Agora, a bola da vez são as rodovias e as ferrovias. Em
seguida virão portos, hidrovias e os aeroportos. Parece evidente que
conceder a exploração de um aeroporto ao capital privado por 25 anos é
uma forma de privatização
Por Paulo Kliass, da Agência Carta Maior
Parece que tudo começou com a postura defensiva adotada pela
Presidenta Dilma, quando da apresentação de seu novo pacote de benesses
ao capital privado – o Plano Nacional de Logística (PNL). No dia 15 de
agosto, durante a cerimônia no Palácio do Planalto, o discurso já
iniciava com o rebatimento antecipado das críticas que eram esperadas.
De acordo com seu entendimento, não se tratava ali de privatização
alguma, mas tão somente de concessão. Mas, afinal, qual a diferença
entre esses dois processos? Tentemos, pois, entender um pouco melhor
esse “imbroglio”.
A exemplo do ocorrido em outras circunstâncias posteriores a 2003, o
anúncio do plano evidenciava uma espécie de ruptura com as propostas que
sempre foram defendidas pela maioria dos integrantes do PT, antes de
chegarem ao poder no plano federal. O próprio tema da privatização havia
sido um ponto sensível do debate eleitoral no final de 2010, com a
ofensiva cristalina da candidata contra o adversário tucano. Assim,
imaginava-se que não haveria risco de o governo recuperar tal assunto e
colocá-lo de novo no centro da agenda política.
Privatização inclui outras modalidades além da venda de estatais
O argumento apresentado por Dilma e por todos aqueles que tentam, desesperadamente, escapar da acusação de “privatista” é bastante frágil. Até tento compreender a necessidade política dos governistas defenderem seus representantes a todo custo, inclusive em momentos difíceis como este. Mas a tarefa é inglória, além de complicada. Na verdade, tentam se apegar a uma definição restritiva e meramente juridicista do conceito de privatização. Aí, até que fica fácil, numa abordagem de simples aparência, sem que se chegue à essência do problema. De acordo com tal interpretação, só caberia qualificar de privatização ao processo de venda de uma empresa estatal ao setor privado. E ponto final! Tudo o mais que escape a essa definição esquemática e casuística deixa de pertencer ao universo da privatização. Simples assim!
O argumento apresentado por Dilma e por todos aqueles que tentam, desesperadamente, escapar da acusação de “privatista” é bastante frágil. Até tento compreender a necessidade política dos governistas defenderem seus representantes a todo custo, inclusive em momentos difíceis como este. Mas a tarefa é inglória, além de complicada. Na verdade, tentam se apegar a uma definição restritiva e meramente juridicista do conceito de privatização. Aí, até que fica fácil, numa abordagem de simples aparência, sem que se chegue à essência do problema. De acordo com tal interpretação, só caberia qualificar de privatização ao processo de venda de uma empresa estatal ao setor privado. E ponto final! Tudo o mais que escape a essa definição esquemática e casuística deixa de pertencer ao universo da privatização. Simples assim!
A estratégia pretende cotejar o PNL com os processos privatizantes
ocorridos durante os anos em que o PSDB esteve à frente do governo
federal. Assim, vale todo o tipo de força expressiva do simbolismo
comparativo: “nós não praticamos a privataria tucana”; “nós não
dilapidamos o patrimônio público”, “nós não vendemos empresa estatal a
preço de banana”; “alguém aí viu a Dilma batendo martelo em leilão na
Bolsa de Valores?”; e por aí vai. Ora, se a hipótese inicial fosse mesmo
verdadeira, então não haveria realmente nada mais a acrescentar. Os
danos provocados pela política de privatização nos tempos de FHC foram
realmente muito maiores para o País e para a maioria da população.
No entanto, o problema é muito mais complexo do que uma mera
tentativa de simplificação oportunista e rasteira do conceito de
privatização. A venda de uma empresa estatal para o setor privado é
apenas uma das inúmeras modalidades de privatização que a história
recente do capitalismo nos proporciona. Colocar a discussão nesses
termos assemelha-se muito ao debate acerca do valor “justo” de venda de
uma empresa privatizada. Ora, se por acaso o resultado do leilão da Vale
do Rio Doce tivesse sido superior ao preço de banana obtido, então a
sua privatização deixaria de ter sido um equívoco?
Neoliberalismo e privatização
A tendência da moda privatizante pelos continentes afora remonta ao início do período chamado de neoliberalismo. A crise vivida pelo mundo capitalista no final dos anos 1970 culminou com importantes mudanças políticas em alguns de seus países, a maioria delas com viés conservador. As transformações mais significativas foram, com certeza, a chegada de Ronald Reagan, do Partido Republicano, à Presidência dos EUA e a indicação de Margaret Thatcher como Primeira-Ministra da Inglaterra, à frente de um gabinete bastante conservador. Uma das conseqüências mais negativas de tal período foi a consolidação hegemônica de um discurso liberal radicalizado, em que toda e qualquer menção a Estado ou à interferência da ação pública era considerado como herético e ineficiente.
A tendência da moda privatizante pelos continentes afora remonta ao início do período chamado de neoliberalismo. A crise vivida pelo mundo capitalista no final dos anos 1970 culminou com importantes mudanças políticas em alguns de seus países, a maioria delas com viés conservador. As transformações mais significativas foram, com certeza, a chegada de Ronald Reagan, do Partido Republicano, à Presidência dos EUA e a indicação de Margaret Thatcher como Primeira-Ministra da Inglaterra, à frente de um gabinete bastante conservador. Uma das conseqüências mais negativas de tal período foi a consolidação hegemônica de um discurso liberal radicalizado, em que toda e qualquer menção a Estado ou à interferência da ação pública era considerado como herético e ineficiente.
Outra importante herança dessa verdadeira era das trevas no
pensamento econômico e social foi a desconstrução das estruturas
erguidas no cenário posterior à Segunda Guerra, em particular no espaço
europeu. Uma verdadeira batalha ideológica e no terreno contra o Estado
do Bem Estar Social, em busca da construção de um novo paradigma para o
processo de acumulação de capital em escala global.
Assim, cada vez mais foram ganhando espaço na agenda dos organismos
multilaterais (Fundo Monetário Internacional – FMI, Banco Mundial – BM,
União Européia – UE, entre outros) os programas de redução da presença
do Estado e os incentivos para a ocupação crescente dos espaços públicos
pelo capital privado. Alguns anos depois, o simbolismo da queda do Muro
de Berlim e a reconversão dos países do chamado socialismo real ao
credo do capitalismo liberal contribuíram também para reforçar a idéia
de que a redução ao chamado Estado-mínimo era uma necessidade
inescapável. Esta era a grande linha diretriz do processo de
privatização: menos setor público e mais setor privado; menos Estado e
mais mercado.
Foram anos de um verdadeiro esmagamento político e ideológico, onde
os meios de comunicação, os centros de pesquisa e as próprias
universidades foram submetidos a uma espécie de lavagem cerebral
generalizada. Os espaços institucionais para o pensamento crítico e a
reflexão questionadora eram relegados ao mínimo possível. Até mesmo os
autores que se alinhavam com a ordem capitalista, mas numa vertente
moderadamente social-democrata (como os keynesianos), eram identificados
como inimigos a serem detonados a todo custo.
Estado mínimo, mercado máximo
Essa ampla onda de desconstrução da ordem existente foi a característica central do processo de privatização. As formas de promover a ampliação da presença do setor privado e da aniquilação do espaço do Estado foram variadas. A mais evidente e simbólica, sem dúvida alguma, era a venda pura e simples de uma empresa estatal ao novo proprietário – o empresário privado. Mas mesmo a simples transferência do patrimônio público para o capital contemplava múltiplas modalidades: venda direta por licitação; venda por leilão de melhor preço; venda da maioria de ações com direito a voto; venda da totalidade de ações, com manutenção das chamadas “golden shares” – quando o Estado ainda ficava com direito a veto em questões estratégicas; estímulo à formação de parcerias entre o setor público e o setor privado (PPPs) depois da venda; etc.
No entanto, para além dessas inúmeras formas de transferência da
propriedade da empresa estatal, o processo de privatização previa, e
ainda prevê, outras modalidades de redução da presença do setor público e
de ampliação do espaço de atuação para o capital privado. E aqui entra
um conjunto amplo de medidas, tais como: i) quebra do monopólio estatal
de setores considerados estratégicos; ii) a desregulamentação de setores
monopolizados; iii) a ampliação da concessão de setores e atividades
para o setor privado; iv) a liberalização de certas áreas à concorrência
para grandes grupos internacionais; v) a abertura de setores de bens e
serviços públicos à gestão pelo capital privado; entre outros.
Assim percebe-se que a concessão de determinadas empresas, áreas ou
setores ao capital privado é apenas um das múltiplas modalidades de se
promover o processo de privatização de uma economia. Trata-se de uma
opção estratégica que os governos adotam por razões que podem ser de
natureza variada: falta de recursos, excesso de dívida pública a ser
honrada, promoção de concorrência ou ainda o conhecido discurso a
respeito da suposta superioridade privada face ao setor público em
termos de eficiência.
Ampliar o uso da concessão é, sim, promover a privatização.
No caso brasileiro e no debate atual, é evidente que a venda da propriedade de uma empresa estatal provoca conseqüências mais agudas e mais difíceis de reversão. Mas nem por isso o modelo da concessão deixa de ser perverso para a maioria da sociedade. Se alguém se der ao trabalho de estudar os casos concretos, verá que são raríssimos aqueles em que uma concessão, cujo prazo esteja por vencer, não seja renovada para os concessionários de plantão. Todo o sistema de transporte público nos municípios, estados e União é estruturado na base de empresas concessionárias e permissionárias. O modelo das empresas de energia elétrica é também montado na base de contratos de concessão. O modelo das operadoras de telefonia e telecomunicações segue a mesma estrutura.
A exploração do subsolo e dos minérios também exige a forma
contratual da concessão. O sistema de rádio e televisão prevê a
concessão de exploração pelo setor privado, como os conglomerados Globo,
Record, Bandeirantes e demais. E esse detalhe contratual – concessão –
não implica que as empresas operando nesse conjunto de áreas obedeçam a
um comportamento público ou proporcionem eficiência elevada em seu ramo
de atuação. Alguma dúvida sobre o real poder de tais corporações
privadas?
Aqueles que hoje executam um verdadeiro exercício de contorcionismo
retórico para justificar o injustificável, há poucos anos atrás
criticavam a proposta de FHC de autorizar a exploração de poços de
petróleo pelas petroleiras privadas por meio do sistema de concessão. E
criticavam a medida corretamente, pois tratava-se de uma forma
travestida de privatização da atividade de exploração do combustível –
sob a roupagem da concessão abria-se o espaço para o setor privado
entrar no ramo tão rentável quanto estratégico. O mesmo ocorre na área
da saúde, um serviço público essencial, quando os governos oferecem a
concessão da exploração de um hospital ou outro tipo de equipamento para
os grupos privados, sob a forma da chamada organização social (OS). E a
analogia vale também para a área do ensino superior: não é necessário
que o governo venda o patrimônio das universidades federais para que se
verifique um processo paulatino de privatização do sistema. Basta que
continue a estimular o setor do “unibusiness” por meio de programas como
o PROUNI para os grupos privados e a estrangular as universidades
públicas por meio de medidas como o REUNI e o achatamento salarial de
professores e funcionários.
Agora, a bola da vez são as rodovias e as ferrovias. Em seguida virão
portos, hidrovias e os aeroportos, que já estão na fila de espera.
Parece evidente que conceder a exploração de um aeroporto ao capital
privado por 25 anos é uma forma de privatização. Permitir o usufruto
econômico de uma ferrovia pública por um grupo privado por 30 anos é
também um jeito sutil de privatizar. Conceder a exploração econômica de
uma rodovia pública a um conglomerado privado não deixa de ser uma
modalidade de privatização. E o mais grave é que a maior parte desses
projetos ainda nem existem. Os investimentos serão financiados de forma
bastante generosa, com recursos subsidiados pelo BNDES e pelo Tesouro
Nacional. A política tarifária será dimensionada de forma a dar a maior
rentabilidade ao empreendedor privado. E a empresa constituída pelo
governo federal (Empresa de Planejamento e Logística – EPL) não terá
poder algum de regulação sobre esse tipo de atividade, pois nem é mesmo é
de sua competência legal. Ela deverá ser apenas a referência de
gerenciamento e acompanhamento dos projetos, podendo estabelecer também
alguma ordem de prioridade.
O anúncio do plano escancarou o que todos sabiam: os recursos
públicos da União existem.
Sistematicamente negados para as áreas
sociais, agora foram garantidos na ordem de R$133 bilhões.
Mas mesmo
assim o governo optou pelo modelo da concessão ao capital privado para
estruturar e operar a rede da logística de transportes.
E assim
conseguiu realizar uma verdadeira mágica: sem ter vendido uma única
empresa do setor, conseguiu privatizá-lo quase que completamente.
A
partir do PNL, o sistema federal das principais rodovias e ferrovias
será todo operado por empresas privadas, com contratos de concessão cuja
duração deverá variar entre 20 e 30 anos. As próximas gerações poderão
fazer um balanço e avaliar melhor as sutilezas da diferença entre
concessão e privatização.
Paulo Kliass é Especialista em Políticas Públicas e Gestão
Governamental, carreira do governo federal e doutor em Economia pela
Universidade de Paris 10.
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