Crônica de um seminário realizado
durante a Rio+20, em que subitamente entraram em conflito distintas
visões de desenvolvimento e projetos para o país
Por Bruno Cava
Em 15 de junho, aconteceu o seminário Terra, na Casa de Rui Barbosa,
no Rio. Inscrito como evento da Cúpula dos Povos, o encontro de grupos
militantes e intelectuais tinha por objetivo aprofundar a crítica ao
modelo de desenvolvimento. No contexto da crise socioambiental, aterrar a
discussão nas lutas, nas alternativas, nas ocupações e formas de
resistir e reexistir. Na ocasião, o cadinho de falas, textos e debates
resultou em bons e maus encontros. Uma fratura que repercute a própria
atividade prática dos grupos que participavam da dinâmica. Foi a “trama
da sapucaia”, para pegar emprestado de um texto de Cléber Lambert. Como
toda fratura em ambientes de rico pensamento e debate aberto, teve
basicamente dois efeitos. Um efeito narcísico, improdutivo, edipiano,
neurótico. Quando o desejo volta contra si mesmo como planta venenosa,
com piadinhas, pulsões e muito espírito de rebanho, o que acaba por
reunir o ressentimento dos súditos em projeto de vingança. Mas também o
outro lado, produtivo, prometeico, fabulador. Quando o desejo se liga ao
real sem recalques, gera diferenças qualitativas e propicia que se
continue pensando e continue lutando. Esses dois efeitos atravessaram as
pessoas em várias intensidades e sentidos, nos dois pólos do debate. Eu
particularmente prefiro Prometeu a Narciso e não renuncio à
agressividade da diferença.
No final do seminário, um dos palestrantes (não lembro exatamente
quem), do alto de seu poder de síntese, resumiu as posições. De um lado,
aqueles que defendem que “o índio vire pobre”. Do outro, aqueles que
defendem que “o pobre vire índio”. Os primeiros representariam o projeto
desenvolvimentista. Fazer do índio mais um trabalhador e consumidor do
novo Brasil, o país do futuro que chegou. Inclui-lo na sociedade forjada
pela modernidade. Uma monocultura inteiramente pautada pelo
quantitativo, o extensivo e o pacto diabólico da produção pela produção.
Em última instância, aqueles que defendem Dilma (pela via
economicista). Os segundos, defensores que “o pobre vire índio”, pensam a
cosmologia indígena como alteridade radical à sociedade colonizada.
Opõem o intensivo ao extensivo e a qualidade à quantidade. Para eles, a
solução está em combater para que o índio não vire pobre, ao mesmo tempo
em que os pobres se indianizem, e assim possam vencer a assimetria
fundamental de uma antropologia que os assujeita e que se manifesta em
todos os lugares e discursos por onde passam. Em vez disso, o pobre é
que deve se reconstruir pelo índio. “Todo mundo é índio, menos quem não
é” (Eduardo Viveiros de Castro). Disseminar o índio no corpo da
população, como na retomada cabocla das terras, ou na campanha
indigenista dos zapatistas. Em vez de concretar o Xingu, mostrar que a
cidade jamais deixou de ser indígena. Que a floresta como
saturação de relações jamais deixou de ser a nossa verdadeira riqueza
cultural. Em última instância, aqueles que promovem Marina (por essa via
antropológica).
Com o recorte, esse palestrante tentou sintetizar as múltiplas
incidências da questão num simples fla-flu. Uma operação legítima do
ponto de vista das estratégias político-teóricas envolvidas, mas que
terminou por colocar o problema de maneira desfocada e, no fundo,
simplória. É que o problema começa no verbo. Nem tanto o pobre virar
índio, ou o índio virar pobre, mas pôr em questão o virar
mesmo. A questão está no processo de passagem, mais no trânsito que nos
pontos de partida e chegada, a imanência da reexistência às
transcendências das culturas existentes. O palestrante confundiu o devir
com o sujeito. É preciso antes de tudo examinar a travessia, a
transformação mesma, que é primeira em relação ao que se transforma.
Isto significa assumir uma perspectiva em que as coisas se sustentam
instáveis, enquanto cristalizações de processos inacabados e precários; e
em que a relação entre as coisas existe como uma relação entre
transformações de transformações, relações de relações em ação cruzada.
As coisas ficam mais abertas à mudança. E ensejam ser desdobradas em
múltiplas perspectivas.
A pobreza, por exemplo, contém um paradoxo. Na mesma medida que é
privação, também é potência. Por óbvio, privação e potência não
acontecem ao mesmo tempo. Mas o pobre é aquela força que caminha nesse
campo instável, onde pode transitar por todo o espectro de grau entre
uma e outra. Porque a pobreza tem uma dimensão afirmativa, inventa novos
usos, constrói o máximo do mínimo, a favela do lixo, a poesia das
expressões doridas e tensionadas das ruas. Gatos nascem livres e pobres e
recusam a ser chamados pelo nome. Qualquer prescrição de imobilidade
não serve para quem tem de se mover todos os dias para reinventar o
mundo, em cuja crise o pobre vive e se relaciona. Devir pobre ativa a
potência insofismável dessa classe inscrita como agente de produção do
capitalismo.
Por que não se trata tanto de virar isto ou aquilo, mas de devir.
Pode ser ridículo eu, homem branco, querer ser negro, mas nada impede
aconteça uma negritude em mim. Devir-onça não significa tornar-se uma
onça. Nesse sentido, sucedem processos de transformações que podem ser
apresados subjetivamente, e o conjunto galgar novos horizontes éticos e
políticos. Devir pobre, índio, mulher, criança, planta, mundo. Nos
devires, está em jogo a construção de um comum de reexistências e lutas,
no interior das culturas e identidades disponíveis. No interior e para
além, e mesmo contra. Um comum diferenciante em que as diferentes forças
de existir podem se enredar e se maquinar na própria distância entre elas,
no dissenso constituinte; sem redução a uma identidade comum, ao
consenso, ao denominador comum, a um “em comum”. É se recompor no amor
pelo outro, sem reduzi-lo a si, nem se submeter a ele. Isto é, partilha
desmedida de afetos ativos, no bom encontro em que se multiplicam e
produzem o real, jamais na subjugação entre seres comensuráveis entre
si, na redução ao “consenso mínimo do relacionamento”.
Com essa forma de pôr o problema, é possível se concentrar antes nas
estratégias e táticas de ação, nos agenciamentos do desejo, nas formas
de criar e se deslocar, — em tudo que isso que favorece uma fuga
reexistente das identidades, e assim favorece a diferença por si mesma —
do que ficar idealizando e descrevendo outras identidades possíveis,
lutando pelas existentes ou combatendo outras que possam vir a existir,
como faria um inventariante dos elementos culturais por aí. Posso
irromper dentro de mim, — mesmo que eu me constitua de forças
majoritárias e dominantes da cultura estabelecida, — irromper o meu
avesso, o meu avesso simétrico, o meu índio e o meu subdesenvolvimento,
um intensivo pelo qual tudo o que passa resulta diferente. Essa
diferença ameaça o poder constituído. Uma força que vem, acontece, e me
arrasta pra outro lugar e outro tempo.
O primado da diferença implica que o problema de índio-virar-pobre ou
pobre-virar-índio embute uma dicotomia infernal. Já se trata, desde o
início, de um falso problema.
Portanto, é preciso recolocar o problema. Preocupar-se em ser pobre
ou índio é muito pouco. Faz-se necessário mobilizar os substantivos em
verbos, molecularizar os adjetivos em advérbios. O caso não está na
transformação de A a B ou de B a A. E sim no diferencial C que faz com
que A e B possam coexistir no mesmo plano de composição política. Então é
caso do pobre devir índio e o índio devir pobre. E mais. Seguindo a
lógica, igualmente sucede um diferencial entre A e A´, e entre B e B´.
Ou seja, o pobre devir pobre e o índio devir índio. Se
o projeto do novo Brasil consiste em fazer da “Classe C” o modelo de
cidadão, trabalhador e consumidor, esta figura antropológica pode devir
pobre-potência. O trabalhador recusa o trabalho, o consumidor consome o
consumo e o cidadão se revolta. De maneira simétrica, o índio devém índio
ao impregnar as forças que o constrangem na maior comunidade de todos
os tempos: o mercado capitalista global. Menos para ser reconhecido como
indígena do que para indianizar o poder. Institui outras formas de
medir, se relacionar e escapar dos aparelhos de captura. Contra Belo
Monte, o Xingu em São Paulo.
Muitas vezes, sofisticados esforços de desmontagem da metafísica
ocidental perdem de vista o essencial.
Todo o esforço por desarranjar a
violência e o intolerável, inscritos na estrutura produtiva deste mundo,
só é eficaz levado a um sentido material. Isto é, animado pelos
processos de transformação e afirmação de diferença já em andamento,
pela proliferação de lutas socioambientais que se debatem no dia a dia.
A
política precede o ser.
E política sem transitividade com a crítica do
sistema produtivo se torna cega à máquina capitalista, arriscando
nivelar-se a uma apologia (embora requintada e elitista) ao que de pior
há na modernidade européia: a economia política clássica e neoclássica.
A agressão e destruição dos aparelhos de captura só acontecem quando
imediatamente ligadas à montagem de uma máquina revolucionária.
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