Pesquisar este blog

quinta-feira, 19 de junho de 2014

A ideologia do mérito pessoal, a meritocracia e as cotas.




Cesar Mangolin

O empenho pessoal em determinadas tarefas, ou na busca de certos objetivos, cumpre um papel fundamental. No geral, uma dada dose de esforço, disciplina e planejamento é requisito inquestionável para que sejam alcançados os resultados propostos. Disso não há dúvida. De resto, a casualidade costuma cumprir também um papel importante.

O problema começa quando pretendemos afirmar que tudo depende apenas do esforço e da dedicação pessoal, como anunciam aos quatro ventos os manuais de autoajuda, os apologetas da ordem burguesa, a maioria dos professores e os desinformados.

Somente em igualdade de condições é possível exigir ou explicar pelo empenho pessoal o resultado de qualquer coisa. É exatamente aí que a ideologia jurídica (não a estrutura jurídico-política) cumpre seu papel nefasto, ao apresentar todos os que vivem em dado país ou região como uma reunião de indivíduos (cidadãos!), livres (juridicamente) e iguais (formalmente).

Estes três elementos formam a tríade que serve de base à ideologia do mérito pessoal. Foi o pensamento liberal quem deu forma a essa ideologia, que marca todas as formações sociais capitalistas e auxilia sua reprodução.

Em outros modos de produção divididos em classes (como, por exemplo, o escravismo e o feudalismo), havia estatutos diferenciados para os desiguais, ou seja, tratavam desigualmente os desiguais: os que trabalham e os que não trabalham e vivem da exploração do trabalho alheio. Esse tratamento desigual demarcava ao mesmo tempo as classes sociais fundamentais daquelas formações sociais e escancarava as relações de exploração do homem pelo homem.

Nas formações sociais capitalistas, o trabalho assalariado e a extração da mais-valia nos setores produtivos e a exploração do trabalho no demais setores exigem o trabalhador “livre” juridicamente. Somente livre e expropriado dos meios de produção é que o trabalhador pode se apresentar voluntariamente ao capitalista para vender sua capacidade de trabalho em troca de um tanto de equivalente universal (dinheiro), com o qual pode comprar os gêneros necessários para manter e reproduzir a vida.

Assentado em dois pilares (o contrato e a propriedade privada), o direito burguês vai tratar igualmente os desiguais e, para tanto, a desigualdade não pode aparecer como ocorre concretamente na forma das classes sociais. Voltando à tríade que serve de base à ideologia do mérito pessoal anunciada acima, a percepção das classes é escondida na figura da população, como soma de indivíduos portadores de direitos individuais, que são iguais formalmente, apenas perante a lei (não se trata de igualdade socioeconômica) e livres juridicamente. Livres e iguais perante a lei para fazer de suas vidas o que bem quiserem, ou seja, nasce daí a ideia de que nessas condições vivemos em uma sociedade aberta, que permite a mobilidade social, uma vez que todos são “sujeitos” da própria vida.

Vivendo as relações concretas como exploradores e explorados, portanto, como classes distintas, a ideologia deturpa a realidade e cumpre o papel de dar sentido ao vivido num plano em que as relações são apreendidas como a ação de indivíduos na luta pelos ideais de sucesso construídos socialmente, que passam, necessariamente, pela aquisição de bens materiais e algum grau de distinção individual. A vida vai aparecer como uma grande diversidade de relações similares às relações mercantis (fonte das ideologias próprias das formações capitalistas, nas quais indivíduos iguais, livres e proprietários privados de algo estabelecem trocas), que são assimiladas e traduzidas para um discurso específico por diversas instituições (os aparelhos ideológicos) que cercam por todos os lados a existência e lhe dá sentido: o próprio Estado, as igrejas, os meios de comunicação, o núcleo familiar, a escola…

Embora a vida seja assim representada e ganha sentido, as relações sociais concretas da ordem capitalista não passa por nenhuma mutação: continua a ser um modo de produção baseado na exploração do homem pelo homem, portanto, dividido em classes sociais distintas e gerador, por suas próprias contradições, de inumeráveis misérias pelo mundo afora.

É a ideologia, portanto, não as relações sociais concretas, quem dá origem à ideologia do mérito pessoal e à defesa da meritocracia, elementos poderosos, como já dito, para a reprodução da ordem capitalista. O poder da ideologia do mérito pessoal não é o de fornecer o argumento que justifica a situação dos que alcançam os tais ideais de sucesso. O poder dessa ideologia é o de fazer com que os que não o alcançam atribuam a si mesmos ou a questões secundárias os motivos de seu fracasso, gerando resignação.

O argumento em favor da meritocracia vai pelo mesmo caminho: serve para justificar, pelo suposto empenho ou qualidades individuais, a manutenção de determinados setores em posições já consolidadas: as classes em seus mesmos lugares, os setores médios em seus espaços próprios…

A mobilidade social apenas ocorre como exceção, embora seja anunciada como regra. São muito reduzidos os casos dos que saem da condição de trabalhadores assalariados e migram ao grande capital pelo mundo afora. Poucos também os que alcançam as condições de vida dos setores médios mais abastados, que se replicam e vivem do temor da proletarização e do sonho do aburguesamento.

Mas, apesar da ideologia, a realidade não pode ser apenas negada. A constatação da imensa maioria empobrecida das formações sociais capitalistas salta aos olhos de qualquer um. Para dar conta do contraste entre a ideologia e a realidade que teima em demonstrar que há algo errado encontramos saídas… ideológicas, ou melhor, por dentro da ideologia, que é inconsciente, ou seja, quem está dentro dela não sabe que está, portanto, trata a deturpação da realidade como sendo a própria realidade concreta.

A partir de dentro da ideologia, a constatação das desigualdades sociais vai levar, portanto, à consciência de que não podemos operar com a meritocracia, a não ser que tenhamos um instrumento de equalização de oportunidades individuais. Nas formações sociais capitalistas esse instrumento privilegiado é a educação formal. Supostamente, garantindo que todos passem pelos níveis da educação formal, colocaremos todos os indivíduos em igualdade de condições para disputar as oportunidades da vida, servindo, a partir daí, o esforço pessoal como a régua que mede e valida os resultados individuais e a certificação escolar como o que justifica e delimita a entrada em determinados postos de trabalho.

Três discursos próprios e a partir de dentro da ideologia derivam daí: primeiro, o discurso, mais próprio dos setores médios, que justificam suas posições pela certificação escolar e o empenho pessoal; segundo, aquele discurso que valoriza o acesso à educação formal como condição para um mundo melhor e o fim da miséria, que afeta quase toda a população, inclusive setores da esquerda, que além de ser falso, é um discurso liberal; por fim, o discurso que justifica a situação de miséria das massas porque não estudaram, porque não quiseram ou porque não tiveram acesso às escolas.

No Brasil, a meritocracia e a certificação escolar têm data: foi com a entrada do grande capital monopolista na década de 1950 e a partir das novas exigências para acesso às burocracias privada e pública, com a adoção de processos seletivos e concursos, respectivamente. É por essa razão que os setores médios são os que fazem mais uso da meritocracia e mais valorizam a certificação escolar: é a prova de seus esforços e a justificativa, diante da burguesia, de que podem e devem ocupar determinados postos. Até então, salvo exceções quase sempre formais, o acesso ao serviço público, inclusive às cátedras vitalícias das universidades, era feito por indicação. Os chamados canais tradicionais de manutenção e ascensão das camadas médias se dava por essas indicações, pelas empresas e negócios familiares, pelo trabalho autônomo de profissionais liberais. A certificação escolar não era uma necessidade. Tanto que até 1970 a maioria das vagas nas universidades brasileiras era ofertada por universidades públicas e gratuitas. Foi somente após o início da transformação monopolista do capitalismo brasileiro (que se completou com a ditadura militar) e da entrada das multinacionais que isso começou a mudar: as empresas familiares faliram aos montes, os profissionais liberais eram absorvidos pelas empresas privadas, o serviço público passou a adotar os concursos públicos… Isso tudo exigia, como pré-requisito (como ocorre hoje) um determinado nível de certificação escolar. Quebrados os canais tradicionais de manutenção e ascensão das camadas médias, seus filhos foram impelidos para a universidade atrás da certificação escolar, que não tinha capacidade para acolhê-los naquele número. É esse movimento que vai gerar a massa do movimento estudantil dos anos 1960, até que a Reforma Universitária da ditadura (de novembro de 1968) e o AI-5 (de dezembro do mesmo ano) resolvessem o problema. 

A lei 5.540 de 28 de novembro de 1968, a chamada lei da Reforma Universitária, em pleno governo de Costa e Silva, adotou várias medidas que eram reivindicadas pelo movimento (extinção da cátedra vitalícia, organização por departamentos etc.) e anunciava a expansão universitária, de preferência, por universidades públicas. A expansão vai ocorrer, na verdade, através da multiplicação de instituições isoladas de ensino superior privadas, que passarão a oferecer um número cada vez maior de vagas e retirar das ruas a massa do movimento estudantil e aplacar os ânimos dos setores médios, que tendiam a passar ao campo da oposição ao regime, depois de lhe ter servido de base. A vanguarda mais politizada do movimento estudantil, que forneceu boa parte dos quadros das organizações de esquerda que resistiram à ditadura, foi calada pelo AI-5 (de 13 de dezembro de 1968, 15 dias após a lei 5.540…) e parte dela trucidada nos porões da ditadura, nas sessões de tortura, na prisão e passou a figurar na lista dos mortos e desaparecidos1

Retornando ao nosso tema central, depois desse breve, mas necessário, recurso à história, podemos concluir que a meritocracia e a ideologia do mérito pessoal cumprem, como toda a estrutura ideológica, apenas um papel fundamental de auxiliar a reprodução do modo de produção capitalista, não permitindo que as razões reais e concretas das nossas desigualdades sociais apareçam de forma clara e transparente. Igualmente o discurso liberal, que gira em torno da educação formal, como instrumento fundamental de equalização de oportunidades, que é replicado por tantas mentes progressistas e até bem intencionadas. A história, porém, não é feita de atos de vontade, muito menos de boa intenção. Como dizia Althusser, a escola aparece hoje como algo inquestionável, como uma instituição fundamental e benfeitora, assim como a igreja católica aparecia na idade média. No resultado, cumprem, de fato, papéis políticos semelhantes…

Não é preciso ser um estudioso do tema para perceber que o que impele às faculdades os filhos dos setores médios e dos trabalhadores às faculdades nos centros urbanos do Brasil é a necessidade do diploma, não a da construção do conhecimento. A diferença está no destino desses setores distintos: há um processo de elitização de determinados cursos e universidades na medida em que a certificação escolar vai se tornando requisito para o emprego e na medida em que as universidades e faculdades privadas, movidas já por um empresariado voltado à educação, ampliam a oferta de vagas para setores médios menos abastados e para setores mais empobrecidos da população. 

O aumento da oferta da população com certificação do ensino superior vai gerar, de um lado, uma desvalorização dos salários desses profissionais e, de outro, o fenômeno da sobrecertificação2: havendo grande oferta de diplomados, as empresas passam a elevar os requisitos de certificação escolar para funções antes ocupadas por gente com apenas algum nível de conclusão da educação básica; isso faz com que o acesso ao ensino superior se torne uma necessidade, dado que o diploma é a condição para o emprego, mesmo nos escalões mais baixos dos setores público e privado. No lado oposto, a defesa de uma certa reserva de mercado vai provocar a elitização mencionada acima: cursos muito caros (mesmo em universidades públicas por causa dos livros, materiais etc.), em tempo integral, com baixa oferta de vagas e processos seletivos e notas de corte altíssimas. 

É com resignação (resultado da ideologia) que as famílias mais empobrecidas aceitarão os cursos mais baratos e “populares” ofertados pelas universidades privadas e os mais “populares” das universidades públicas, que têm maior facilidade de acesso. 

Do outro lado, é com obstinada resistência que os setores médios mais abastados defenderão determinados cursos do acesso dos trabalhadores e, para isso, utilizarão do discurso do mérito pessoal, da defesa intransigente da meritocracia, como condição não de sua ascensão, mas de sua manutenção como setor médio abastado, supostamente legitimado pelo esforço pessoal e pelo investimento familiar na educação em escolas privadas bastante caras e voltadas a esse público. Parece convencer muita gente esse argumento, que vai fazer a crítica da educação básica pública, de má “qualidade”, como forma de pulverizar as responsabilidades.

O Estado, por sua parte, para poder manter sua posição (também ideológica) de uma instituição imparcial e que zela pelo bem comum, vai fazer concessões aos trabalhadores e aos setores médios menos abastados na medida em que alcançam capacidade de organização: bolsas e programas de financiamento para os mais pobres destinados, prioritariamente, às instituições privadas, como o Prouni e o Fies. Também o faz através da adoção de políticas afirmativas voltadas a determinados setores. Entra em cena a polêmica das cotas sociais e as cotas étnicas.

Não há dúvida de que, no que se refere à educação formal de nível superior, a pressão pelas cotas parte de setores médios menos abastados, muito mais que dos trabalhadores manuais. Nas periferias das grandes cidades brasileiras é fácil perceber que esse tema das cotas não comove muita gente, nem mesmo é bandeira de luta de alguns movimentos, como parte do movimento negro que se origina das lutas populares e não de estratos médios. Alguns chegam a combater a política de cotas, fazendo um discurso semelhante aos dos setores médios abastados ou apenas afirmando que, diante dos problemas enfrentados para a manutenção da vida nesses bolsões de pobreza, o acesso ao ensino superior não é um tema relevante.

Duas coisas ainda merecem ser mencionadas neste breve texto e que nos colocam a favor da política de cotas: primeiro, a importância da política de cotas; segundo, o papel que ela cumpre na luta de classes. Vejamos.

Primeiro, as cotas, sejam elas sociais ou étnicas, não resolvem o problema da pobreza, muito menos do racismo ou da discriminação racial, mas cumprem dois importantes papéis. De um lado, as cotas permitem dar acesso a espaços e a profissões negados a uma população que foi excluída historicamente e isso tem um peso importante, inclusive para quebrar o discurso meritocrático, na medida em que essa população não acessa como regra a universidade pública pelos canais tradicionais, construídos para os filhos dos setores médios mais abastados. Pesquisas recentes têm demonstrado que o desempenho dos que entram pelas cotas tem sido igual e as vezes superior ao dos demais estudantes. Por outro lado, não há dúvida que a polêmica que gira nos últimos anos em torno das cotas tem reabilitado e escancarado o debate sobre o racismo e a discriminação étnica no Brasil, debate este abafado ao longo da República pelo mito da democracia racial.

Em segundo lugar, devemos destacar que a educação formal (as escolas, as universidades, os currículos, os professores etc.) é um instrumento poderoso de inculcação ideológica, mas é também espaço da luta de classes, como todos os espaços sociais, porque é permeado por contradições que, ainda que negadas ideologicamente, existem concretamente. Nesse sentido, a defesa da política de cotas, somada a outros elementos, atua nessas contradições, as aguça e ajuda a escancarar as causas reais das desigualdades num país como o Brasil. 

Novamente é preciso dizer que não defendemos aqui que as cotas resolvem esses problemas. Mas é necessário reconhecer que abrem espaço para que possamos desmistificar e colocar às claras os limites da meritocracia e da ideologia do mérito pessoal, conjunto que ao mesmo tempo esconde e justifica as desigualdades sociais e a exploração de classe.



1Para uma análise mais pormenorizada desse processo ver: MANGOLIN, Cesar. Ensino superior e sociedade brasileira: Análise histórica e sociológica dos determinantes da expansão do ensino superior no Brasil (décadas de 1960/70). Dissertação (Mestrado em Educação). UMESP, São Bernardo do Campo, 2008. Disponível em: http://cesarmangolin.files.wordpress.com/2010/02/mangolin-ensino-superior-e-sociedade-brasileira-dissertacao-de-mestrado-2007.pdf
2Tratei melhor o tema, inclusive agregando o elemento da exclusão prorrogada no artigo no qual propus o conceito de “sobrecertificação” no lugar de “sobrequalificação”. Ver: MANGOLIN, Cesar. Sobrecertificação e expansão: o ensino superior brasileiro e a exclusão prorrogada de Pierre Bourdieu. In: Educere et Educare. Vol.6, nº 12 (jul/dez) 2011. pp. 133-147. Unoeste/ Cascavel. Disponível em: http://cesarmangolin.files.wordpress.com/2010/02/mangolin-sobrecertificac3a7c3a3o-e-expansc3a3o-o-ensino-superior-brasileiro-e-a-exclusc3a3o-prorrogada-de-pierre-bourdieu.pdf




Nenhum comentário: