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segunda-feira, 29 de junho de 2015

A guerra que estamos perdendo

Imagem por Humberto Tutti 
Alvaro Bianchi

Nuvens carregadas preocupam aqueles que se encontram engajados na crítica política e ideológica ao capitalismo. A sociedade brasileira parece nos últimos anos ter se tornado mais intolerante, autoritária e individualista. O tradicionalismo comportamental, o conservadorismo político, o liberalismo econômico e o fundamentalismo religioso aparentemente estão dando as cartas.
O fato dessas correntes terem se tornado mais evidentes é também porque seus antagonistas também se tornaram mais fortes e visíveis. É porque há greves, ocupações, passeatas pela legalização da maconha, marchas das vadias e paradas LGBTs que a reação se exerce. Mas a reação é muito forte e por isso mesmo seu alcance precisa ser observado. É preciso analisar esses fenômenos de maneira cuidadosa, evitando exageros e superficialidade.

É no terreno da cultura que as correntes tradicionalistas, conservadoras, liberais e fundamentalistas estão ganhando a guerra. O sistema de significações que organiza e dá sentido aos modos de vida existentes na sociedade adquire crescentemente características que produzem e reproduzem a heteronomia no lugar da autonomia, a sujeição no lugar da emancipação, o consumo no lugar da fruição. Ninguém expressa isso melhor do que a indústria cultural. O funk ostentação, o sertanejo universitário, os livros de Paulo Coelho e as pinturas de Romero Britto levam a mesma mensagem a diferentes públicos.

As consequências são múltiplas e se fazem sentir fortemente não apenas nas elites sociais, mas também nas classes subalternas. Nestas últimas, o sistema de significações parece estar em aguda contradição com o modo de vida realmente existente. É entre aqueles que vivem em condições precárias que a cultura da violência se espalha, é sobre as mulheres vulneráveis que o machismo se faz mais presente, é nas favelas que o racismo é mais intenso, é entre os grupos culturalmente diversificados que a intolerância religiosa cresce.
Expressões legítimas da cultura popular-periférica das grandes cidades convivem em tensão com manifestações orientadas em um sentido inverso. Valores e identidades comunitárias das favelas acomodam-se conflitivamente com a apologia de um modo de vida estranho a estas no qual adereços de ouro que não podem ser usados e carros que não podem circular nas ruas de terra são símbolos desejados e cultuados. Não são raros os casos nos quais essa cultura periférica é absorvida passivamente por uma indústria cultural que a regurgita como objeto de consumo imediato para um público que não partilha o mesmo modo de vida. É como se o sistema de significações tivesse se descolado da experiência vivida, um sintoma da crise da sociedade contemporânea.

A ofensiva reacionária

Nada disso era previsível há poucas décadas atrás quando a sociedade brasileira parecia caminhar em direção a formas que estimulavam a participação das pessoas na vida política, o passado ditatorial era fortemente rejeitado e muitos acreditavam que a marcha em direção à expansão dos direitos políticos e sociais, começando pelos direitos trabalhistas, era contínua e ininterrupta. Mas olhando retrospectivamente é possível afirmar que o febril ativismo dos anos 1980 não se expressou em uma nova e abrangente visão de mundo. O classismo prático que caracterizou esse ativismo não encontrou sua forma em uma nova cultura das classes subalternas. Nessas circunstâncias as conquistas existentes corriam o risco de serem rapidamente confiscadas. Foi o que aconteceu.

As derrotas mais duradouras foram, entretanto, as menos perceptíveis: elas ocorreram no âmbito da cultura. Um novo modo de vida foi afirmado, um no qual a competição e o individualismo passaram a ser os valores preponderantes a partir dos quais as pessoas atribuíam sentido às práticas sociais. O darwinismo social, uma ideologia que muitos consideravam confinada ao século XIX, ressurgiu com força, lado a lado com a defesa estridente da meritocracia. Junto com esses valores e essa ideologia espraiaram-se desavergonhadamente os discursos  homofóbicos, machistas, racistas, autoritários e elitistas, as manifestações mais abjetas de uma visão de mundo hierárquica e preconceituosa que expressa as profundas clivagens sociais existentes em nossa sociedade.

Uma guerra cultural estava sendo travada sem que um dos lados do conflito se desse conta. Think tanks liberais foram criados na década de 1980 para difundir as ideias e os valores do livre mercado e forjar os intelectuais da reação. Nos anos seguintes a grande imprensa passou a acolher de braços abertos colunistas cada vez mais tradicionalistas e conservadores. Por fim, o fundamentalismo cristão decidiu entrar de vez na briga e travar uma batalha em defesa de uma visão de mundo que considerava ameaçada por uma frente única formada por comunistas, feministas e gays.

Não faltaram recursos para essa guerra na qual só um exército se encontrava organizado e preparado. Fundações norte-americanas passaram a financiar projetos e institutos foram criados no Brasil para defender os valores do mercado, os quais geralmente se confundem com o mercado de valores. Não eram ideias muito sofisticadas ou filosoficamente consistentes. As iniciativas editoriais foram apenas esporádicas, mas em um país onde se lê cada vez menos e a leitura é de qualidade cada vez pior isso pode ter sido simplesmente uma escolha.

Se a literatura que tradicionalistas, conservadores e liberais publicavam era escassa ou rala, não eram por isso menos ativos: faziam campanhas nas escolas, promoviam cursos para a formação de novas lideranças, arregimentavam apoio na grande imprensa, organizavam jantares com personalidades da política e da cultura nacional, criavam lobbies e estimulavam a criação de bancadas e blocos parlamentares afeitos às suas ideias. Atuavam preponderantemente ao nível das elites e das camadas médias da população, formando molecularmente uma opinião pública reacionária.

A projeção dessa ideologia nas camadas populares coube, principalmente, aos monopólios de televisão, que apostaram cada vez mais em personalidades reacionárias. Aos antigos programas policiais do final da tarde, nos quais criminalidade e pobreza são sinônimos, somaram-se âncoras e comentaristas  reacionários nos jornais nacionais. Logo depois vieram os fundamentalistas evangélicos, o quais ocuparam espaços cada vez maiores e atingiram audiências cada vez mais amplas entre aqueles que não encontravam mais esperança no mundo temporal. Embora simples, os argumentos mobilizados nessas ocasiões apelavam para os medos mais irracionais da população. Eram instrumentos eficazes para os objetivos pretendidos.

A cultura como um campo de batalha

O corporativismo sindical e o possibilismo parlamentar não ofereceram resistência nessa guerra cultural porque não tinham outra cultura a oferecer. A estratégia da pequena política alimentada pela esquerda nas últimas décadas é, na verdade, uma renúncia a toda estratégia. Por meio dos fundos de pensão e das cooperativas imobiliárias os grandes sindicatos entraram no mercado de valores e assimilaram os valores do mercado. Os parlamentares dos partidos de esquerda, muitas vezes eleitos com o apoio desses sindicatos e movimentos sociais, acomodaram-se nas comissões do Congresso e reproduziram os salamaques de seus pares.

Com vidros espelhados e fachadas com grandes painéis de aço, as sedes dos partidos e sindicatos passaram a mimetizar bancos e empresas e seus dirigentes a se vestir como seus adversários. Em seus congressos berram como pastores evangélicos procurando atrair fieis. Suas práticas políticas não se diferenciaram muito daquelas que afirmavam querer combater. Aceitaram as regras do jogo e se autoconfinaram à defesa de interesses econômicos imediatos, na rotina dos projetos de lei, das votações irrelevantes e na gestão dos aparelhos.

Para travar de modo eficiente a batalha no campo da cultura é preciso recolocar a estratégia em seu lugar e passar para o terreno da grande política, coordenando esforços e dirigindo-os em uma mesma direção. É necessário perceber que a cultura é importante espaço do conflito de classes, aquele no qual as visões de mundo se organizam e enfrentam. Sem transformações profundas nesse campo não são possíveis mudanças radicais e duradouras. Aqueles que vêm a luta cultural apenas de modo instrumental e relegam as batalhas decisivas a um futuro distante estão preparando seu próprio fim. A luta por uma nova cultura que difunda os valores coletivos e solidários, que promova a autonomia e a emancipação começa hoje.


Fonte - Blog Junho

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