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quarta-feira, 24 de dezembro de 2014

A geografia imaginária e a segregação real


14.12.03_Christian Dunker_Geografias imaginárias segregação real_ 

[“Illustration de hypothèse des plagues tournantes en psychogéographique”, Guy Debord, 1957]


Quem cursou o extinto segundo grau, nos anos 1980, passou por matérias como “Educação Moral e Cívica” e “Organização Social e Política do Brasil” aprendendo dois fatos elementares sobre nosso lugar no mundo. Não somos nem subdesenvolvidos, nem desenvolvidos, mas um país “em vias de desenvolvimento”. A segunda verdade luminar é que estávamos na periferia do mundo. Girávamos em torno das potências centrais, cujo centro do centro, por sua vez, estava na fronteira da cortina de ferro.
A síntese destas duas ideias, de desenvolvimento e periferia, estava na alegoria geográfica conhecida como Belíndia, mistura entre zonas de desenvolvimento, comparáveis com a Bélgica, e outras zonas de miséria, tais como na Índia. O fato que nos escapava no exemplo, e que indicava sua dimensão ideológica, é que Bélgica e Índia não fazem fronteira. A Belíndia é um país imaginário que suprimiu a fronteira real que estava em questão.
Tais geografias imaginárias compõem nossa experiência de mundo e nossa relação com a cultura. São como aqueles mapas do século XVI que representavam a América como uma espécie de ilha ou bloco crivado de rios, ou que descreviam a África com a metade do tamanho da Europa. Em um dos cantos da Igreja de Santa Sofia, em Istambul, está desenhado não só todo o mundo até então conhecido, mas o umbigo do mundo, que curiosamente coincidia com o próprio local onde se está. O umbigo é uma zona de passagem, entre exterior e interior, uma fronteira, portanto, mas é também o centro, do qual o resto do corpo é a periferia.
Muro de Berlim
Quando estive em Berlim confirmei como a experiência geográfica pode modelar nossa perspectiva de mundo. Uma cidade dividida por um muro de 150 quilômetros, que concentrava alegoricamente o ponto de confrontação entre Leste e Oeste era, na verdade, dividida de modo disforme entre o norte e o sul. Essa era a fronteira da fronteira, que hoje talvez tenha se deslocado para Jerusalém.
Entre os jovens de Berlim há uma espécie de identificação com o novo mundo. Deles se espera algo a mais, tratando-se de uma geração que nasceu sob os escombros do muro, que por sua vez foi erigido sob os escombros de outro mundo. Tudo se passa como se esta experiência de liberdade deixasse um sentido pedagógico, uma obrigação de utopia, o compromisso e a promessa de criar uma nova geografia imaginária.
Muros culturais
Outra experiência que me fez considerar o problema do tamanho e da organização “psicológica” do mundo em sua relação com o “mundo real”, seja lá qual medida e forma ele venha a ter, se deu no contexto de discussão sobre políticas culturais na cidade de São Paulo. Colocou-se em pauta que tipo de insumo deve-se facultar aos que moram na periferia: longas cortinas de veludo, cadeirames de madeira e palcos tradicionais, com aulas de violino e dança clássica, ou, por outro lado, incentivo aos grupos locais de hip-hop, palcos de arena e instalações compatíveis com artistas nascentes no graffiti e quiçá no samba?
Os que pensavam a partir do centro tendiam a valorizar a cultura local, reforçando assim os potenciais agentes de uma cultura mais popular, que deveria migrar lentamente para o centro de nosso complexo cultural. Consultados diretamente, aqueles que viviam na periferia responderam que sem dúvida preferiam recursos “tradicionais” aos “locais”. Claro que uma consulta deste tipo pode ser tão parcial quanto os preconceitos, de lado a lado, envolvidos em tal assunto.
Levantou-se então a experiência na qual ônibus gratuitos foram postos à disposição da população da periferia para trazer pessoas para o “centro”, nos fins de semana, para participar de ações culturais convencionais, como por exemplo, as que ocorrem no Teatro Municipal da Praça Ramos de Azevedo. Novamente a consulta prévia apontava grande interesse popular neste serviço, todavia a frequência real de uso ficou muito abaixo do esperado.
Uma consulta mais fina acusou outro problema: a vergonha. Apesar do transporte e ingresso gratuitos pairava a suspeita de que os potenciais usuários não saberiam se vestir ou se comportar em uma situação tão codificada como aquela. Ou seja, mais uma vez é a distância medida na geografia imaginária que define o problema. E esta distância dificilmente se vence apenas com mais ônibus e metrô. A geografia imaginária cria e mantém, portanto, efeitos de segregação Real.
Muros universitários
Outro exemplo. Há anos a Universidade de São Paulo insiste em campanhas para que alunos da rede pública de ensino prestem seu exame vestibular. Delegaram-se embaixadores da universidade, criaram-se pré-iniciações científicas, divulgou-se de toda maneira as “facilidades”, as políticas de cotas (ainda que tímidas), e os resultados não foram compatíveis com o aumento objetivo da disponibilidade.
Um grande amigo, que trabalha com orientação vocacional, lembra que para as populações de baixa renda a ideia de escolher uma profissão e de fazê-lo em conformidade com seu desejo, é uma ideia rara e relativamente nova. Não se trata de um impedimento, de uma restrição positiva, mas apenas de uma espécie de exclusão do mapa. Portanto, depois e além da exclusão objetiva é preciso pensar neste tipo de exclusão subjetiva. Nesta segregação feita de discursos e de muros, alguns deles feitos de outra substância que não tijolos e ferro.
A imagem do espaço público
Talvez um problema de base remonte ao modo intuitivo como nós representamos o espaço público, em geral como sendo composto por “esferas”. Esferas de valores, esferas de normas, esferas de sistemas simbólicos. Sabemos que não há esfericidade alguma no que estamos dizendo. Trata-se de uma metáfora. Mas diante do que coloquei antes espero ter trazido elementos para advogar que se trata de uma metáfora “com força de lei”. Witgenstein dizia que “os limites de nosso mundo são os limites de nossa linguagem”, e metáforas nada mais são do que a indicação de um limite da linguagem, pela própria linguagem. Daí que a metáfora compreenda e organize o regime visual que nos faz ver o mundo dividido, entre o dentro e o fora, que nos faz achar natural que nossas fronteiras sejam protegidas, criadas e demarcadas por muros. O processo de condominiação que caracteriza o capitalismo à brasileira, este que saiu da periferia do atraso para tornar-se modelo de precariedade administrada que hoje exportamos para o centro do mundo, depende no fundo do fato de que nossa geografia imaginária comporta muros demais.
Lacan argumentou que a diferença entre o mundo pré-moderno e o mundo moderno é que o primeiro tinha uma estrutura de sobreposição entre o macro-cosmos e o micro-cosmos, ou seja, uma estrutura concêntrica e esférica. A modernidade, para Lacan, caracteriza-se por outra organização do espaço, ou seja, a Garrafa de Klein. Entre as muitas propriedades deste objeto matemático contra-intuitivo, está o fato de que ela se comunica com o fora, sem ser, ao mesmo tempo, uma superfície “aberta”. O interessante na Garrafa de Klein é que ela não é composta por superfícies equivalentes a muros, mas pela combinação de duas superfícies “torcidas”. Assim, a cada momento há o lado de cá e o lado de lá, mas se observamos o conjunto veremos que a fronteira é indeterminada, ela passa do dentro ao fora, como nas figuras do desenhista holandês Escher.






Isso pode ser ilustrado pela problemática examinada por Lévi-Strauss em torno de duas tribos em permanente disputa territorial, que aqui adapto para meus propósitos. Como bom Europeu, aliás belga, ele intencionava delimitar o problema achando um ponto comum, que pudesse gradativamente diminuir as diferenças até que uma convenção, mutuamente consentida, pudesse trazer a paz. Para tanto pediu-se que a tribo “A” representasse a geografia do problema, obtendo-se assim um papel com uma linha divisória horizontal. A interpretação é clara. A tribo “A” lutava para defender seu lugar “natural” que “naturalmente” posicionava-se acima no mapa, enquanto os irascíveis e beligerantes membros da tribo “B” indispunham-se contra este fato, intrometendo-se constantemente em terreno alheio, causavam a guerra.
Havia assim, os de “cima” a e os de “baixo” e a guerra derivava desta divisão. Tudo parecia próximo de uma solução negociada quando o antropólogo decide consultar a tribo “B”, que tal qual a Índia, compunha-se de inúmeras clãs e subdivisões, todas elas concordantes com o fato de que o mundo dividia-se em dois campos diferentes: os “centrais”, envolvidos em uma região bem no meio do mapa, e os “periféricos”, cujas terras começavam depois desta fronteira e se espraiavam por infinitos cantos do mundo. Daí que os “Bs” achassem absolutamente incompreensível que os “As”, com tanto lugar no mundo para viver, viessem a em ocupar justamente a parte que era devida “historicamente” aos “Bs”.
Posto dessa maneira o exemplo parece confirmar a perenização da guerra, mas este não é o caso. Muito menos o de imaginar uma sociedade sem antagonismos, como mero fluxo sistêmico de informações, bens e oportunidades. O que precisamos é de um mapa que não seja binário, um mapa que interprete a fronteira impossível, mas não obstante Real, da Belíndia, como um litoral. Um litoral tem zonas de indeterminação, pontos de interpenetração e principalmente transformações determinadas pela perspectiva que se assume diante dele. Um litoral pode comportar marés, recifes ou praias. Sobretudo o litoral não é uma fronteira artificial nem natural, ele é uma fronteira móvel. Uma Garrafa de Klein permitiria representar um mapa imaginário no qual “centro” e “periferia” se invertem assim como os de “cima” e os de “baixo” se indeterminam. Isso é também chamado, em topologia lacaniana, de círculo de revolução.


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Christian Ingo Lenz Dunker é psicanalista, professor Livre-Docente do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (USP), Analista Membro de Escola (A.M.E.) do Fórum do Campo Lacaniano e fundador do Laboratório de Teoria Social, Filosofia e Psicanálise da USP. Autor de Estrutura e Constituição da Clínica Psicanalítica (AnnaBlume, 2011) vencedor do prêmio Jabuti de melhor livro em Psicologia e Psicanálise em 2012, seu livro mais recente é Mal-estar, sofrimento e sintoma: a psicopatologia do Brasil entre muros (Boitempo, no prelo). Desde 2008 coordena, junto com Vladimir Safatle e Nelson da Silva Junior, o projeto de pesquisa Patologias do Social: crítica da razão diagnóstica em psicanálise.

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