Apesar do
pacote de medidas anticíclicas implementado pelo governo federal
buscando reverter a forte desaceleração da atividade industrial no país,
o Brasil continua flertando com a estagnação econômica. De acordo com
os analistas mais prudentes, teremos algo entre 1,5% e 2% de crescimento
do Produto Interno Bruto (PIB) este ano.
Após o medíocre resultado de
2,7% de crescimento alcançado ano passado, 2012 seguramente será bem
pior e as autoridades governamentais começam a afirmar que a retomada
virá apenas a partir do próximo ano… Ou seja, a despeito da tese do
“desacoplamento” do Brasil em relação às economias centrais, tese
bastante duvidosa após sucessivas décadas de mundialização capitalista, o
cenário atual demonstra que o fantasma da crise econômica mundial
aportou com força no país. No entanto, não são poucos aqueles que
continuam apostando na capacidade do governo de evitar que, em ano
eleitoral, a atual desaceleração econômica transforme-se em uma ameaça
ao projeto de poder lulista.
Afinal,
apesar do fraco desempenho da economia, o mercado de trabalho tem se
mantido aquecido e a desconcentração de renda na base da pirâmide
salarial não parece dar sinais de reversão… Evidentemente, há algo de
verdadeiro nessa constatação. Malgrado os planos de demissão voluntária
(PDVs) já anunciados por algumas montadoras, de uma maneira geral, até o
momento, as empresas não estão demitindo. Isto alimenta uma sensação de
que o buraco não é tão profundo e a economia vai se recuperar em breve,
desanuviando o céu sobre o Palácio do Planalto. Aparentemente, esta
esperança esquece-se convenientemente de uma velha lição do marxismo
crítico que floresceu na América Latina entre as décadas de 1950 e 1960:
em países outrora colonizados e depois subdesenvolvidos, as modernas
relações de produção capitalistas são dominadas pelo atraso, tendendo a
reproduzir as bases materiais da produção massificada do trabalho
barato.
Após tanta
mistificação em torno da chamada “nova classe média”, muitos se
esqueceram de que se olharmos por trás da relativa desconcentração de
renda entre os que vivem do trabalho encontraremos a dura realidade de
uma sociedade periférica cuja economia depende estruturalmente do preço
anomalamente baixo da força de trabalho. Em suma, os trabalhadores
brasileiros tornaram-se reféns de um modelo de desenvolvimento
capitalista cuja estrutura alimenta-se de condições cada dia mais
precárias de vida e de trabalho. Se a gênese desse modelo remonta ao
início dos anos 1990, quando as políticas de ajuste estrutural
implementadas pelos governos Collor e FHC elevaram a taxa de desemprego
aberto de 3% para 9,6% da População Economicamente Ativa (PEA),
nocauteando a massa salarial (bastaria lembrar que, de 1995 a 2004, a
participação dos salários na renda nacional caiu 9% enquanto as rendas
de propriedade aumentam 12,3%), sua consolidação foi obra dos governos
de Lula da Silva.
À primeira
vista, a ênfase social do modelo de desenvolvimento pilotado pela
burocracia lulista anunciaria uma alternativa. Afinal, houve uma intensa
reformalização do mercado de trabalho durante a década passada que,
somada a um crescimento econômico da ordem de 4% ao ano, redundou em uma
incorporação média de aproximadamente 2,1 milhões de novos
trabalhadores por ano ao mercado formal. A base da pirâmide salarial
aumentou nitidamente, fortalecendo o mercado de trabalho brasileiro:
entre 2004 e 2010, a participação relativa dos salários na renda
nacional aumentou 10%, enquanto os rendimentos oriundos da propriedade
decresceu cerca de 13%. No entanto, destes 2,1 milhões de novos postos
de trabalho criados por ano, cerca de 2 milhões remuneram o trabalhador
em até 1,5 salário mínimo. Eis o segredo de polichinelo: crescimento
apoiado em trabalho barato.
Dispensável
dizer que estes trabalhadores simplesmente não são capazes de poupar. Ou
seja, todo o dinheiro que entrou na base da pirâmide salarial na última
década foi imediatamente convertido em consumo popular. E o aumento
desse tipo de consumo combinou-se com o barateamento das mercadorias
proporcionado pelo aprofundamento da mundialização capitalista. Um novo
padrão de consumo emergiu no país: pós-fordista, pois baseado na
capacidade do regime de acumulação mundializado em multiplicar a oferta
de novos bens; popular, pois apoiado no crescente endividamento das
famílias trabalhadoras que precisam fazer das tripas coração para pagar
as incontáveis prestações do comércio varejista.
Ocorre que
este novo padrão de consumo repousa não sobre os ganhos de produtividade
proporcionados pelo desenvolvimento da indústria nacional, mas,
sobretudo, sobre os ganhos de escala garantidos por alguns setores
estratégicos: mineração, petróleo, agro-indústria e construção civil. E
esses motores econômicos não são conhecidos por contratar
predominantemente força de trabalho complexa: ao contrário, eles
empregam largamente força de trabalho não-qualificada. Como
consequência, a base da pirâmide alarga, mas remunera muito mal. A
economia cresceu às custas da deterioração da indústria de
transformação, a única capaz de garantir ganhos reais de produtividade.
Ou seja, as relações de produção capitalistas representadas por uma
moderna indústria financeira, pelo complexo processo de exploração do
pré-sal e pelo desenho pós-moderno dos novos estádios da Copa do Mundo,
apenas reproduzem as bases materiais da produção massificada do trabalho
barato. Até quando?
* Publicado originalmente na Revista Sociologia Ciência & Vida.
***
Ruy Braga,
professor do Departamento de Sociologia da USP e ex-diretor do Centro
de Estudos dos Direitos da Cidadania (Cenedic) da USP, é autor, entre
outros livros, de Por uma sociologia pública (São Paulo, Alameda, 2009), em coautoria com Michael Burawoy, e A nostalgia do fordismo: modernização e crise na teoria da sociedade salarial (São Paulo, Xamã, 2003). Na Boitempo, coorganizou as coletâneas de ensaios Infoproletários – Degradação real do trabalho virtual (com Ricardo Antunes, 2009) e Hegemonia às avessas (com Francisco de Oliveira e Cibele Rizek, 2010), sobre a hegemonia lulista, tema abordado em seu próximo livro, A política do precariado: do populismo à hegemonia lulista, a ser lançado pela editora no segundo semestre de 2012.
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