Najla Passos
Nos
próximos dias, a presidenta Dilma Rousseff terá a oportunidade de
colocar um ponto final na luta pela implantação de uma política nacional
de cotas nas universidades públicas federais que, há pelo menos 13
anos, consome os movimentos sociais do país. Aprovado pelo Senado na
última terça (7), a chamada Lei das Cotas combina critérios étnicos e
sociais, com o propósito central de valorizar a escola pública e,
consequentemente, os milhões de cidadãos que têm nela a sua única opção
de formação.
A divisão das vagas é complexa. A política aprovada prevê a reserva
de 50% delas para as cotas. Metade, ou 25% do total, é distribuída entre
negros e índios, de acordo com o perfil étnico de cada região, definido
pelo censo do IBGE. Os outros 25% são destinados aos alunos das escolas
públicas, sendo 12,5% para os estudantes com renda familiar inferior a
1,5 salário mínimo.
“Esta política permite que o sonho do brasileiro pobre de formar o
filho doutor se torne realidade. E o melhor, com uma formação de
qualidade que, até pouco tempo, era reservada apenas para os filhos da
elite. Além disso, cria uma fé na escola pública. E isso é
importantíssimo porque nove em cada dez estudantes do ensino médio estão
nas escolas públicas”, afirma Sérgio Custódio, coordenador do Movimento
dos Sem Universidade (MSU), criado por professores de cursinhos
comunitários e um dos principais articuladores do projeto.
“O principal mérito do projeto é colocar a escola pública no centro
do acesso ao ensino superior de qualidade. É valorizar a escola pública e
dar aos milhões de jovens que estudam nelas a oportunidade real de ter
acesso à universidade”, complementa Daniel Cara, coordenador da Campanha
Nacional pelo Direito à Educação, que articula mais de 200 entidades,
incluindo movimentos sociais, sindicatos, ONGs, fundações, grupos
universitários, estudantis, juvenis e comunitários.
Campanha conservadora
A expectativa em relação à postura de Dilma é grande, mas tudo indica
que o desfecho será favorável. Ministério da Educação (MEC), Secretária
de Direitos Humanos (SDH) e Secretária de Promoção da Igualdade Racial
(Seppir) aprovam a lei. O que preocupa os idealizadores é que a campanha
conservadora contra as cotas segue forte na mídia. Esta semana,
editorias e artigos sustentaram teses há muito já superadas de que o
Brasil é uma democracia racial e de que as ações afirmativas aprofundam
as discrepâncias sociais. “A presidenta Dilma é mais suscetível ao
discurso da mídia do que seu antecessor, o ex-presidente Lula. Mas, pelo
menos neste caso, acreditamos que ela não vai se render”, avalia Cara.
De acordo com ele, qualquer mudança proposta pelos movimentos sociais
na área de educação é amplamente atacada pela mídia. “Educação mexe com
o status quo, é questão emancipatória. No caso da luta pelos 10% do PIB
para a Educação, a batalha é grande, porque isso mexe com a prioridade
orçamentária do país. E a imprensa representa exatamente as 200 famílias
proprietárias da dívida interna brasileira, que não querem perder
percentuais para a educação”, ataca.
No caso das cotas, ele acredita que a condenação intransigente
reflete a defesa da elitização da universidade. “É um pouco de desespero
da elite, porque o que está em jogo são as vagas dos seus filhos”,
compara. Sérgio Custódio também atribui às críticas conservadoras ao
ranço da elite patrimonialista brasileira. “É preciso acabar com esta
concepção de que os bens públicos servem a eles. Inclusive as
universidades. O Brasil está crescendo e precisa de milhões de
profissionais bem formados para alavancarem este crescimento”,
argumenta.
Efeito Demóstenes
Há também uma espécie de trauma em relação à articulação das forças
conservadoras durante o processo de tramitação do projeto. “Em 2008,
para aprovar o projeto na Câmara, nós conseguimos fechar um acordo com
todos os partidos políticos. Entretanto, depois que o projeto seguiu
para o Senado, apareceu o ovo da serpente: o ex-senador Demóstenes
Torres (DEM-GO), que descumpriu o acertado e reatualizou o discurso
racista no país”, relembra Custódio.
Segundo ele, o ex-senador, que teve seu mandato cassado em função do
seu envolvimento com a organização criminosa chefiada por Carlinhos
Cachoeira, capitaneou o discurso das elites, prejudicando a aprovação do
projeto, naquele momento tida como consensual. “Hoje, tenta-se vender o
Demóstenes apenas como caso de polícia, mas ele desempenhou um papel
muito mais nocivo para o país. Ele criou uma frente ideológica, fundou
movimentos sociais dentro do seu gabinete, como o dos pardos e dos
caboclos brasileiros”, argumenta o militante.
Daniel acrescenta que, com a cassação do mandato dele, esse tipo de
discurso perdeu força no parlamento. Apenas o senador Aloysio Nunes
(PSDB-SP) repetiu a cantilena na votação da última terça. “Até mesmo a
oposição brincava que Nunes estava mais preocupado com os editoriais dos
jornais do que com a justiça social”, relatou.
Problema consensual
Do ponto de vista do campo popular, uma das poucas críticas ao
projeto é determinar que o critério de acesso sejam as notas obtidas nas
escolas, e não em avaliações mais gerais como o ENEN ou os
vestibulares. Mas, antes do Senado aprová-lo, o senador Paulo Paim
(PT-RS) negociou o veto ao artigo pela presidenta.
“A nota escolar não pode ser critério de acesso. Seria o caos. Vai
ter professor sequestrado para garantir o ingresso de aluno em
universidade”, aponta o senador Cristovam Buarque (PDT-DF), entusiasta
histórico do projeto, mas que não gostou nada da forma como ele foi
aprovado. “Acho constrangedor o Senado aprovar uma lei, esperando o veto
presidencial de parte dela. Não acho que este seja um arranjo
republicano”, criticou.
Para o senador, que já foi reitor da Universidade de Brasília (UnB) e
é considerado um dos maiores especialistas da casa em Educação, a
proposta precisava ser melhor amadurecida no Congresso. “Não é nada
contra o mérito da proposta, que acredito ser muito positiva. Mas tem
aspectos que precisam ser mais debatidos. O limitador de renda, por
exemplo, vai impedir que a classe média volte a colocar seus filhos na
escola pública para que tenham melhores chances de entrar numa
universidade. E seria ótimo que isso ocorresse, porque a escola seria
pressionada a melhorar em qualidade”, argumenta.
O presidente do MSU discorda. Segundo ele, o limitador só vale para
parte das vagas. Portanto, defende que a essência do projeto ainda é a
valorização da escola pública. Em relação à negociação para o veto,
afirma que foi a melhor solução. “Foi um erro que veio da proposta
aprovada lá na Câmara. Se o Senado alterasse, o projeto teria que voltar
a tramitar entre os deputados e poderia levar mais 13 anos para ser
aprovado. Não podemos minimizar a capacidade das forças conservadores se
reaglutinarem”, opina.
Cara acrescenta que tanto o limitador de renda quanto à avaliação
pelas notas escolares foram frutos da negociação com a oposição para que
o projeto fosse aprovado, desde 2008. Entretanto, avalia que o
limitador de renda não será relevante para tirar o foco da escola
pública. “Este é um critério que pode mudar ao longo dos dez anos em que
a proposta vigorar.
E se mudar, melhor: será a comprovação de que a renda média do brasileiro subiu”, esclarece. Quanto às notas escolares, também defende que o problema será corrigido, de forma prática, com o veto presidencial.
E se mudar, melhor: será a comprovação de que a renda média do brasileiro subiu”, esclarece. Quanto às notas escolares, também defende que o problema será corrigido, de forma prática, com o veto presidencial.
Autonomia universitária
A outra crítica relevante ao projeto parte da Associação Nacional dos
Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior (Andifes). Mas
também não tem a ver com o mérito da proposta. Os reitores defendem
posição histórica de que a forma de acesso às universidades deve ser
discutida por cada instituição, obedecendo às demandas regionais. Porém,
o presidente da entidade, Carlos Maneschy, ressalta que o tema ainda
não foi retomado pelo pleno de reitores, após a aprovação do projeto.
“Nossa prioridade tem sido encontrar uma solução para o problema da
greve das universidades”, justifica.
Critovam Buarque discorda. “A universidade tem que ser autônoma, mas
não autista. Essa autonomia tem que estar limitada às regras definidas
pelo interesse público. É preciso que existam mecanismos capazes de
impedir, por exemplo, que uma instituição decida que filhos de senadores
terão prioridades de acesso”, argumenta. Daniel Cara também contesta a
posição da Andifes. “Os reitores participaram da discussão deste projeto
desde o início. Agora, precisam compreender que a posição deles foi
vencida. Isso é acatar o jogo democrático”, avalia.
Maneschy insiste que a crítica não é ao mérito da política de cotas,
mas à forma como será imposta as instituições. E ressalta que, ao
contrário do que a mídia faz parecer, a Andifes compreende a importância
das ações afirmativas e é favorável às cotas. Como exemplo, cita a
política implantada há cinco anos pela Universidade federal do Pará
(UFPA), instituição da qual é reitor. “É muito parecida com a prevista
pelo projeto, porque reserva metade das vagas para alunos egressos da
escola pública, sendo 40% delas para negros”, explicita.
E o reitor ainda defende os resultados já aferidas. “Como estamos
formando as primeiras turmas agora, não tivemos como medir o desempenho
dos nossos alunos cotistas no mercado de trabalho. Mas na vida
acadêmica, tem sido muito equilibrado entre cotistas e não cotistas. A
média das notas dos cotistas é até um pouco maior. E o nível de evasão
escolar ficou abaixo do dos não cositas, principalmente porque
implantamos uma política de permanência”, afirma.
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