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sexta-feira, 20 de setembro de 2013

A favela e a esquizofrenia do estado

Rogério Daflon

Vista da Rocinha. Foto: Rocinha.Org










O recém-lançado livro “Favelas do Rio de Janeiro, História e Direito”, do advogado Rafael Soares Gonçalves, traz um enfoque inédito sobre o tema, que abre uma discussão sobre a história da construção da favela como uma categoria jurídica. Doutor em História e professor do Departamento de Serviço Social da PUC-Rio, o autor mostra, ao longo da história, como leis urbanísticas incentivaram a formação de favelas, como no tempo em que o subúrbio do Rio tinha um poderoso parque industrial ávido por mão de obra barata. O livro mostra com incrível riqueza de detalhes como o poder público tem sido dúbio em relação às favelas, expondo que essa oscilação produziu desde a política de remoções nos anos 1960 e 1970 até programas de intervenções como o descontínuo Favela-Bairro. Nesta entrevista, o professor destrincha essa relação tão cheia de altos e baixos, que tem como fio condutor a segregação.
 Como foi a e laboração do livro?
Primeiro, fui atrás de uma forma e definir esse espaço da cidade juridicamente, como ela pode ser vista como um objeto jurídico. A definição da favela, grosso modo, faz alusão a uma dupla ilegalidade: uma do solo, já que a favela é considerada como uma ocupação, e uma ilegalidade urbanística, que não respeita a legislação do seu entorno. O fato de definir um espaço ilegal acaba tendo um impacto nos seus moradores. A favela é considerada ilegal e seus moradores também, o que acaba influenciando as relações sociais e de poder e as mobilizações locais. Meu objetivo é justamente desconstruir esse processo, pois a naturalização de certas afirmações associando a favela à criminalidade e à marginalidade não correspondem necessariamente à sua história.
Você pode dar um exemplo?
Muitas favelas se originaram de loteamentos irregulares, ou seja, havia um loteador e, portanto, uma relação de compra e venda. Muitos se originaram a partir da exploração de um proprietário de um cortiço, que exploraram um terreno por de trás de sua casa. E existiram casos que foram ocupados mesmo, mas há uma heterogeneidade nessa historia, que a visão conservadora da favela não valoriza. A ideia de construir a favela como objetivo jurídico está associada ao poder nominativo do direito, que, ao conceber o objeto, traz impactos à vida daquele lugar. Quando trabalhava com os jornais, tive a impressão de que, se eu não levasse as datas em conta, era impossível definir de que época se estava falando, já que muitas das representações negativas das favelas perduram no tempo. A favela era um risco epidêmico, social, político e, nos dias atuais, ao meio ambiente.
Mas isso apesar dos direitos adquiridos pelas favelas?
Desde a década de 1980, e sobretudo depois da carta de 1988, do Estatuto da Cidade, do Direito à Moradia, o direito e a política urbana se voltaram para a regularização e urbanização das favelas. Mesmo assim, as representações negativas persistem. Basta observar a série de jornais intitulada “Ilegal, e daí?” do jornal O Globo em 2005 e as várias reportagens depois de abril de 2010, que mostravam aspectos negativos em relação às favelas sem reconhecer o direito à cidade de seus moradores e evocando novamente à ideia de erradicação das favelas.
Como você dividiu o livro?
O livro é dividido em três partes: na primeira, eu trabalho a construção desse objeto jurídico. O termo vem de Canudos, em 1897, e seu uso se consolida na década de 1910. Em 1909, como expôs o historiador Rômulo Mattos, o Correio da Manhã afirmava que a favela é aldeia do mal. Foi nesse período que essas representação negativas começam a se disseminar. Há outros tantos exemplos. Em 1914, um abaixo-assinado de moradores de Santa Teresa dizia que as favelas estavam destruindo a floresta. Em 1925, surgiu uma legislação que limitava a construção de barracos nas zonas mais centrais, mas permitia nos morros fora dessas áreas. Determinava ainda que, nas vertentes do morro voltadas para a praia, era necessário a construção de um muro para esconder as casas. Fato é que, diante da política higienista de destruição dos cortiços e das sucessivas reformas urbanas das primeiras décadas do século XX, as favelas acabavam se tornando uma forma de se fazer política habitacional. O que quero dizer é que o estado de alguma forma não só tolerou como em alguns casos estimulou a expansão das favelas, o que desmonta a tese de que tudo é invasão.
O poder público então sempre teve uma relação contraditória quanto à favela?
O código de obra de 1937 condena oficialmente as favelas no Rio de Janeiro. No entanto, na segunda parte do livro, exponho que esse mesmo código de obra que afirmava ser necessário destruir as favelas determinava a construção de núcleos de habitações de tipo mínimo para substituí-las. O que defendo é que paradoxalmente legislação condenava, mas garantia certos direitos, ou seja, o fato de ser considerado favela garantia ao menos a obrigatoriedade do estado de fornecer a habitação de um tipo mínimo. A partir da década de 1940, o estado vai ter uma relação dúbia com a favela. De um lado, tolerava essas ocupações, mas evitava qualquer forma de reconhecimento efetivo dessa realidade. Não instalava serviços públicos nas favelas pois elas eras áreas ilegais, mas tolerava a instalação de comissão de luz, construía bicas e realizava melhorias através de entidades como a Fundação Leão XIII. O fato é que elas tinham de parecer frágeis e provisórias. Isso explica por que não foi necessária qualquer legislação para pôr em prática as remoções da década de 1960. As favelas já eram condenadas. Não por acaso, soa muito atual essa lógica descontínua de intervenções em favelas.
E como continua essa história?
Se na segunda parte do livro eu anuncio a desconstrução que culminou nos processos das remoções das décadas de 1960 e 1970, na última parte eu trabalho a reconstrução do conceito jurídico favela. Pois, se a legislações e as políticas eram voltadas para a erradicação desses espaços, a partir da década de 1980 ela precisa se reconfigurar para criar mecanismos desses espaços. O Rio então vira um laboratório de políticas urbanas com diversas intervenções em favelas nas distintas escalas de poder. Muitas práticas históricas, no entanto, retornam. A atual prefeitura fez um decreto pelo qual faz um congelamento urbanístico das favelas, proibindo novas construções.
É dessa ação dúbia do poder público de que trata o livro?

Exatamente. Existia um forte controle sobre a consolidação das favelas durante boa parte dos séculos XX, proibindo construção de alvenaria. Historicamente, no entanto, essa política era seletiva de acordo com o bairro. Na Zona Sul, o controle era muto maior do que nos subúrbios, sobretudo em zonas industriais. A favela do Jacarezinho, já nas décadas de 1940 e 1950, era basicamente uma favela operária. No fim da década de 1960, no meio da política de remoções de então, um documento do Instituto de Desenvolvimento do estado da Guanabara (ideg), continha a afirmação de que as favelas situadas nas zonas industriais deveriam ser mantidas, pois atendiam com mão de obra farta e acessível à sazonalidade da produção.

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