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segunda-feira, 6 de julho de 2015

A direita prática e os conservadores sofisticados



eduardo cunha daniel bin
Por Daniel Bin.*


Em meados dos anos 1950, o sociólogo Immanuel Wallerstein escreveu uma dissertação de mestrado1 em que analisava o papel do macartismo nos conflitos entre dois grandes grupos em que dividia-se a direita política estadunidense. Seu argumento central era que a caça às bruxas promovida pelo senador republicano Joseph McCarthy não visava aos membros do Partido Democrata tampouco aos “comunistas” eventualmente presentes na administração do presidente Harry Truman. Segundo Wallerstein, McCarthy tinha como alvo os “conservadores sofisticados,” os quais o senador por Wisconsin queria ver fora das posições de poder no governo dos Estados Unidos.

Aquele trabalho de Wallerstein partiu da ideia central de que havia dois tipos de conservadores: a direita prática e os conservadores sofisticados. Tais categorias eram inspiradas em C. Wright Mills, que as distinguia de acordo as posições de cada grupo conservador em relação às lideranças de trabalhadores. Os sofisticados acreditavam ser capazes controlar a situação social pela via da manutenção de tais lideranças como aliadas inferiores e na linha de frente dos interesses dos primeiros. Distintamente, os integrantes da direita prática temiam a usurpação de suas prerrogativas de poder em situações desse tipo.2 

 Os práticos tinham uma visão mais estreita das questões econômicas e os sofisticados, uma visão dos interesses das classes proprietárias como um todo.3
Cerca de sessenta anos mais tarde, Wallerstein viria a afirmar que aquela mesma batalha descrita em seu estudo “é a batalha atualmente em curso no Partido Republicano nos Estados Unidos, entre o pessoal do Tea Party e os dirigentes conservadores mais clássicos.”4 Foi o que se observou com mais clareza nas últimas eleições legislativas, em 2014. Naquele momento, mais precisamente nas eleições primárias, os conservadores sofisticados do Partido Republicano conseguiram impedir algumas vitórias de pré-candidatos vinculados ao Tea Party, o que, em seguida, permitiu ao partido conquistar o controle do Senado.5




Immanuel Wallerstein, autor de O universalismo europeu: e retórica do poder. A nova edição da Revista Margem Esquerda, n.24 abre com uma longa entrevista com o pensador, conduzida por Daniel Bin.

Mas se no Hemisfério Norte vemos certa contenção de forças mais reacionárias, ou mesmo algum crescimento de movimentos mais à esquerda, como na Grécia e na Espanha, no Brasil a tendência parece querer tomar sentido oposto. Desde depois das primeiras manifestações de rua de junho de 2013, temos visto a revelação de fenômenos que, se por um lado não podem ser classificados como novidade, por outro, não encontravam até então espaço suficiente para deixar o estado latente. Em 2013 esse espaço começou a se alargar. Após as manifestações de caráter popular, cujo marco é a luta pela redução do preço do transporte público, vieram também manifestações reacionárias e, em certos casos, com coloração fascista.

Coloração essa que voltou a aparecer no início de 2015, quando, em meio a manifestações pelo impeachment da presidenta da República, alguns chegaram a pedir coisas como a volta de uma ditadura militar. De um modo geral, o tom usado pela imprensa conservadora na cobertura dos protestos de 2015 foi de exaltação do seu caráter democrático, o que, contudo, deve ser tomado de forma relativa: balas de borracha disparadas por polícias militares contra manifestantes em 2013 e selfies tiradas por manifestantes junto a policiais militares em 2015 são amostras de como conservadores são capazes de relativizar o conceito de democracia.

As manifestações de 2015 foram em parte embaladas por forças políticas que, ao recorrer a uma retórica estilo Tea Party — há quem diga que Obama é “comunista” — se aproximam de uma versão doméstica daquilo que Wright Mills chamou de direita prática. Essa comparação, claro, deve ser feita com as devidas mediações, mas na retórica, a direita prática daqui padece de suporte lógico tanto quanto a direita prática de lá. Mas para quem opta pela retórica em detrimento da lógica, pouco importa serem de uma mesma classe os que financiam as campanhas de republicanos e democratas ou de tucanos, peemedebistas e petistas. Não obstante, isso importa a quem pauta a ação por uma racionalidade de tipo instrumental, ou seja, aquela com vistas aos fins e nunca com vistas à tradição.6 Mesmo que nos altos círculos das grandes empresas e de suas associações também ocorram tensões entre práticos e sofisticados,7 é no segundo grupo que estão os principais financiadores de campanhas eleitorais.

Tem-se a impressão que enquanto o avanço da direita prática era percebido como restrito a manifestações de rua ou em redes sociais, os conservadores sofisticados não viram nisso tantos problemas. Aliás, isso não deixou de lhes ser útil na medida que tais manifestações serviram para colocar o atual governo brasileiro na defensiva. No entanto, quando esse mesmo contexto ajuda a criar condições objetivas para que o reacionarismo até então latente encontre terreno fértil em instituições como o parlamento, os riscos representados pela direita prática começam a ser percebidos pelos conservadores sofisticados. Tomo como evidência dessa hipótese o conteúdo do editorial da Folha de S. Paulo do penúltimo domingo, dia 14, onde se lê que

“nos tempos de Eduardo Cunha, mais do que nunca a bancada evangélica se associa à bancada da bala para impor um modelo de sociedade mais repressivo, mais intolerante, mais preconceituoso […] Os inquisidores da irmandade evangélica, os demagogos da bala e da tortura avançam sobre a ordem democrática e sobre a cultura liberal do Estado.”

O referido editorial sugere que o atual presidente da Câmara dos Deputados seria a personificação de um conservadorismo que o jornal, contudo, trata de forma genérica ao colocar-se como defensor da “cultura liberal do Estado” agora sob ataque. No entanto, Cunha — e isso vale também para a parcela da Câmara que ele por enquanto controla — representa aquela figura que Wright Mills distinguiu do conservador sofisticado para classificar como direita prática. A sofisticação conservadora aqui aparece, por exemplo, no referido editorial, cuja defesa da “cultura liberal do Estado,” aliás, reforça essa ideia. Seguindo Wright Mills, uma das condições que faz sofisticados os conservadores sofisticados é a capacidade de tomar e usar retórica liberal dominante em favor de seus propósitos.8

Enfim, parece que forças conservadoras do tipo sofisticado começam a se mover diante das potenciais ameaças do avanço da direita prática. Um desses movimentos foi o recuo tucano de levar adiante a tese do impeachment da presidenta da República. Não por reconhecer a legitimidade desta, mas a tese que teimava em não encontrar-se com um fato determinado deu àquela insistência a cor de golpe, e isso é atitude antes de práticos do que de sofisticados. Outro movimento significativo deu-se na semana retrasada, quando o governador de São Paulo esteve em Brasília negociando alternativa ao formato de redução da maioridade penal atualmente em discussão no Câmara dos Deputados. Logo em seguida, no dia 15, em novo editorial a Folha de S. Paulo fez coro à proposta do governador ao opinar que, em vez da redução, “a solução mais sensata é a de reformar o [Estatuto da Criança e do Adolescente].”
São esses os movimentos, especialmente o editorial que trata “[d]os tempos de Eduardo Cunha,” que agora surgem como sinais do convencimento, por parte dos conservadores sofisticados, de que se quiserem voltar ao poder em 2018, uma de suas tarefas será a contenção do ímpeto obscurantista da direita prática. Mas aqui o termo contenção não deve ser lido como sinônimo de enfrentamento. Poucos têm sido tão úteis aos conservadores sofisticados contra os seus potencias maiores adversários — os quais são inseparáveis do atual governo — em 2018 do que a parcela da direita prática agora reunida em torno de Eduardo Cunha. Outro problema, para os conservadores sofisticados, será resolver a divisão que já se anuncia dentro da sua maior força partidária, mas este é um problema antigo.


 NOTAS

1.
 Immanuel Wallerstein. 1954. McCarthyism and the conservative. Masters essay. New York: Columbia University.
2.  C. Wright Mills. 1948. The new men of power, Americas labor leaders. New York: Harcourt, Brace.
3. C. Wright Mills. 1956 [2000]. The power elite. New York: Oxford University Press.
4. Gregory P. Williams. 2013. “Retrospective on the origins of world-systems analysis“. Journal of World-Systems Research, v. 19, n. 2.
5. Daniel Bin. 2015. Entrevista: Immanuel Wallerstein. Margem Esquerda: Ensaios Marxistas, n. 24.
6.  Max Weber. 1922 [1964]. Economía y sociedad: esbozo de sociología comprensiva. México: FCE.
7. C. Wright Mills. 1956 [2000]. The power elite. New York: Oxford University Press.
8. Idem.



 Daniel Bin é professor de políticas públicas na Universidade de Brasília. Doutor em sociologia pela mesma universidade, com estágio de doutorado na Universidade de Wisconsin-Madison, realizou estágio pós-doutoral na Universidade Yale. Dele, leia também A financeirização da democracia brasileira, A (in)visibilidade da luta de classes nas Jornadas de Junho,  “Uma pessoa, um voto”, ou “um real, um voto”?

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