Há um
elemento comum, nas manifestações recentes da direita brasileira – e não
só brasileira: o discurso de que o Estado deve recuar e o mercado deve
regular uma porção maior das interações humanas. Enquanto o Estado
premiaria os “preguiçosos” por meio de suas políticas sociais, o mercado
daria a cada um a recompensa justa pelo seu esforço. É o que diziam as
faixas, nas manifestações de março e abril, que reivindicavam o direito
daqueles que “trabalharam muito” a se dessolidarizar dos pobres e
marginalizados. Por vezes, como quando denuncia as cotas nas
universidades, este discurso ainda é tingido por um racismo
indisfarçável.
É um
entendimento que está presente mesmo em agentes que, à primeira vista,
parecem mais motivados por uma pauta retrógrada no âmbito dos direitos
individuais. Basta lembrar de Eduardo Cunha. Chegou à presidência da
Câmara anunciando que barraria qualquer medida em favor do direito ao
aborto, mas tratou de logo encaminhar, a todo vapor, a sacralização do
financiamento privado de campanhas, seu principal interesse na “reforma
política”, e o desmonte dos direitos trabalhistas, aprovando o PL 4330/2004.
Jornalistas e advogados conservadores não tardaram a anunciar as
vantagens da “terceirização”, que consistiriam exatamente em reduzir a
regulação estatal das relações de trabalho, permitindo que a lógica do
mercado opere mais livremente. Se a lógica do mercado opera, dizem eles,
no final das contas todos ganham. Menos direitos trabalhistas gerariam
mais lucro, logo mais riqueza, mais trabalho e maiores salários.
Será que é
mesmo assim? Um conhecimento, mesmo que superficial, da história permite
duvidar. Antes de que os trabalhadores conseguissem se organizar nos
sindicatos e obter o reconhecimento público de alguns direitos,
imperavam a jornada de 14 ou 16 horas, o trabalho infantil, a
insalubridade e o salário de fome, sem descanso semanal e sem férias
remuneradas. Eram essas as condições no século XIX. Engels as descreveu
vividamente em A situação da classe trabalhadora na Inglaterra,
mas quem tiver ojeriza pelo autor pode buscar qualquer historiador
liberal sério que encontrará um retrato similar – efeito de um mercado
de trabalho plenamente desregulado.
A ideia de
que justiça é entregar a cada um aquilo a que seus méritos individuais
dão direito entrou em certo senso comum, mas não é isenta de problemas.
Afinal, “mérito” não é uma característica inata, mas fruto de um mundo
social que valoriza certos atributos. A obtenção de tais atributos
também depende centralmente das circunstâncias em que cada pessoa se
encontra. E caso se prefira enfatizar os talentos naturais, não custa
lembrar, como já anotava John Rawls, que eles são dádivas que recebemos
gratuitamente, não configurando nenhuma forma de mérito subjetivo.
Mercado e justiça
Mesmo sem
questionar o discurso da meritocracia, porém, é difícil aceitar a ideia
de que o mercado realiza algum padrão de justiça, recompensando
qualidades e punindo defeitos. A possibilidade de agir com eficácia no
mercado depende sobretudo do controle de recursos que os próprios
mecanismos de mercado distribuem de forma muito desigual e que refletem
uma série de acasos, a começar pela loteria do nascimento. Ainda há quem
pense que o fato de que os ricos são quase sempre filhos de ricos é uma
demonstração da superioridade do material genético dos privilegiados,
mas evidentemente é bem mais razoável aceitar que a relação causal é
outra. O mercado não premia o mérito, seja lá o que isso for.
Até o mais
competente defensor da ideia de que o mercado realiza um padrão de
justiça, o falecido filósofo estadunidense Robert Nozick, reconhecia que
tal justiça dependia de um momento inicial de igualdade de recursos.
Uma vez que esse momento nunca existiu, toda distribuição posterior deve
ser considerada injusta (conclusão de que Nozick fugia, mas que é
inescapável). Uma proposta de produzir tal estado inicial ideal aparece
no “socialismo de mercado” apresentado por John Roemer, em que o capital
seria redistribuído equitativamente a cada geração. Deixando de lado as
múltiplas dificuldades técnicas do projeto de Roemer, cabe observar que
muitas das oportunidades dos filhos de famílias privilegiadas, como o
acesso a bens educacionais e a redes de contatos, não dependem da
herança que receberão e não são atingidas pela medida.
De resto, a
“justiça” que o mercado realizaria ecoa uma visão de responsabilidade
individual que nega espaço à solidariedade social. Uma aposta errada
pode arruinar de maneira definitiva as possibilidades de vida de uma
pessoa, mas isso não seria problema, já que cada um é responsável por
seus próprios atos. E uma vez que se considera que cada um tem sua
chance, não há nenhum compromisso em relação àqueles que estão em
situação pior. Trata-se de uma visão de justiça que, além de fundada no
pressuposto indefensável da absoluta autonomia decisória dos agentes,
conduz a uma atomismo social bem pouco atraente. Por isso, muitos
apologistas do mercado adotam um discurso diverso e admitem que ele pode
gerar injustiças. Mas esse seria o preço a pagar pela garantia da
liberdade, que o mercado produziria.
Mercado e liberdade
É corrente,
nesse tipo de discurso, a oposição entre o Estado, esfera da coerção, e o
mercado, espaço de interações livres e voluntárias. De fato, o
cumprimento da lei é (ou pretende ser) obrigatório: não depende de minha
vontade usar cinto de segurança ou pagar os impostos. Já no mercado,
não sou coagido a comprar ou a vender nada; só me engajo nestas trocas
se julgo que serão, de alguma maneira, vantajosas para mim. Trata-se, é
claro, de uma visão ancorada num entendimento radicalmente negativo da
liberdade, em que a autoridade política conta como coação, mas a
necessidade material, não. Na verdade, as trocas livres e voluntárias do
mercado ideal só existem nos modelos de seus ideólogos. A maior parte
das pessoas age constrangida por necessidades prementes e esse é um
elemento incontornável do funcionamento do mercado capitalista. Não por
acaso, o capital se opõe a tudo aquilo que reduz a situação de privação
do trabalho – acesso à terra, renda básica universal, pleno emprego.
Pelo menos o
mercado permitiria expressar a intensidade das preferências
individuais. Também é clássica a oposição entre o direito de voto, que
vale o mesmo, quer eu deseje muito a vitória de um candidato, quer eu
seja quase indiferente, e a troca mercantil, em que eu me disponho a
pagar menos ou mais por um produto conforme minha vontade de possuí-lo
seja menos ou mais intensa. Mas tal observação, que pode ser verdadeira
para cada indivíduo, é falaciosa para o coletivo. Quanto mais dinheiro
eu possuo, menor a utilidade marginal de cada real, logo com mais
liberalidade ele pode ser dispendido. Por isso, ricos adquirem bens
mesmo com preferência pouco intensa por eles, ao passo que pobres não
adquirem mesmo aquilo que desejam fervorosamente. Em suma – e ao
contrário da tradição liberal que opõe os dois valores –, qualquer
medida de liberdade será enganadora na ausência de um patamar mínimo de
igualdade.
Cabe lembrar
que o quadro ainda é mais complexo, uma vez que as próprias
preferências que seriam expressas “livremente” refletem assimetrias de
mercado. O ambiente social em que as pessoas definem suas prioridades e
anseios é influenciado pelos discursos de diversos agentes, entre os
quais se encontram, com destaque, a publicidade comercial e a mídia por
ela influenciada. No mercado, se manifestam preferências que o mercado
busca induzir – a começar pela ideia de que o consumo é o caminho tanto
para a solução dos problemas quanto para a autorrealização humana.
Se o mercado
não se realiza como o espaço de liberdade que alguns de seus defensores
desenham, ao menos ele seria crucial para garantir a liberdade na
sociedade como um todo. De acordo com a visão pluralista, desenvolvida
na metade do século passado e ainda vigorosa, sociedades de mercado
permitiriam uma dispersão dos recursos de poder – em contraste com as
economias estatistas, em que poder político e poder econômico estariam
fundidos. Mais uma vez, tal narrativa não passa pelo crivo da
investigação crítica. O poder econômico se transmuta facilmente em poder
político, por meio do financiamento de campanhas, do lobby, da
influência sobre a opinião pública e, enfim, da dependência estrutural
que o Estado tem em relação ao investimento privado. Ele sobrevive da
arrecadação de impostos, que reflete o nível de atividade econômica,
que, por sua vez, reflete o nível de investimento. Com isso, os
governantes, quaisquer que sejam suas simpatias políticas, precisam
introjetar os interesses do capital, garantindo uma situação que
estimule a manutenção de taxas elevadas de investimento econômico. Não é
necessária nenhuma conexão especial com a elite política, nem a
apresentação de algum tipo de chantagem ou ameaça por parte da classe
capitalista; a estrutura econômica garante que seus interesses receberão
uma atenção privilegiada por parte dos detentores do poder de Estado.
Uma linha
auxiliar do argumento de que o mercado protege a liberdade foca em seu
suposto caráter antidiscriminatório. Há quem afirme, por exemplo, que os
mecanismos de mercado combatem o racismo (ou a discriminação contra
pessoas com deficiência) melhor que qualquer política pública: firmas
que se recusassem a contratar negros ou a vender para negros perderiam
bons empregados ou bons clientes e seriam punidas na competição com seus
concorrentes. É desnecessário dizer que isso não tem nenhuma
comprovação empírica. Pelo contrário, regras que coíbam a discriminação
racial se mostraram cruciais para impedir que as empresas respondam ao
incentivo a práticas racistas que a existência de um público racista
fornece. E como o racismo não é um desvio de caráter, mas um conjunto de
dispositivos estruturais, ele faz com que os negros sejam
marginalizados e tenham menor potencial para se tornar “bons empregados”
ou “bons clientes”. Os remédios de mercado para o combate ao racismo
simplesmente não funcionam.
Outras
formas de preconceito também encontram incentivos em práticas de
mercado. A manutenção das mulheres na posição de donas-de-casa e/ou de
objetos sexuais favorece inúmeras indústrias, de eletrodomésticos a
cosméticos, e é pesadamente reforçada pelo discurso publicitário. O
sexismo aberto e renitente da publicidade reforça estereótipos tanto ao
se dirigir às mulheres quanto ao se dirigir aos homens, a tal ponto que,
ainda nos anos 1980, a solução proposta pelo Ombudsman dos Consumidores
da Dinamarca para lutar contra ele foi a proibição da representação de
qualquer ser humanos em anúncios. Na luta contra a desigualdade de
gênero e os estereótipos contrários à emancipação das mulheres, o
mercado certamente tem atrapalhado mais do que ajudado.
Mercado e progresso
Abandonados
os valores mais elevados, como justiça ou liberdade, a defesa dos
benefícios do mercado recua para vantagens mais instrumentais, como a
“inovação” ou a ampliação geral da prosperidade. A concorrência e a
busca do interesse próprio seriam os motores do progresso; sem elas,
estaríamos fadados à estagnação. Se o colapso do modelo soviético, no
final dos anos 1990, serve hoje de ilustração dessa tese, não custa
lembrar que em outros momentos históricos um veredito oposto aparecia
como igualmente óbvio. Quando escreveu seu libelo ultraliberal O caminho da servidão,
em meados dos anos 1940, Friedrich Hayek justificou a superioridade do
mercado unicamente em termos políticos, julgando que não valia a pena
disputar a crença, amplamente dominante, de que a economia centralizada
era mais eficaz.
A
racionalização do processo produtivo parecia evitar vários dos problemas
do jogo do mercado capitalista, como sua vulnerabilidade a crises
cíclicas, e promover um desenvolvimento mais acelerado e constante. O
fato de que hoje o planejamento de tipo soviético tenha sido
desmoralizado não autoriza a ignorar os problemas associados à gestão
puramente mercantil da economia, como as tendências à crise e à
concentração da riqueza ou os elevados custos sociais e ambientais que
implica. Uma prosperidade que é acompanhada pelo crescimento da pobreza,
como ocorre há décadas no mundo capitalista, é a ressurreição da frase
memorável do nada saudoso general Médici, que dizia que “a economia vai
bem, mas o povo vai mal”.
Ao mesmo
tempo, é reconhecido que os fundamentos da inovação tecnológica não são
financiados pelo mercado. A pesquisa básica depende quase que
integralmente de fundos públicos, mesmo nas economias capitalistas mais
ricas. E nem tão básica: muito do que há de mais emblemático na
“revolução tecnológica” atual nasceu diretamente da pesquisa sustentada
pelo Estado, da biotecnologia à informática. Como escreveu a
pesquisadora Mariana Mazzucato, da Universidade de Sussex, “todas as
tecnologias que tornam ‘inteligente’ um iPhone foram bancadas pelo
Estado, da tela sensível ao toque ao sistema de comando de voz Siri”.
Talvez seja
difícil imaginar uma sociedade sem mercado. Talvez algum tipo de
regulação mercantil da atividade econômica seja necessário, não “para
sempre”, mas pelo menos até onde a vista alcança. Mas o projeto de uma
sociedade mais justa, mais igualitária e mais livre – em que as pessoas
tenham ampliado o exercício da sua autonomia – passa certamente pelo
fortalecimento de um espaço abrangente de relações desmercantilizadas.
***
Luis Felipe Miguel é
professor do Instituto de Ciência Política da Universidade de Brasília,
onde editama Revista Brasileira de Ciência Política e coordenam o Grupo
de Pesquisa sobre Democracia e Desigualdades – Demodê, que mantém o Blog do Demodê, onde escreve regularmente. Escreveu, em conjunto com Flávia Biroli, Feminismo e política: uma introdução (Boitempo, 2014), entre outros. Ambos colaboram com o Blog da Boitempo mensalmente às sextas.
Nenhum comentário:
Postar um comentário