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domingo, 19 de agosto de 2012

A "ética" da conquista



A história do Frei Bartolomeu de Las Casas, que há
séculos tentou proteger a vida dos índios da América e
defendeu uma colonização pacífica, contada pelo líder político
José Martí, mártir da independência cubana.


Por José Martí Versus 5 • agosto de 1976

Quatro séculos é muito, são quatrocentos anos. Há quatrocentos anos viveu o Padre Las Casas, e parece que está vivo ainda, porque foi bom. Não se pode ver um lírio sem pensar no Padre Las Casas, porque com a bondade foi ficando da cor do lírio, e dizem que era lindo vê-lo escrever, com sua túnica branca, sentado em sua poltrona pregada com tachinhas, lutando com a pena da caneta, porque esta não escrevia depressa. E outras vezes se levantava da poltrona, como se o queimasse; apertava a testa com as duas mãos, andava de um lado para o outro no seu claustro a passos largos e parecia sentir uma grande dor. Estava escrevendo seu livro mais famoso A destruição das Índias Ocidentais, os horrores que viu nas Américas, quando chegou da Espanha o conquistador. Seus olhos brilhavam, e ele se sentava outra vez, com os cotovelos na mesa, com a cara cheia de lágrimas.
Assim passou a vida, defendendo os índios.




Licenciou-se na Espanha, o que era alguma coisa naqueles tempos, veio com Colombo à Ilha Hispaniola, num daqueles navios de velas infladas pelo ar e como uma casca de noz. Falava muito a bordo, e com grande eloqüência. Os marinheiros diziam que era grande seu conhecimento para um jovem de vinte e quatro anos. Ia alegre no barco, como quem vai ver maravilhas. Mas desde que chegou começou a falar pouco. A terra sim, era muito bonita, vivia-se como uma flor, porém aqueles conquistadores assassinos deviam vir do inferno, não da Espanha! Espanhol ele também era, e seu pai e sua mãe, mas por que em dez anos já não existia um índio vivo dos três milhões que havia na Hispaniola? Ele não os caçava como cachorros, para matá-los nas minas; ele não lhes queimava as mãos e os pés, quando se sentavam, porque já não agüentavam andar ou caía-lhes a picareta porque não tinham mais forças para trabalhar; ele também não os chicoteava até que desmaiassem porque não sabiam dizer a seu amo onde existia mais ouro; ele não gozava ao ver os índios caírem por não poder com o peso do carregamento de ouro; ele não vestia a capa que chamavam ferreruelo, para ir muito pomposo à praça, ao meio-dia, ver a queima de índios pela justiça do governador. Ele os viu serem queimados, viu-os olhar com desprezo da fogueira para seus verdugos e nunca mais pôs seu gibão preto, nem carregou o bastão de ouro, como os outros licenciados ricos e gorduchos, mas foi consolar os índios nos montes, ajudado apenas pelo seu bastão de galhos de árvores.

No monte, os índios tinham ido para se defender dos espanhóis. Como amigos tinham recebido aquele homem branco de barbas, eles o tinham recompensado com seu mel e seu milho, e o próprio rei Behechio lhe deu como mulher sua filha Higuemota, que era como a pomba e a palmeira real, eles lhes haviam mostrado suas minas de ouro, e seus rios de água de ouro, e seus adornos, todos de ouro fino, e lhe tinham posto sobre sua couraça e luvas de ferro da sua armadura, pulseiras e colares de ouro; e aqueles homens cruéis que os atavam em cadeias? Roubavam suas índias, e seus filhos aprisionavam nas minas bem lá no fundo para sustentarem a carga de pedra com a testa, dividiam-nos como escravos e os marcavam a ferro. Naquele país de pássaros e frutas os homens eram belos e amáveis, mas não eram fortes. Tinham o pensamento azul como o céu e claro como os arroios, não sabiam matar escondidos debaixo das armaduras de ferro, e com o arcabuz carregado de pólvora. Com ossos e gomos de plantas não se pode atravessar uma couraça. Caíam como as plumas e as folhas. Morriam de penas, de fúria, de cansaço, de fome e de mordidas de cachorros. O melhor era refugiarem-se nos montes junto ao valente Guaroa e com o menino Guarocuya, para se defender com pedras, com a água, para salvar o reizinho bravo, Guarocuya. Ele, que pulava o arroio, de margem em margem; ele cravava sua lança longe, como um guerreiro; na hora de andar ele ia na frente, sua risada era ouvida através da noite, como um canto; o que ele não queria era ser levado nos ombros por alguém. Assim iam pelos montes. Assim iam pelo monte, quando apareceu entre os espanhóis o Padre Las Casas, com seus olhos tristes no seu gibão e sua capa curta. Ele não disparava a sua arma contra eles; ele abria-lhes os braços. E deu um beijo em Guaroa.

Já na ilha todos o conheciam, e na Espanha falavam dele. Era magro e tinha o nariz muito comprido e a roupa caía do seu corpo e não tinha outro poder senão seu coração, mas de casa em casa andava jogando na cara dos donatários a morte dos índios em seus domínios; ia ao palácio pedir ao governador que mandasse cumprir as ordens reais; ia aos portões dos tribunais para dizer aos auditores com muito espanto que tinha visto morrerem seis mil índios pequenos de uma vez. E os auditores lhe diziam: “Acalme-se, licenciado, que já haverá justiça”; e punham as luvas nos ombros e iam tranqüilos merendar com os donatários, que eram os ricos da América e possuíam tudo do bom e do melhor. Nem merenda nem sonhos existiam para Las Casas; sentia na sua própria carne os dentes dos cachorros molosos, que os donatários soltavam sobre os índios; parecia que era sua mão que jorrava sangue, quando sabia que tinham cortado a mão de um índio porque não conseguiu agüentar a pá; achava que era o culpado de toda a crueldade porque não podia terminar com ela. Sentiu como os índios americanos eram pouco a pouco seus filhos. Como advogado não tinha forças e estava isolado, como sacerdote teria a força da Igreja e voltaria à Espanha e daria o recado dos céus, e se a Corte não acabasse com os crimes e com a escravidão, faria a Corte tremer. E no dia que entrou para o convento todos na ilha foram vê-lo, com assombro pela súbita mudança de um licenciado de fortuna que, pelos seus beijos, as índias deixavam que ele passeasse com seus filhos menores.

Então começou seu meio século de lutas, para que os índios não fossem escravos; de luta na América, de luta em Madri; de luta contra o próprio rei; contra toda a Espanha, ele sozinho. Colombo foi o primeiro a enviar índios à Europa para pagar as roupas e comidas que os navios espanhóis traziam ao novo continente. E na América já tinha havido a divisão de índios para a servidão. A rainha lá da Espanha, dizem que era boa, mandou um governador tirar os índios da escravidão, mas os donatários deram ao governador o bom vinho e o encheram de presentes, e sua parte nos lucros foi mais que nunca os mortos, as mãos cortadas, os escravos e os soterramentos nas minas. “Eu vi trazerem manietadas estas amáveis criaturas e todas juntas serem mortas como ovelhas”. Foi esta a Cuba de Diego Velásquez, hedionda. Numa ilha de quinhentos mil índios, ficaram onze. Eram aqueles conquistadores soldados bárbaros, que não conheciam os mandamentos da lei, e ensinavam aos índios a doutrina cristã, golpes de chicotes e as mordidas de cachorros! De noite, sem dormir, pela angústia, fala com seu amigo Renteria, outro espanhol de ouro. Temos que ir pedir justiça ao Fernando de Aragon! Embarcou numa galera simples e foi ao encontro do rei.

Seis vezes esteve na Espanha, com a força da virtude, aquele padre que não comia carne. Nem do rei tinha medo, também não temia a tempestade. Ficava na coberta mesmo em dias de mau tempo; e na bonança passava o dia na ponte apontando suas idéias no caderno de fio de pano, e dando o tinteiro para que o enchessem “porque a maldade não se cura sem dizê-la e existe muita maldade para ser contada e eu a estou colocando onde ninguém a possa negar nem em latim, nem em castelhano! Se em Madri o rei pudesse ser encontrado no palácio, antes dele, Las Casas, ir até uma hospedaria descansar, ia vê-lo. Se estava em Viena, quando o rei Carlos da Espanha, também imperador da Alemanha, vestia outra vez o hábito e lá ia ele para Viena. Se era o seu inimigo Fonseca quem convocava e mandava na junta de advogados e clérigos que o rei utilizava para assuntos da América, a ele ir ver para processá-lo no Conselho das Índias. Se o cronista Oviedo, por ordem e serviço dos donatários, escrevia mentiras sobre os americanos ele o taxava de mentiroso, ainda que o rei fosse um dos interessados nas mentiras. Se Sepúlveda nas suas histórias justificava o direito dos reis de repartirem a servidão no Novo Continente, atacava a Sepúlveda dizendo que culpa não tinham os que nunca souberam da existência de Cristo, nem soubessem da linguagem que Cristo falou, e que tinham de Cristo como única notícia as marcas de seus arcabuzes. E se o rei em pessoa franzia a testa, como para interrompê-lo, sua voz ficava mais forte e grave, com o punho levantado, dizendo ao rei, cara a cara, que quem governa a homens tem o dever de cuidá-los, e se ele não os sabe cuidar, não os pode governar, e que tinham que ouvi-lo em paz, porque ele não tinha outra arma senão as manchas de ouro na sua túnica branca, nem outra defesa senão a cruz.

Ou falava ou escrevia sem descanso. Os frades dominicanos o ajudavam, e no convento dos frades ficou oito anos escrevendo. Sabia religião e leis, autores latinos, que era o que se aprendia na época, mas tudo era usado com habilidade para defender os direitos do homem à liberdade, e o dever dos governantes de respeitá-los. Isso era muito, por causa disso os homens eram queimados e o rei, vestido de gala, ia assistir ao ato, com a rainha e os nobres, para ver a Inquisição executar sua tarefa. Fonseca e Sepúlveda queriam que o padre Las Casas cometesse nas suas lutas algum pecado contra a autoridade da Igreja, para que os inquisidores o queimassem por heresia. Mas o padre dizia a Fonseca: “o que eu digo foi o que disse a Santa Rainha Isabel no seu testamento” e você não o aceita porque eu com isso tiro o pão de sangue que te alimenta, e acuso a capitania que você tem na América”. E a Sepúlveda, que já era o confessor do rei, dizia: “Você é um combatente famoso e te chamam o Lívio de Espanha, pelas tuas histórias, mas eu não temo ao eloqüente que fala contra seu coração e que defende a maldade e te desafio para que me proves em discurso que os índios são malfeitores e demônios, quando na verdade são claros e bons como mariposas”. E a discussão com Sepúlveda durou cinco dias. Este começou com desdém e acabou confuso. O padre olhava-o com a cabeça baixa, os lábios tremendo e a fronte inchada. Enquanto Sepúlveda sentava-se satisfeito, como aquele que fincou um alfinete onde quis, o padre ficava de pé, magnífico: “Não é verdade que os índios do México fizeram cinqüenta mil sacrifícios por ano, mas vinte apenas, que é muito menos do que a Espanha sacrifica por ano na forca. Não é verdade que sejam gente bárbara e de pecados horríveis porque não existe pecado deles que não o tenhamos em maior tamanho os europeus; não somos nós, com todos os nossos cantões e nossa avareza, que poderemos nos comparar a eles na ternura e no amável; nem é para tratá-los como feras, porque eles possuem virtudes, poetas, ofícios, e governos e artes!

Não é verdade senão iniqüidade que o modo melhor que tenha o rei para fazê-los seus súditos seja exterminá-los, nem a melhor maneira de ensinar-lhes religião seja jogar-lhes na cara em nome da religião os trabalhos forçados; e tirar-lhes os filhos e a comida; e colocá-los na carga como parelhas de bois”. E citava versículos da Bíblia, artigos de lei, exemplos históricos, parágrafos de autores latinos tudo cheio de grande vigor e beleza, como as águas da correnteza, arrastando na espuma as pedras e os detritos dos montes.

Só esteve na luta; só esteve quando Fernando, que ninguém se atrevia contrariá-lo e que também não quis contrariar os conquistadores que lhe enviavam o ouro em grandes cargas; só com Carlos V que de pequeno o escutava com veneração, e depois o traiu para levar a cabo planos ambiciosos, e não estava com disposição para defender o clérigo contra todos os interesses da América, que lhe enviava tributos; só quando Felipe II, que passou um reinado tentando conquistar outro, que ao morrer deixou tudo morto, envenenado e frio, como um buraco onde uma víbora passou a noite. Se ia ver o rei não podia encontrá-lo porque a ante-sala estava cheia de donatários, vestidos em seda e chapéus de pena, com colares de ouro extraídos pelos índios. O mesmo acontecia quando queria falar com um ministro, porque este também era donatário e tinha minas, ou então gozava dos frutos que possuía em nome de outros. Com medo de perder os favores na Corte, mesmo os que não tinham interesses na América, não o ajudavam. Os que mais o respeitavam por bravo, por justo, por eloqüente, não queriam dizer, ou diziam que não o ouviam, porque os homens costumam admirar os virtuosos enquanto não estão sendo tocados seus lucros e seus interesses, mas quando eles se põem no seu caminho, baixam a cabeça ao vê-los passar, ou dizem maldades deles, ou os cumprimentam pela frente e os apunhalam por trás. O homem virtuoso deve ser forte de ânimo e não ter medo da solidão, nem esperar que os demais o ajudem, porque vai estar sempre só: mas com a alegria de trabalhar bem, com o céu do futuro limpo.

E como era tão sagaz que dizia coisas que não ofendiam nem ao rei, nem à Inquisição, senão que pedia bondade com os índios para o bem do rei, e para que existissem mais cristãos, não tinham os da Corte nenhum modo de não agradá-lo na frente, chegando inclusive a outorgar-lhe o título de “Protetor Universal dos Índios”, com a assinatura do próprio Fernando, mas que não acatavam sua autoridade protetora; e outra, ao cabo de quarenta anos de meditar, disseram-lhe que pusesse seus pensamentos no papel porque achava que os índios não deveriam ser escravos; e outra, deram-lhe permissão para levar trabalhadoras da Espanha à colônia de Cumaná onde veriam os índios com amor, e na Espanha foram encontrados somente cinqüenta elementos que quiseram realmente trabalhar no lugar. Os quais foram vestidos com túnicas com uma cruz no peito, mas não puderam estabelecer a colônia porque o adelantado tinha chegado antes deles com tropas e armas, e os índios enfurecidos disparavam suas flechas contra todos os que portavam uma cruz no peito. Por fim encarregaram-no, como que para distraí-lo, de pedir as leis que pareciam-lhe justas para os índios: “quantas leis quisessem; porque por lei, mais ou menos, não devemos brigar”, e ele as escrevia e o rei mandava cumpri-las, mas no navio ia a lei e o modo de desobedecê-la. O rei concedia-lhe uma audiência e fingia que seguia seus conselhos, mas logo a seguir entrava Sepúlveda, com seus pés brandos e seus olhos de raposa, trazendo recados dos que mandavam ouro nos galeões e o que se punha na prática era o que dizia o conselheiro. Las Casas sabia bem, mas não por isto baixou o tom de suas acusações, nem deixou de contar em suas Descrições as crueldades cometidas contra os índios. O nome dos maus não os escrevia porque era nobre e tinha-lhes compaixão. Escrevia como falava, com a letra forte e desigual, cheia de manchas de tintas, como um cavalo que leva o cavaleiro que quer chegar logo e vai levantando o pó e tirando faíscas das pedras.

Foi o bispo, mas não de Cuzco que era um bispado rico, mas de Chiapas, onde pelo longe que estavam do vice-rei, os índios viviam na pior escravidão. Foi a Chiapas, para chorar com os índios, mas não só, porque com lágrimas e queixas não se vence os bandidos, senão acusando-os sem medo, falando em conselhos de justiça, com discursos que eram ternos e terríveis ao mesmo tempo, e deixavam os donatários como árvores depois do vendaval. Mas os donatários podiam mais que ele, porque tinham nas suas mãos os governos e compunham cantares acusando-o de mau espanhol e traidor, tentando atemorizá-lo com tiros de arcabuzes na porta da sua casa. E rodeavam seu convento armados, todos armados contra um velho magro e só. E até foram ao encontro dele no caminho da Ciudad Real para que não voltasse à cidade. Ele vinha acompanhado de dois amigos espanhóis e um negro que o estimava como a um pai; porque é verdade que Las Casas aconselhou que substituíssem os índios por negros que resistem melhor ao calor, mas logo que viu esses homens sofrerem se arrependeu dizendo: “com meu sangue eu gostaria de pagar o pecado que cometi quando aconselhei a vinda dos negros pelo meu amor aos índios”. Com seu negro carinhoso e os espanhóis ele vinha caminhando. Vinha para tentar salvar a pobre índia que o abraçou nos joelhos à porta de um templo mexicano, louca de dor porque os espanhóis tinham matado seu marido que tinha ido rezar num templo. E percebeu que eram as índias as sentinelas que os espanhóis puseram para impedir seu caminho. Ele dava-lhes sua vida e os índios vinham atacá-lo a mando dos seus senhores! Não se queixou, senão disse: “Por estes meus filhos terei que lutar mais, porque de tão martirizados que estão já não sabem defender sua própria vontade”. Os índios se atiraram a seus pés pedindo perdão. Entrou na Ciudad Real onde os donatários o esperavam armados de arcabuz e canhão, como se estivessem preparados para a guerra. Quase às escondidas o vice-rei o enviou de volta à Espanha para que não o matassem. Ele foi embora de volta para o seu convento espanhol, a lutar, defender, chorar, e escrever. Morrendo sem cansar-se aos noventa e dois anos.



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