maneira bem menos trabalhosa de pensar o mundo. Se a diminuição da maioridade penal para 16 for aprovada, logo verão que não surte qualquer efeito digno de nota. Farão autocrítica, portanto? Claro que não. Pedirão a diminuição da maioridade para 14, 12… Até ser possível construir presídios nos berçários.
Desconsideram solenemente que a única saída para tão trágica questão é abordá-la em todos seus inúmeros aspectos, numa reflexão abrangente realizada por um leque amplo da sociedade, porque, enfim, ninguém é dono da verdade. 

A mentira, porém, principalmente no jornalismo brasileiro, tem muitos sócios.

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