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domingo, 2 de agosto de 2015

O cansaço e a luta


15 07 31 Luis Felipe Miguel Luta e cansaço 



























Numa tirinha da Mafalda, Felipe lê a inscrição no pedestal de uma estátua, que descreve o homenageado como “lutador incansável” – e desdenha, afinal difícil mesmo é “estar cansado e continuar lutando”. É a sensação do momento, a de uma fadiga enorme e de uma também enorme força de vontade para não abandonar uma batalha em que a única vitória que se almeja é não recuar mais.

15 07 31 Luis Felipe Miguel Luta cansaço


As forças armadas deixaram o poder no Brasil há mais de 30 anos. Sob certo ponto de vista, nossa transição democrática é um sucesso. Há uma ampla inclusão política formal e ampla liberdade de dissenso, que representam os dois eixos da democratização, segundo a teoria de Robert Dahl. A censura estatal acabou e o aparelho de repressão política do Estado parou de funcionar; quase não há mais prisioneiros políticos e a tortura contra eles foi abolida (embora, é verdade, não contra os presos comuns). Para tristeza de alguns, as intervenções militares são uma hipótese afastada, pois parece haver um amplo consenso, entre as forças políticas, de que o voto é o meio por excelência para constituir governos. Os principais grupos de interesse agem por meio dos poderes instituídos, não à margem deles. A democracia se apresenta, assim, como “the only game in town” (o único jogo disponível na cidade), o que, na visão de autores como Juan Linz ou Alfred Stepan, indicaria a consolidação democrática.
Sob outras perspectivas, porém, o balanço é menos positivo. Por um lado, a luta contra a ditadura canalizava um conjunto de expectativas de efetiva transformação social que acabaram frustradas. Há uma música que encarna isso – “Tô voltando”, de Maurício Tapajós e Paulo César Pinheiro, saudação à volta dos exilados, na forma de um samba pra cima, cheio de esperança. O fim da ditadura anunciava a possibilidade de um país mais alegre, mais justo, mais solidário. Esse país se anunciou na campanha das Diretas, se anunciou na vitória de Tancredo Neves no Colégio Eleitoral, se anunciou na Constituição de 1988 e se anunciou, por fim, na vitória do PT e nos governos de Lula, mas não veio nunca.

Até aí, nada demais. Até aí, estamos no script de cientistas políticos conservadores, como Giovanni Sartori, que dizia que era necessário inflar as expectativas sobre o que a democracia poderia fazer, antes dela ser alcançada, e reduzi-las brutalmente depois. Mas há também o “por outro lado”. Se, por um lado, as esperanças presentes na luta contra a ditadura foram malogradas, por outro as próprias instituições políticas democráticas, que nessa visão conservadora deveriam ser o alfa e o ômega de qualquer projeto de sociedade, mostram-se mais do que frustrantes.

Embora, graças aos últimos escândalos, o reinado de Eduardo Cunha comece a ruir, continuamos – após 30 anos de democracia – com a pior representação parlamentar da história, campeã negativa em qualquer critério que se escolha: integridade, esclarecimento, capacidade intelectual. Não foi Cunha, sozinho, que fez vitoriosa a pauta retrógrada dos últimos meses. Contou com uma sólida maioria de deputados. Todos eleitos pelo povo e, mais do que pelo povo, por polpudos financiamentos de campanha. Da democracia à plutocracia, parece, o caminho é curto. Ao lado desse Legislativo, um Executivo que vive atolado na corrupção e um Judiciário sobre o qual pesa a suspeita de ser muito seletivo em suas ações.

É um sistema político que impõe, a quem quer nele triunfar, uma lógica perversa. O PT, que emergiu do final da ditadura como a principal esperança para a transformação do Brasil, sucumbiu a essa lógica – talvez pelo cansaço. Ele representou um experimento muito especial para as esquerdas no Brasil e mesmo fora dele. Marcou a renovação da prática e do discurso da esquerda brasileira. Sob a liderança (por vezes autoritária e equivocada, mas aportando um valioso elemento de autenticidade) de Lula, brotava uma nova forma de fazer política popular, com todas as promessas e equívocos de algo ainda em construção.

O diferencial que Lula e, por tabela, o PT traziam à cena política brasileira era, como Haquira Osakabe disse certa vez, uma “palavra imperfeita”. Imperfeita não apenas porque transportava para a arena política, de forma inédita no Brasil, a prosódia e a sintaxe próprias das classes populares. Imperfeita sobretudo porque não se prendia às fórmulas acabadas, aos modelos prontos das esquerdas tradicionais e, muito menos, das elites estabelecidas. Queria se alimentar da experiência vivida dos trabalhadores e dos embates cotidianos dos movimentos sociais. Mas, conforme o tempo passou, o discurso e a prática do PT se “aperfeiçoaram” – isto é, adaptaram-se aos padrões da política dominante, em forma e em conteúdo. Os padrões do toma-lá-dá-cá, do tráfico de influência, dos acertos de bastidores e, em especial, de um jogo político em que tudo, absolutamente tudo, é feito para que as pessoas comuns fiquem à margem dele.

É a acomodação, enfim, a uma democracia que realiza muito mal seu próprio ideal. A democracia remete à ideia de autonomia coletiva, isto é, à produção das normas que regem o convívio social pelas cidadãs e cidadãos que estarão submetidos a elas. Com o desenvolvimento histórico do ideal democrático, a noção de cidadania ganhou um inequívoco caráter inclusivo, incorporando não-proprietários, mulheres e minorias étnicas. É contra o pano de fundo deste modelo, ainda que se aceite que ele jamais será realizado em plenitude, que se avaliam os regimes políticos que se dizem democráticos. A redução da democracia a um procedimento – a seleção dos governantes por via eleitoral – é arbitrária, contrabandeando, em geral sem explicitá-la ou fundamentá-la, a percepção de que há alguma relação necessária entre este mecanismo e o ideal democrático.

Se a concorrência eleitoral é um elemento inescapável de uma ordem democrática nas sociedades contemporâneas (e tudo indica que sim), ainda é necessário discutir até que ponto os representantes estão vinculados aos interesses de seus constituintes, se as eleições se estabelecem de fato como um momento em que a cidadania marca suas opções para o futuro coletivo, se ao povo comum é concedido algo mais que uma posição passiva no jogo político. Como mecanismo, a eleição não possui valor intrínseco – a não ser, talvez, o de exilar o uso da violência aberta na disputa pelo poder, se bem que outros métodos, desde que reúnam suficiente consenso social, cumprem o mesmo objetivo. Seu valor depende da capacidade de viabilizar objetivos que estão além dela.

Por isso, a igualdade política, numa democracia que se aproxime de seu sentido normativo, deve ser entendida de maneira mais exigente. Não basta ser uma igualdade formal, consubstanciada no peso idêntico dos votos individuais ou no fato de que, oficialmente, todos têm o mesmo direito de se candidatar aos postos de governo. A igualdade democrática requer a redução dos diferenciais de poder político e a eliminação das barreiras estruturais que forçam grupos sociais inteiros à passividade, à apatia e à abstenção.

Colocada a discussão desta forma, vários de seus elementos ficam deslocados. A redução do universo de alternativas em jogo, com a moderação dos “radicais” e a convergência de todos os atores relevantes num “centro” inflado, que em geral é saudada como demonstração de “amadurecimento” da democracia e passo importante no rumo da consolidação, pode ser vista pelo avesso, sinalizando a banalização da controvérsia política e o esvaziamento das opções submetidas ao escrutínio popular. A desmobilização política, que reduz as pressões sobre os governantes, faz decrescer o grau de conflito e amplia a estabilidade do sistema, indica também a capitulação dos grupos desprivilegiados diante da impermeabilidade das instituições às suas demandas.
Não se trata de negar a importância de garantir que o conflito permaneça em níveis administráveis ou que o governo possua, de fato, capacidade governativa. Mas reduzir a preocupação a esses aspectos, como costuma fazer a literatura vinculada à questão da “governabilidade”, significa retirar da discussão os aspectos que estão de fato associados à democracia. Por isso, não basta averiguar a quantas anda a “consolidação” – um conceito, por si só, ambíguo – da democracia. É necessário investigar a qualidade desta democracia, isto é, em que medida ela consegue realizar as promessas de autonomia coletiva, cidadania inclusiva e igualdade política.

Não é possível dizer que estejamos bem nesses quesitos. No Brasil, como por todo o mundo, os interesses do capital comandam as decisões políticas. O exemplo dramático da Grécia diz tudo: ainda que o povo grego tenha afirmado em plebiscito sua recusa, o governo (“de esquerda”) foi obrigado a aceitar as imposições de um plano de “ajuda econômica” que simplesmente suspende a soberania do país. Programas de ajuste fiscal, como se vê hoje na Grécia, no Brasil, na Espanha, em tantos lugares, apresentados como necessidades naturais, sujeitam milhões de pessoas a privações, ao abandono de projetos de vida, à redução de horizontes, sem que seja dado a elas o direito de opinar. Como diz a escritora espanhola Belén Gopegui, em seu belo romance recente El comité de la noche, “estão nos roubando os dias, um a um”.

O romance fala de pessoas que, na Europa, tentam impedir a legalização do comércio de plasma sanguíneo – uma Europa em que, a leste ou oeste, a decadência dos serviços públicos e a ampliação do império do mercado fragilizam a vida das pessoas. A luta das personagens do livro é para garantir limites ao desmonte do Estado de bem-estar, assim como aqui, no momento, parece que não aspiramos a mais do que evitar retrocessos: evitar o fim da CLT, evitar a redução da maioridade penal, evitar uma “reforma política” catastrófica, evitar a degradação da laicidade do Estado, evitar o aniquilamento total das políticas sociais que, com todos os seus limites, foram adotadas nos governos petistas. “No capitalismo” (e aqui cito outra frase do livro de Gopegui), “o dinheiro não é um meio de troca, é violência”. É essa violência que coloniza cada vez mais os diferentes espaços da vida social e é contra ela que, mesmo cansados, é preciso continuar lutando.



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Luis Felipe Miguel é professor do Instituto de Ciência Política da Universidade de Brasília, onde edita a Revista Brasileira de Ciência Política e coordena o Grupo de Pesquisa sobre Democracia e Desigualdades – Demodê, que mantém o Blog do Demodê, onde escreve regularmente. Autor, entre outros, de Democracia e representação: territórias em disputa (Editora Unesp, 2014), e, junto com Flávia Biroli, de Feminismo e política: uma introdução (Boitempo, 2014). Ambos colaboram com o Blog da Boitempo mensalmente às sextas.

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