Movimentos colocam em xeque políticas fiscal e monetária herdadas por Lula e Dilma da era FHC
Por Carlos Eduardo Martins
O governo Dilma vem enfrentando uma onda de greves dos servidores
públicos federais que coloca em questão as políticas fiscal e monetária
herdadas do governo Fernando Henrique Cardoso. Estas foram suavizadas
durante o governo Lula, nos momentos mais agudos de crise, como em 2010,
mas nunca efetivamente abandonadas. Tais políticas se baseiam na
restrição à demanda através de corte de gastos públicos e geração de
expressivos superávits primários, integralmente absorvidos por altas
despesas em juros como estratégia de controle inflacionário. As despesas
com juros são significativamente maiores que o superávit primário e por
isto a dívida bruta do governo federal tem se elevado, em particular a
interna, apesar da queda drástica da dívida pública externa, regulada
pelos juros internacionais, hoje negativos em termos reais.
A greve envolve aproximadamente metade dos servidores ativos civis do
governo federal e seu caso mais notório e expressivo é a dos docentes
que alcançou 95% das universidades federais do país e também maioria
esmagadora dos colégios de aplicação, obtendo amplo apoio dos estudantes
e atingindo mais de um milhão de alunos apenas no ensino superior.
Apesar desses drásticos efeitos sociais, o governo apenas apresentou sua
primeira proposta aos sindicatos 56 dias após a deflagração da greve.
Ofereceu aumentos a serem pagos em três parcelas até 2015 que traziam um
impacto orçamentário de R$ 3,9 bilhões e partiam dos salários de 2010,
último ano de reajuste dos docentes. Posteriormente, o governo ofereceu
R$ 4,2 bilhões, muito distantes dos R$ 10 bilhões solicitado pelo ANDES,
principal entidade sindical docente do ensino superior. O governo
tampouco atendeu suficientemente às exigências para a reestruturação da
carreira e, inclusive, a degradou: vinculou a promoção a critérios de
produtividade determinados externamente pelo MEC, violando a autonomia
universitária que se pretende resgatar, e ao aumento do tempo de sala de
aula para 12 horas, em afronta à Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB).
Em sua segunda proposta, o governo remeteu a definição dos parâmetros
de produtividade a grupo de trabalho a ser constituído pelo MEC,
condicionando a participação nele das entidades sindicais à aceitação
dos seus termos.
Os termos do processo de negociação com os movimentos sociais incluem
o recurso a certa dose de violência por parte do governo – corte de
ponto sem que a justiça decretasse a ilegalidade da greve, ameaça de
improbidade administrativa aos dirigentes que não o imponham, decreto de
substituição de servidores federais por estaduais etc. – e evidencia o
desinteresse em considerar suas reivindicações. O discurso governamental
afirma que as demandas dos servidores públicos em seu conjunto seriam
inviáveis, pois somariam R$ 93 bilhões, ou aproximadamente 2% do PIB.
Como avaliar esta ação do governo Dilma? Estaria defendendo o Estado
brasileiro de um movimento corporativo, com interesses particularistas
em confronto com as necessidades das grandes maiorias da sociedade
brasileira? Justificar-se-ia pela defesa dos investimentos contra
pressões salariais que ameaçariam liquidá-los?
Trabalho recente publicado no IPEA [Comunicado 110: Ocupação no setor público brasileiro: tendências recentes e questões em aberto]
mostra que o governo Fernando Henrique Cardoso produziu uma enorme
devastação do emprego no setor público, reduzindo-o e precarizando-o: em
1993 havia 680 mil servidores ativos na administração federal e em 2002
apenas 550 mil. A expansão dos concursos públicos a partir de 2005 não
permitiu sequer restabelecer os níveis de 1992: em 2010 estes servidores
somavam aproximadamente 630 mil. Tampouco o aumento do ritmo de
contratação permitiu manter a exígua parcela que representavam no
conjunto do emprego da população brasileira: em 2003 correspondiam a
apenas 2,5% dos trabalhadores e em 2010 a 2,2%. A empresa privada, onde é
notavelmente pior a remuneração, aumentou no período sua participação
de 64,4% a 69,6% do total de empregos. A massa salarial na administração
pública federal permaneceu modesta e constante: em 2002 representou 5%
do PIB, em 2010 apenas 4%, correspondendo a 20% da arrecadação do
governo federal neste intervalo. Isto apesar da elevação qualidade do
emprego – os estatutários saltaram de 78% dos servidores em 1995 a 83,5%
em 2002 e 90% em 2010 – e do aumento do nível de escolaridade médio do
servidor federal.
Estes indicadores mostram que é muito difícil imaginar uma pressão
desestabilizadora nas contas públicas oriundas destes trabalhadores e
seu movimento sindical. Os 2% do PIB que hipoteticamente reivindicam
sequer produzirão déficit público primário, mesmo se ignorarmos o
multiplicador keynesiano que alimenta a expansão da economia real e da
arrecadação pública.
A impossibilidade de negociação está ancorada nas políticas públicas
adotadas pelo governo Dilma Rousseff e em particular em sua equivocada
estratégia anti-inflacionária, que sacrifica a expansão da demanda, o
crescimento econômico e mantém a financeirização da economia. A recente
redução na taxa de juros real praticada não a situou abaixo das taxas de
crescimento econômico: a dívida pública federal saltou de 51,3% a 54,1%
entre janeiro de 2011 e maio de 2012; em março de 2012 registrou-se
recorde mensal no pagamento de juros, R$ 18 bilhões, e em maio de 2012
pagou-se R$ 230 bilhões, somados os 12 meses anteriores, mais que os 200
bilhões em janeiro de 2011, quando o novo governo assumiu.
Em 2011, juros e amortizações representavam 45,7% do orçamento
executado do governo federal, enquanto saúde respondia por 5%, educação
por 3%, ciência e tecnologia por 0,3% e cultura por 0,04%. Apesar da
promessa da Presidenta em baixar os juros a 2% em nível real é bastante
provável que a taxa de juros possa sofrer futura elevação quando
retomar-se o crescimento da economia, em função do enfoque anti-cíclico
que maneja o governo. Foi o que o governo fez no primeiro ano para
desacelerar o crescimento da economia.
A pressão colossal que os juros e amortizações exercem sobre o
orçamento governamental impede que o Estado atue como gerador de
emprego, massa salarial e investimento. O resultado é a mediocridade de
nossas taxas médias de crescimento do PIB e de investimento, o avanço da
desindustrialização e manutenção indefinida do programa de renda mínimo
como principal fonte de política social, negligenciando a educação e o
emprego como instrumentos sustentáveis e estruturais de redução de
desigualdade, pois exigem investimentos muito mais significativos para
desempenharem este papel.
A política anti-inflacionária governamental é equivocada e
inadequada, em particular para a conjuntura internacional em que
vivemos. Desde 1994, a economia mundial vivencia um período de expansão
acelerado que se expressa em novas ondas de inovação tecnológica que
barateiam e desvalorizam fortemente as mercadorias. São exatamente os
países capazes de alavancá-las os que exibem taxas de inflação mais
baixas. O Brasil exibe desde 1994 taxas de inflação muito superiores que
as da China que investiu entre 30% a 50% do PIB e reduziu drasticamente
sua pobreza, ou os países da Europa Ocidental e os Estados Unidos.
Nossa inflação, aliás, sempre foi historicamente muito superior a dos
países que registram os maiores mercados internos do mundo e orientam
seus recursos para atendê-los. Não faz nenhum sentido vincular a
política inflacionária a um enfoque estagnacionista como o de corte de
demanda, em particular, do setor público.
A legitimidade do governo Dilma para combater eventuais desvios
corporativos do sindicalismo do setor público torna-se profundamente
comprometida com a orientação de grande parte dos recursos federais para
atender aos especuladores do Estado brasileiro. Perde força a
capacidade de impor constrangimentos aos servidores públicos a partir do
discurso de que suas demandas salariais sacrificariam investimentos
públicos e sociais. A elevação de 133% do soldo presidencial e dos
ministros de Estado, praticada neste governo, e a informação de que a
Ministra do Planejamento e Orçamento Miriam Belchior aufere proventos de
mais de R$ 40 mil mensais não respaldam o discurso de austeridade junto
ao funcionalismo público. Entre os servidores públicos federais, o
salário médio é de 11 salários mínimos para homens e 12 para mulheres,
mas há forte dispersão entre as categorias e os docentes estão entre as
piores remuneradas. A proposta do governo aumenta ainda mais as
disparidades no interior da carreira no ensino superior conferindo
elevação salarial desproporcional em favor dos professores titulares,
onde estão apenas 5% dos docentes.
A universidade brasileira necessita de profunda revisão. Não é
possível que nos acomodemos com o fato de 75% das matriculas do ensino
superior estar nas universidades privadas, relação das mais desiguais no
mundo. Este índice que era favorável às universidades públicas,
inverteu-se nos governos militares e no governo FHC saltou de 58% para
69%. No governo Lula não se conseguiu impedir sua progressão, apesar de
iniciativas como a abertura de novas universidades públicas ou
contratação de professores estatutários por concurso público.
Continuamos, entretanto, a financiar pesadamente as universidades
privadas via Prouni e outras iniciativas. Dilma acaba de assinar decreto
onde cria o Programa de Estímulo à Reestruturação e ao Fortalecimento
das Instituições de Ensino Superior (Proies). Este iniciativa cancela a
dívida de R$ 17 bilhões das universidades privadas com o Governo Federal
em troca de bolsas que ofereçam aos seus alunos nos próximos 15 anos.
Trata-se de um apoio muito mais generoso que o oferecido às
universidades públicas e que coloca em discussão o tipo de universidade
na qual queremos formar nossos alunos. Qual é a proposta de ensino
superior brasileiro deste governo? A de formar alunos a partir da
articulação entre ensino e pesquisa para a cidadania e desenvolver um
sistema de ciência e inovação capaz de projetar o Brasil como um país
soberano no cenário internacional; ou a de formá-los para um mercado de
trabalho com baixas exigências tecnológicas, em instituições que
priorizem o baixo custo do investimento e a dissociação do ensino e
pesquisa, dentro do contexto da dependência tecnológica internacional?
A reestruturação do ensino superior exige também o resgate da
autonomia universitária e a redefinição do conceito de produtividade. O
achatamento salarial dos docentes levou a que se buscasse complementação
salarial mediante a competição por bolsas em agências de fomento à
pesquisa. Estas impõem critérios de pontuação elitizados e
aristocráticos que desviam o esforço da produção universitária da
cidadania, das grandes massas e da extensão, favorecendo corporativismo
acadêmico e um público extremamente restrito. Escrever um artigo a cada 3
anos num periódico estrangeiro em língua estrangeira, muitas vezes só
acessível ao leitor mediante pagamento na internet, pode ser decisivo
para uma carreira universitária se este for classificado como A-1, mas
orientar monografias de graduação, participar de debates em TVs e rádios
comunitárias, publicar com regularidade em revistas ou portais de amplo
acesso não têm peso nenhum para as agências reguladoras da
produtividade. Estranha equação. Talvez seja ela que explique o fato de a
maior universidade federal do país não ter uma rede de TV ou de rádio
para seus cientistas se dirigirem à população, ou o fato de alguns de
seus institutos terem abolido a monografia de graduação, liberando seus
docentes para dedicarem-se a orientações de dissertações, teses e
artigos que lhes dão pontos de produtividade. Trata-se de um forte
processo de privatização do ensino superior público que reflete de certa
forma o controle que as grandes oligarquias do país ainda exercem sobre
o Estado brasileiro.
A eleição do PT para o comando do Estado brasileiro a partir de 2002
representa uma importante inflexão na história política do país. Nele
estão depositadas as esperanças da população brasileira para que se
afirme de maneira substantiva e sustentável a condição republicana de
nosso Estado. Qualquer projeto de mudança da realidade brasileira em
direção à igualdade e promoção dos nossos povos dependerá ainda por
vários anos, muito provavelmente, de sua liderança. Mas para exercê-la
este Partido deve abdicar da Guerra Fria que trava com as oligarquias
brasileiras e confrontar de maneira mais contundente os seus interesses.
Como sabemos, a Guerra Fria significou uma confrontação limitada dentro
de um projeto de coexistência pacífica entre a direita e a esquerda
internacional, que se esgotou depois de anos. Terminou com a vitória das
forças do grande capital que, por sua sede de expansão ilimitada, nunca
abandonou o projeto de desalojar seu oponente.
Desprivatizar o Estado brasileiro e enfrentar o tema da desigualdade
exige ir muito além de um programa de renda mínima, ainda que este tenha
relevância e um papel importante a cumprir. Os dados sobre a redução da
desigualdade no país são tímidos depois de 10 anos desta política.
Estes devem ainda ser confrontados com a notória insuficiência das
estatísticas para mapear os ingressos de origem financeira e rendas de
propriedade, que na PNAD respondem por apenas 3% do total declarado.
Informações recentes que apontam a presença de 1/3 do PIB brasileiro em
paraísos fiscais e os brasileiros como os seus 4º maiores investidores
evidenciam a necessidade de cautela no tratamento deste tema.
O PT e seus principais representantes deverão escolher seu caminho
nesta década: ou derrubam o muro da Guerra Fria que preserva as
oligarquias e impede o estabelecimento de políticas que ultrapassem o
combate à extrema pobreza e atendem às demandas de formação massiva de
um proletariado qualificado e com ingresso familiar per capita ao menos
proporcional ao salário mínimo necessário do Dieese – situação por
debaixo da qual se encontravam aproximadamente 60% da população
brasileira em 2009 –; ou arriscam-se a esgotar sua liderança, abrindo o
espaço para na pior das hipóteses, num momento de crise e desgaste, a
direita reassumir seu lugar na direção do Estado brasileiro.
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Carlos Eduardo Martins é doutor em Sociologia pela Universidade de São Paulo (USP), professor adjunto e chefe do Departamento de Ciência Política da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), coordenador do Laboratório de Estudos sobre Hegemonia e Contra-Hegemonia (LEHC/UFRJ), coordenador do Grupo de Integração e União Sul-Americana do Conselho Latino-Americano de Ciências Sociais (Clacso) e pesquisador da Cátedra e Rede Unesco/UNU de Economia Global e Desenvolvimento Sustentável (Reggen). É autor de Globalização, dependência e neoliberalismo na América Latina (2011) e um dos coordenadores da Latinoamericana: Enciclopédia contemporânea da América Latina e do Caribe (Prêmio Jabuti de Livro do Ano de Não Ficção em 2007) e co-organizador de A América Latina e os desafios da globalização (2009), ambos publicados pela Boitempo. É colaborador do Blog da Boitempo quinzenalmente, às segundas.
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