Pesquisar este blog

terça-feira, 2 de julho de 2013

Em defesa da esquerda




MICHEL SILVA

Nas últimas semanas, viu-se em todo o país uma série de grandes manifestações que, em um primeiro momento, diziam respeito a diferentes questões relacionadas ao transporte público. O estopim disso tudo foi o aumento da tarifa do transporte público em São Paulo, passando de atos de alguns poucos milhares de militantes para grandes jornadas que reuniam centenas de milhares de pessoas e ganharam destaque inclusive na imprensa internacional. Para os mais distraídos, o país estava acordando. Contudo, havia um punhado de pessoas que, apesar de sua pluralidade e de fragmentação, militaram ativamente em greves ou outras mobilizações nos últimos anos e que sabiam que o país estava acordado havia bastante tempo. Trata-se da esquerda.
Passadas algumas manifestações, uma parcela das pessoas que participavam dos atos passou a hostilizar as organizações de esquerda, pelo simples fato de levantarem suas bandeiras. O papel que eventualmente essas organizações vinham tendo na articulação das manifestações era esquecido, bem como todo o seu histórico de luta em defesa da classe trabalhadora. Não havia importância no fato de que partidos como PCB, PSTU e PSOL, ou organizações menores como a LER-QI, lutaram lado a lado com os trabalhadores, por exemplo, nas greves do serviço público nos últimos dois anos, enquanto a imprensa, a direita, a classe média e os governos hostilizavam os grevistas. Prontamente a imprensa detectou a informação acerca da rejeição dos partidos nas manifestações e, no mesmo momento em que passou a defender os protestos pacíficos, também passou a defender o antipartidarismo.
Hostilidade da mídia é algo que a esquerda aprendeu a suportar, no Brasil de hoje e de ontem, ou em qualquer outra parte do mundo. O problema que se agravou foi o fato de que a esquerda não apenas passou a ser intimidada a baixar as bandeiras, como passou a sofrer ameaças e, para piorar, passou a ser agredida nas manifestações. O delírio autoritário direitista chegou a fazer com que fossem atacados até mesmo os sindicatos. Deixou-se, assim, um primeiro nível de hostilidade, em que somente a aparição mais explícita da esquerda era impedida, passando para outro em que, por meio de palavras e atos, se pregava a eliminação das esquerdas e até mesmo dos sindicatos. Não há outra palavra para isso a não ser fascismo.
Com isso não se quer afirmar que o país vive a ameaça de um movimento de massas fascista ou mesmo que o conjunto das pessoas que têm participado das manifestações defenda essa ideologia. Elas acreditam não defender ideologia nenhuma, embora expressem o que o senso comum espontaneamente lhes apresenta. Contudo, há duas questões concretas. Primeiro, que há atuação consciente de grupos de extrema direita nas manifestações, criando tumultos e atacando as organizações de esquerda. Segundo, as manifestações, em sua grande confusão, têm expressado pautas conservadoras, baseadas no moralismo e no nacionalismo, sem que se apresente uma estratégia para ação. Nesse meio, a crise com a política institucional, provocada pela experiência das massas com governos como o do PSDB e do PT, faz com que se crie de forma quase irracional uma extrema rejeição a qualquer partido, mesmo os da extrema-esquerda, na medida em que estes são confundidos com as legendas eleitorais vazias de conteúdo que permeiam a política brasileira.
Há alguns anos o apartidarismo tomou conta de uma parcela dos movimentos sociais, e não apenas no Brasil. Na Argentina o delírio antipartidário chegou a tal ponto que deu origem a um partido que era contra os partidos. O fato é que a crise do PT no governo e o declínio de entidades associadas a essa legenda eleitoral, como a CUT e mesmo o MST, potencializou certo ódio aos partidos. Soma-se a isso uma herança da ditadura, que transformou em algo pejorativo o substantivo “político”, quando se faz menção a alguém que possui cargo eleito por um partido. Fora isso, depois da ditadura, nenhum partido de direita conseguiu assumir um papel de liderança institucional conservadora, como aconteceu, antes do golpe de 1964, por exemplo, com a UDN.
Certo é que Movimento Passe Livre (MPL) teve, desde a sua fundação, setores que não simpatizavam com partidos, mas essa relação nunca passou do salutar embate político de ideias e concepções. Mesmo a atuação de militantes de partidos de esquerda dentro do MPL, se respeitados os princípios do movimento, não era impedida. O fato é que o MPL construiu, por meio das jornadas de São Paulo, apoiado por organizações de esquerda e outras entidades, mobilizações gigantescas que chamaram a atenção do país inteiro, que viu naquelas manifestações uma forma de colocar para fora o seu descontentamento com tudo e com todos.
Contudo, o programa do MPL não foi além da revogação do aumento da tarifa e da gratuidade do transporte e logo setores conservadores, organizado ou não, fizeram da sua pauta a reivindicação máxima do país inteiro: contra a corrupção. Essa palavra de ordem não tem qualquer originalidade, afinal em qualquer parte do mundo uma direita que se preza tem essa reivindicação como seu eixo principal. No caso do Brasil, alguns dos maiores defensores do combate à corrupção foram os ditadores que derrubaram João Goulart, em 1964. Eles mesmos acabaram com os partidos e limitaram as ações dos sindicatos. E foram defensores aguerridos do nacionalismo, fazendo isso se expressar justamente no insistente canto do hino nacional. Coisa muito similar foi o fascismo, o nazismo e, no Brasil, o integralismo.
Em algum momento das recentes manifestações os herdeiros desses movimentos de extrema-direita surgiram, seja por meio de suas próprias formas de organização, seja por meio de frações dos partidos de direita, seja por meio da ação policial. Panfletos contra os partidos de esquerda começaram a se proliferar, nos atos e fora deles. Nas redes sociais começaram os ataques a militantes, movimentos sociais e partidos, e chegou-se a convocar uma nova Marcha da Família, aos moldes daquelas do contexto do golpe de 1964. E, para piorar, esses grupos começaram a levar sua política (que em certo sentido é partidária) para os atos e, para piorar ainda mais, levaram seus métodos para os atos. Não precisa conhecer muito de história para saber que o principal método do fascismo nunca foi o argumento, mas a força.
Desgraçadamente, muitas das últimas manifestações tiveram saldos terríveis de agressões não apenas verbais, mas também físicas à militância de esquerda. Entidades e centrais sindicais, partidos, anarquistas, movimentos de diversidade sexual, entre outros setores, sofreram violentas agressões, dentro dos atos, provocando inclusive a divisão de algumas manifestações. Em capitais como Rio de Janeiro e São Paulo a extrema-direita não poupou violência contra qualquer pessoa que pudesse ser associada a qualquer coisa que lembrasse a esquerda, ou mesmo que levantasse qualquer bandeira que não fosse a verde e amarela.
O fascismo no Brasil ganhou uma nova face, em certo sentido voltando a suas origens, inserindo-se nos movimentos sociais. Seu discurso fácil dialoga de perto com o senso comum, forjado no liberalismo e no conservadorismo, que permeia a maior parte das manifestações pelo país. Embora com algumas conquistas pontuais, as manifestações possivelmente continuarão em algum sentido, tendo em foco agora não a luta pela da redução da tarifa, mas sim do fim da corrupção e outras questões genéricas.
Nessas últimas manifestações não se percebe um projeto para o país, como em algum momento defendeu a esquerda nacionalista, ou uma estratégia de transformação social, como defendem os socialistas. O que há é uma indignação vazia, sem politização, que pretende unicamente resolver os problemas mais superficiais que seus olhos conseguem enxergar de perto. Será dentro desse contexto sem politização e imediatista que a extrema-direita, que tem clara sua estratégia política, tem a possibilidade de crescer e se tornar uma força política muito mais ampla do que a meia dúzia de minúsculos grupos hoje espalhados pelo país.
Para a esquerda, não há outro caminho que não a unidade na luta contra o fascismo e, mais do que nunca, o reafirmar de suas bandeiras de transformação social e de defesa dos interesses dos trabalhadores, nas manifestações e nas lutas cotidianas. Nesse momento, é tarefa da esquerda, articulada aos sindicatos e demais movimentos sociais, construir ações unitárias que apontem para um programa que expresse os interesses mais sentidos dos trabalhadores. E, mais do que isso, a esquerda precisa ter a clareza da estratégia socialista, de superação da sociabilidade capitalista, e de quais são os caminhos que os revolucionários precisam trilhar para caminhar juntos.

* MICHEL SILVA é doutorando em História na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).

Nenhum comentário: