Reforma da Arquitetura Institucional da Segurança Pública no Brasil
Texto publicado na Revista da Federação Nacional dos Policiais Federais, em julho de 2012
A situação da segurança pública no Brasil permanece grave. Avanços no
controle do crime e da violência, em algumas regiões, mesmo
significativos, têm sido anulados, no cômputo agregado, pela
deterioração verificada em outras, nas quais aumentam, consistentemente,
as ocorrências de modalidades criminais relevantes. O país continua
estacionado na faixa dos 25 a 27 homicídios dolosos por 100 mil
habitantes. Em termos absolutos, os 50 mil casos por ano correspondem ao
segundo lugar, no campeonato mórbido do crime letal intencional em todo
o planeta.
Nosso país tem logrado conquistas expressivas na redução da
pobreza e das desigualdades, no crescimento econômico e na consolidação
da democracia, embora patine ante os desafios históricos da educação, da
saúde, da infra-estrutura, do patrimonialismo como cultura política e
prática dos poderes públicos. Embora preserve a tradição quase atávica
do tratamento desigual aos cidadãos, em matéria de justiça, respeito à
legalidade constitucional e provisão de segurança. A desigualdade no
acesso à Justiça ainda é um dos centros gravitacionais das iniquidades
nacionais, o que corrói a confiança popular nas instituições e dilapida a
legitimidade do Estado. Essa forma cruel de desigualdade começa na
abordagem policial e na transgressão de direitos elementares, e termina
na prolatação de sentenças e em seu cumprimento. A Justiça criminal, as
polícias, o sistema penitenciário constituem a arena em que o Brasil
promissor e inclusivo, refratário a preconceitos e autoritarismos, duela
com os espectros escravagistas e opressivos de seu passado. Passado que
ainda nos assombra e que se infiltra nas rotinas cotodianos. Nosso país
que pleiteia um lugar de destaque no concerto das nações, mantém os pés
no pântano da tortura, das execuções extra-judiciais, da traição aos
direitos humanos, da aplicação seletiva das leis, submetendo-as à
refração ditada pelo racismo e pelo bias de classe.
A síntese desse destino desafortunado, na contra-mão do processo
civilizatório e da afirmação plena do Estado democrático de direito,
está aí, diante de nossos olhos, resistindo a maquiagens e hipocrisias:
(a) 50 mil vítimas letais de ações violentas intencionais todo ano; (b) a
terceira maior população carcerária do mundo (e a que mais cresce):
cerca de 540 mil presos; (c) e a inexistência de relação entre tantas
mortes brutais e tantas prisões. Apenas 8% dos homicídios dolosos, em
média, são investigados com êxito, no Brasil; enquanto o alvo dessa
perversa voracidade encarceradora têm sido os jovens pobres,
frequentemente negros, com baixa escolaridade, que negociam substâncias
ilícitas sem uso de arma ou violência e sem vínculo com organização
criminosa. Esse grupo social, não por acaso, é também aquele
preferencialmente atingido por duas dinâmicas bárbaras: os assasinatos e
as execuções extra-judiciais, as quais têm tornado as polícias
brasileiras campeães mundiais de brutalidade letal.
Não é preciso dizer que a privação de liberdade para quem atua sem
violência no varejo desorganizado de drogas ilegais, é a forma mais
dispendiosa de produzir o pior resultado, tanto para esses jovens,
quanto para a sociedade.
Eis porque nosso país tem gerado esse casamento surpreendente entre
impunidade –relativamente aos crimes mais graves, os homicídios dolosos–
e furor punitivo, manifestado no encarceramento febril –o qual tampouco
se estende aos crimes de colarinho branco, contra o patrimônio público e
afins (malgrado meritórios esforços da polícia federal, do ministério
público e de setores da sociedade civil).
Há, portanto, problemas suficientes para a militância de muitas
gerações. Há razões suficientes para a angústia e a insônia dos
democratas com espírito solidário e com senso de justiça. Contudo, esse
quadro escandaloso, ainda que tenha provocado reações indignadas e
torrentes caudalosas de votos, tem servido mais ao populismo penal e à
renovação de mandatos eletivos dos demagogos (sempre à espreita, à
espera de uma crise, de um crime espetacular, para propor penas mais
duras, punições mais severas) do que à difusão da consciência de que
mudanças estruturais são necessárias e inadiáveis. Diante de cada
manchete banhada em sangue, autoridades reafirmam a correção dos rumos
que escolheram e prometem mais do mesmo. Não se furtam a acobertar
mal-feitos das corporações pelas quais respondem, em nome da suposta
importância de incentivar a disposição bélica dos comandados –para o que
contam com a cumplicidade de setores das instituições cujo papel seria
realizar o controle externo da atividade policial e julgar os acusados
de ilegalidades. Sem a proteção superior e inter-institucional, a abjeta
enxurrada de execuções extra-judiciais, edulcoradas por títulos nobres,
como autos-de-resistência, teria sido obstada há décadas. Pior de tudo é
o falso entendimento de que estamos em uma guerra. O corolário implica
uma redefinição do papel das forças policiais, na contramão do mandato
que a Constituição federal lhes atribui.
Muitos crimes, sobretudo contra a vida, muita punição indevida e muita
impunidade inaceitável, cumplicidades que traem a legalidade, impotência
investigativa e ineficiência preventiva, brutalidade institucional
fazendo rodar o círculo vicioso da violência contra os direitos humanos e
as determinações constitucionais: os males do Brasil são. Entre outros,
como vimos. E o deserto de iniciativas políticas ou governamentais. No
máximo, os bem intencionados procuram identificar e punir desvios
individuais de conduta, como se a dinâmica da corrupção e da brutalidade
não tivesse alcançado a escala de um padrão que se repete. Pois muito
bem: de padrões que se repetem, que se tornam regulares e previsíveis,
diz-se institucionalizados. E de padrões institucionalizados deduz-se
uma política subjacente, consciente ou não. Nesse caso, como imaginar
ignorância ou inconsciência por parte de autoridades, governantes,
observadores ou mesmo da sociedade, sendo tão ostensivos os resultados e
o modus operandi? Por isso, não parece excessivo usar uma categoria
mais forte: genocídio –cujas condições de possibilidade envolvem a
anuência por omissão e silêncio, ou por demanda histérica e vingativa,
da sociedade.
E quanto aos policiais e demais profissionais da segurança pública,
estariam satisfeitos? Não estão. A resposta não se refere somente às
condições de trabalho e à insuficiência dos salários. Há uma
insatisfação mais ampla. Segundo pesquisa que realizei com Marcos Rolim e
Silvia Ramos, graças ao apoio do PNUD e do ministério da Justiça, em
2009, na qual registramos a opinião de 64.120 profissionais da segurança
pública, em todo o país, 70% são contrários ao modelo policial fixado
pelo artigo 144 da Constituição.
A maioria dos policiais e demais profissionais da segurança pública têm
razão: os resultados pífios na investigação e na prevenção, assim como a
ingovernabilidade da maior parte das instituições policiais (expressa
nos elevados índices de corrupção, procedimentos ilegais e brutalidade) e
a desvalorização profissional (com honrosas exceções) têm a ver,
diretamente, com a arquitetura institucional da segurança pública –que
envolve o modelo policial–, desenhada no artigo 144 da Constituição.
Como a matriz dos problemas se concentra no arranjo institucional –e na
cultura autoritária, promotora do arbítrio e belicista, que lhe está
associada–, pode-se afirmar que os avanços locais não decorreram das
virtudes do referido arranjo: ocorreram a despeito de seus vícios. De
tal modo que as conquistas rareiam e revelam-se mais difíceis,
justamente por se darem a contrapelo, resistindo às irracionalidades e
desfuncionalidades inscritas no modelo policial e, mais amplamente, no
arranjo institucional.
As principais deficiências que a arquitetura institucional definida
pelo artigo 144 apresenta –arquitetura que inclui as estruturas
organizacionais das polícias, isto é, o modelo policial– são as
seguintes:
(1) A União tem participação diminuta e papel apenas coadjuvante no
campo da segurança pública, salvo em situações extremas ou crises
graves. O Departamento de Polícia Federal, de Polícia Rodoviária
Federal, o Departamento Penitenciário Nacional e a Secretaria Nacional
de Segurança Pública integram o Ministério da Justiça, porém nem por
isso articulam-se, organicamente. A fragmentação supera a coordenação,
enfraquecendo ainda mais o arsenal já pequeno de unidades e atribuições.
À SENASP compete formular uma política nacional de segurança, mas não
se lhe confere autoridade para implementá-la. Seu único recurso de poder
é o Fundo que gere e que lhe faculta distribuir recursos como
ferramenta de indução. Verbas poderiam, eventualmente, representar um
fator indutivo poderoso. Não tem sido o caso, entretanto, em razão do
volume de recursos destinados ao Fundo pelo orçamento federal.
A Força Nacional, cujo contingente é pequeno, opera com policiais
cedidos, provisoriamente, pelos estados e age somente em circunstâncias
bastante específicas e com poderes bastante limitados.
A quase completa impotência da União explica por que sucessivos
governos federais têm assumido algum protagonismo em matéria de
segurança pública apenas em momentos de crise e, em geral, simplesmente
prestando (o que tende a gerar dividendos políticos) apoio solidário e
generoso a governos estaduais (que arcam com os ônus do desgaste
político), sobre os quais recaem todas as responsabilidades, uma vez que
as polícias estaduais concentram as mais importantes atribuições. As
exceções que qualificam a União como protagonista são proporcionadas por
ações da PRF e, sobretudo, da PF, cada vez mais reconhecidas e
aplaudidas pela população.
(2) Os municípios são praticamente negligenciados, no artigo 144, não
lhes cabendo qualquer responsabilidade e autoridade em matéria de
segurança. As guardas civis municipais são reduzidas a zeladoras dos
próprios municipais. Esta subestimação mostra-se ainda mais
surpreendente e injustificável, quando se a contrasta com a importância
dos municípios –estabelecida na Constituição e, progressivamente, na
legislação infra-constitucional subsequente– em matérias decisivas como
educação, saúde, assistência social e outras. A desvalorização
constitucional colide com a realidade, na medida em que os municípios
têm assumido crescente protagonismo também na segurança, mas o fazem ao
desabrigo da lei, sobretudo quando criam guardas à imagem e semelhança
das polícias militares.
(3) As polícias estaduais, civis e militares, concentram a maior parte
de responsabilidades e autoridade. Cada uma delas apresenta deficiências
intrínsecas às suas respectivas estruturas organizacionais. Por isso,
apesar da grande quantidade de excelentes profissionais, éticos e
competentes, os resultados obtidos estão muito aquém das necessidades e
da potencialidade agregada de seus profissionais –potencialidades
obstadas pela irracionalidade sistêmica e pelas desfuncionalidades
intrínsecas às corporações. O mesmo se aplica às agências periciais,
cuja contribuição seria decisiva para o aprimoramento das investigações
se lhes fossem concedidas as condições institucionais e os meios
operacionais indispensáveis.
(3.1) Segundo a Constituição, as polícias militares são forças
auxiliares e reserva do Exército (art. 144, parágrafo 6º) e sua
identidade tem expressão institucional por intermédio do Decreto nº
88.777, de 30 de setembro de 1983, do Decreto-Lei nº 667, de 02 de julho
de 1969, modificado pelo Decreto-Lei nº 1.406, de 24 de junho de 1975, e
do Decreto-Lei nº 2.010, de 12 de janeiro de 19831. Em
resumo, isso significa o seguinte: o Exército é responsável pelo
“controle e a coordenação” das polícias militares, enquanto as
secretarias de Segurança dos estados têm autoridade sobre sua
“orientação e planejamento”.
Em outras palavras, os comandantes gerais das PMs devem reportar-se a
dois senhores. Indicá-los é prerrogativa do Exército (art. 1 do
Decreto-Lei 2.010, de 12 de janeiro de 1983, que modifica o art. 6 do
Decreto-Lei 667/69), ao qual se subordinam, pela mediação da
Inspetoria-Geral das Polícias Militares (que passou a integrar o
Estado-Maior do Exército em 1969), as segundas seções (as PM2),
dedicadas ao serviço de inteligência, assim como as decisões sobre
estruturas organizacionais, efetivos, ensino e instrução, entre outras.
As PMs obrigam-se a obedecer regulamentos disciplinares inspirados no
regimento vigente no Exército (art.18 do Decreto-Lei 667/69) e a seguir o
regulamento de administração do Exército (art. 47 do Decreto
88.777/83), desde que este não colida com normas estaduais.
Há, portanto, duas cadeias de comando, duas estruturas organizacionais,
convivendo no interior de cada polícia militar, em cada estado da
Federação. Uma delas vertebra a hierarquia ligando as praças aos
oficiais, ao comandante-geral da PM, ao secretário de Segurança e ao
governador; a outra vincula o comandante-geral da PM ao comandante do
Exército, ao ministro da Defesa e ao presidente da República. Apesar da
autoridade estadual sobre “orientação e planejamento”, a principal
cadeia de comando é a que subordina as PMs ao Exército. Não é difícil
compreender o primeiro efeito da duplicidade assimétrica: as PMs
estaduais constituem, potencialmente, poderes paralelos que subvertem o
princípio federativo.
Nada disso foi percebido, porque o Exército tem tido imensa
sensibilidade política e tem sido parcimonioso no emprego de suas
prerrogativas. Quando deixar de sê-lo e, por exemplo, vetar a nomeação
de algum comandante-geral, as consequências serão muito sérias. Não
obstante as cautelas do Exército, os efeitos da subordinação estrutural
ao Exército têm sido sentidos no cotidiano de nossas metrópoles. Na
medida em que as PMs não estão organizadas como polícias, mas como
pequenos exércitos desviados de função, os resultados são, salvo
honrosas exceções, os desastres que conhecemos: ineficiência no combate
ao crime, incapacidade de exercer controle interno (o que implica
envolvimentos criminosos em larga escala), insensibilidade no
relacionamento com os cidadãos.
Polícias nada têm a ver com exércitos: são instituições destinadas a
garantir direitos e liberdades dos cidadãos, que estejam sendo violados
ou na iminência de sê-lo, por meios pacíficos ou pelo uso comedido da
força, associado à mediação de conflitos, nos marcos da legalidade e em
estrita observância dos direitos humanos. Por isso, qualquer projeto
conseqüente de reforma das polícias militares, para transformar métodos
de gestão e racionalizar o sistema operacional, tornando-o menos reativo
e mais preventivo (fazendo-o apoiar-se no tripé
diagnóstico-planejamento-avaliação), precisa começar advogando o
rompimento do cordão umbilical com o Exército.
Uma barafunda institucional como essa, gerando ambigüidades,
inviabilizando mudanças estruturais urgentes e alimentando confusões,
tinha de dar no que deu tantas vezes: greves selvagens, nas quais todos
saem perdendo: a população, os governos e os próprios policiais, mesmo
quando ganham algumas vantagens residuais. A barafunda tinha de produzir
esse resultado catastrófico, sobretudo quando turbinada por salários
insuficientes, condições de trabalho desumanas, ausência de
qualificação, falta de apoio psicológico permanente e códigos
disciplinares medievais, cuja própria constitucionalidade deveria ser
questionada, uma vez que afrontam direitos elementares.
Esses códigos são tão absurdos, que penalizam o cabelo grande, o coturno sujo e o atraso com a prisão do soldado, mas acabam sendo transigentes com a extorsão, a tortura, o seqüestro e o assassinato. A falta disciplinar, cometida dentro do quartel, é alvo de punição draconiana. O crime perpetrado contra civis é empurrado para as gavetas kafkianas da corregedoria, de onde freqüentemente é regurgitado para o labirinto burocrático, em cuja penumbra repousa até que o esquecimento e o jeitinho corporativista o sepultem nos arquivos. Os policiais, de norte a sul do Brasil, estão aprendendo a usar o discurso dos direitos humanos a seu favor: cobram salários dignos, condições razoáveis de trabalho e um código disciplinar que os respeite, como profissionais, cidadãos e seres humanos.
Mudanças liberalizantes, quando bem administradas e formuladas, não
implicam anarquia e quebra de hierarquia –como demonstraram algumas
experiências reformistas. Portanto, é possível concluir: um novo
regulamento disciplinar, compatível com projetos consistentes de reforma
das polícias, não deve ser um documento que atente contra a hierarquia e
a disciplina. Ao contrário, deve ser um instrumento normativo que
coloque a hierarquia e a disciplina a serviço da sociedade, tornando a
polícia militar melhor e mais eficiente. Ocorre que esse aprimoramento
não se fará sem a valorização dos trabalhadores policiais, dos
superiores aos de mais baixa patente –e isso envolve, além de
regulamentos disciplinares mais saudáveis, salários mais altos,
qualificação profissional mais adequada e condições de trabalho
racionais e humanas2.
Em síntese: as PMs são definidas como força reserva do Exército e
submetidas a um modelo organizacional concebido à sua imagem e
semelhança. Por isso, têm até 13 níveis hierárquicos e uma estrutura
fortemente verticalizada e rígida. A boa forma de uma organização é
aquela que melhor serve ao cumprimento de suas funções. As
características organizacionais do Exército atendem à sua missão
constitucional, porque tornam possível o “pronto emprego”, qualidade
essencial às ações bélicas destinadas à defesa nacional. Nesse contexto,
entende-se o veto à sindicalização.
A missão das polícias no Estado democrático de direito é inteiramente
diferente daquela que cabe ao Exército. O dever das polícias é prover
segurança aos cidadãos, garantindo o cumprimento da Lei, ou seja,
protegendo seus direitos e liberdades contra eventuais transgressões que
os violem. No repertório cotidiano das atividades das PMs, confrontos
armados que exigem pronto-emprego representam menos de 1%. Não faz
sentido estruturar toda uma organização para atender a 1% de suas ações.
Para estas, bastam unidades especiais, configuradas para tais
finalidades. O funcionamento usual das instituições policiais com
presença uniformizada e ostensiva nas ruas, cujos propósitos são
sobretudo preventivos, requer, dada a variedade, a complexidade e o
dinamismo dos problemas a superar, os seguintes atributos:
descentralização; valorização do trabalho na ponta; flexibilidade no
processo decisório nos limites da legalidade, do respeito aos direitos
humanos e dos princípios internacionalmente concertados que regem o uso
comedido da força; plasticidade adaptativa às especificidades locais;
capacidade de interlocução, liderança, mediação e diagnóstico; liberdade
para adoção de iniciativas que mobilizem outros segmentos da corporação
e intervenções governamentais inter-setoriais. Idealmente, o(a)
policial na esquina é um(a) micro-gestor(a) da segurança em escala
territorial limitada com amplo acesso à comunicação intra e
extra-institucional, de corte horizontal e transversal3.
Engana-se quem acredita que mais rigor hierárquico, mais centralização,
menos autonomia na ponta e regimentos mais duros garantem mais controle
interno, menos corrupção, desmandos e brutalidade. Se fosse assim,
nossas polícias militares seriam campeãs de virtude. Pelo contrário,
sacrificamos a eficiência no altar da disciplina para colher tempestades
e saldos negativos em todos os fronts.
Não há nenhuma razão para que as PMs copiem o modelo organizacional do
Exército, o que não as impediria, necessariamente, de adotar elementos
da estética, da ética e da ritualística militar. Nesse novo contexto, a
sindicalização tornar-se-ia legal e legítima. Quem teme sindicatos e
supõe possível manter a ordem reprimindo demandas dos trabalhadores,
proibindo sua organização, não compreende a história social e as lições
que as lutas trabalhistas nos ensinaram. Não entende que o veto à
organização provoca efeitos perversos para todos e planta uma bomba de
efeito retardado sob nossos pés.
(3.2) Na polícia civil, os policiais que atuam na ponta sabem muito; a
instituição, (quase) nada sabe. Isso significa que a instituição carece
do conhecimento qualificado sem o qual não há gestão: faltam
diagnóstico, planejamento, avaliação e monitoramento. Quando há dados
confiáveis, as dinâmicas criminais podem ser bem descritas e, em parte,
antecipadas, dada a regularidade que caracteriza estes fenômenos
sociais. Antecipadas, podem, ser evitadas. Desde que haja planejamento
em lugar da reatividade, do voluntarismo instado pela mídia ou da
inércia que apenas repete padrões. Evitar a recorrência de tais
dinâmicas nem sempre é tarefa exclusivamente policial –em geral, requer
envolvimento de várias instâncias governamentais e mobilização bem
focalizada das comunidades. Portanto, dados policiais confiáveis –isto
é, bem coligidos, organizados, processados, distribuídos e analisados-
servem a múltiplos propósitos e são, sempre, fundamentais.
Com freqüência, falta à polícia civil, além de uma rede virtual para
processamento informatizado dos dados básicos, padrão universal de
investigação e distribuição de recursos e iniciativas de acordo com
identificação de metas, prioridades, cronogramas, divisão de
atribuições, envolvendo também a definição de turnos de trabalho e a
articulação operacional entre unidades distritais e segmentos locais da
Brigada Militar.
O excesso de burocracia e o formalismo do inquérito dificultam a
agilidade das investigações e a integração necessária, seja com a
perícia, seja com o Ministério Público e a Justiça, seja com a PM e a
própria sociedade civil.
Os policiais sabem muito e a instituição, quase nada, porque a marca
distintiva da polícia civil é a fragmentação. Suas unidades locais estão
literalmente atomizadas: nem fornecem informações ao núcleo central
dirigente, nem recebem orientação sistemicamente ordenada, sem se abrem,
com transparência, para avaliações regulares quanto ao desempenho. Não
se submetem a direção nem a controle e permanecem alheias à política
institucional, quando ela existe. Nem o melhor gestor do planeta seria
capaz de implementar qualquer política de segurança (boa ou má), ante
tamanha inorganicidade. A gestão é, de fato, impossível. Portanto, é
natural que o tema da gestão se imponha, pois não faz sentido discutir
que políticas de segurança são boas ou más, sem que haja condições
mínimas para sua efetiva implementação.
A atomização cria condições para dois resultados: ineficiência e
vulnerabilidade à corrupção. Ineficiência, porque o isolamento impede a
coordenação que viabilizaria ações integradas, sem as quais não há
sucesso na segurança pública. Vulnerabilidade à corrupção, porque a
precariedade dos meios de acompanhamento e controle, associada à
“privatização” das informações, permite a negociação entre policiais e
criminosos, assim como outros acordos escusos. Se apenas um pequeno
grupo de policiais conhece a localização de suspeitos e sabe de
determinadas operações localizadas, todo arranjo será possível,
dependendo, claro, da disposição moral dos profissionais –mesmo sendo
poucos os corruptos, as condições descritas os protegem, estimulam e
fortalecem.
A conclusão aponta numa direção interessante: as medidas necessárias
para ampliar a eficiência (providências gerenciais e o desenvolvimento
tecnológico) coincidem com as que seriam necessárias para deter a
corrupção. Estas medidas (por exemplo, a informatização) são aquelas que
transformem esta realidade fragmentada, fazendo do arquipélago
inorgânico uma instituição no sentido pleno da palavra, isto é, uma
organização dotada de unidade e das condições que propiciam a gestão.
Suplementarmente, assinale-se que valem para a polícia civil os pontos
identificados no diagnóstico sumário da polícia militar, com exceção
daqueles que derivam da confusão normativa e do desvio de função
decorrente dos contraditórios imperativos legais.
(3.3) Há problemas que são comuns às polícias militares e civis e que remetem às respectivas estruturas organizacionais4.
Entre eles e com destaque, a crise da gestão ou, mais amplamente, de
governabilidade. A impossibilidade da gestão racional e do controle
efetivo das ações em campo (assim como a impotência dos comandos face à
proliferação de envolvimentos, nas mais variadas e danosas modalidades
de crime, de segmentos policiais numerosos), em função da carência dos
instrumentos e das condições indispensáveis, constitui a debilidade mais
grave, mais dramática das polícias brasileiras, sem cuja solução as
medidas importantes não poderão ser adotadas. Poderão até ser decididas,
mas dificilmente encontrarão os meios de sua implementação, por motivos
óbvios. Assim, o nó da reforma das polícias situa-se neste ponto
estratégico: a gestão (o controle, a governabilidade) e o conjunto dos
mecanismos sem cuja existência ela se inviabiliza. Os mecanismos em
causa (deixando de lado, por ora, fatores relevantes como formação,
capacitação, treinamento dos profissionais e sua socialização na cultura
corporativa, mais importante do que os protocolos formais e as normas
oficialmente transmitidas) são aqueles que tornam possíveis os seguintes
procedimentos e qualificam os seguintes momentos do trabalho policial:
dados-diagnósticos-planejamento-avaliação-monitoramento, os quais
dependem de formação/capacitação, rotinas, funções e estrutura
organizacional compatíveis, além de cultura corporativa e práticas
destinadas à construção da accountability, o que envolve participação da
sociedade, controle externo, resultados concretos, respeito aos
direitos humanos e à legalidade, elementos que, por sua vez, exigem
adoção de estratégias de trabalho policial de tipo comunitário e/ou
orientadas para a solução de problemas. Compreende-se que a introdução
de todos esses elementos e procedimentos, que se referem a dimensões
distintas mas complementares das instituições policiais, requer
alterações diversas, inclusive constitucionais, como se verá adiante.
A precariedade é tão séria que sequer há dados confiáveis sobre o
desempenho policial –quando se solicita a um profissional da segurança
pública, mesmo a um oficial superior, a avaliação da performance de sua
corporação, quase invariavelmente a resposta que se obterá confunde
avaliação com relatório de atividades e lista de operações. Ao invés de
observar a quantidade e a qualidade dos crimes, se diminuíram ou
aumentaram, etc., o profissional certamente se desviará e se perderá na
exposição de números referentes a prisões e apreensões de drogas e
armas, como se a criminalidade e a insegurança não importassem; como se
bastassem as ações policiais; como se elas fossem um fim em si.
Entretanto, na verdade, a lista de operações apenas demonstra que as
corporações se esforçaram, e nada diz a propósito da eficiência,
eficácia e efetividade do que se fez. A avaliação –momento absolutamente
decisivo e indispensável para a calibragem e a correção das políticas
públicas- sequer consta como item relevante da cultura profissional das
polícias brasileiras, estaduais e federais. Sabe-se quão difícil é
definir uma metodologia adequada para avaliar o desempenho policial. Não
se trata de matéria sobre a qual haja consenso internacional
consolidado; mas é indispensável avançar neste terreno e é inconcebível a
generalizada negligência à avaliação.
A ausência de dados críveis e rigorosos sobre desempenho policial é
apenas a ponta do iceberg. O problema é bem mais profundo e grave:
tampouco há dados consistentes sobre as dinâmicas criminais, ou pessoal
qualificado para interpretá-los (coletá-los, organizá-los, processá-los,
distribuí-los), ou rotinas adequadas que valorizem sua interpretação e a
produção de diagnósticos para fins práticos –isto é, não há gestão do
conhecimento. Não havendo dados, qualificação profissional, rotinas e
estruturas organizacionais, tampouco há processos decisórios que os
levem sistematicamente em conta para o planejamento operacional adequado
e compatível com as exigências dos desafios lançados ao poder público
pelo crescimento da criminalidade.
Não é exagero dizer que o planejamento é sempre tópico e reativo, por
isso espasmódico, e convive com ou se rende à inércia institucional, em
que se reproduzem práticas como hábitos atávicos. Não há horizontes de
tempo elásticos, nem exame das dinâmicas criminais que municie
antecipações racionalmente instruídas –sabemos que a criminalidade é um
dos mais regulares fenômenos sociais, favorecendo, conseqüentemente, a
previsão e a ação preventiva. Há, por exemplo, nos homicídios dolosos
(dependendo de seu tipo), forte concentração espacial e temporal –mas
esta característica raramente é explorada, em benfício das polícias,
através de intervenções preventivas, as quais requerem pro-atividade.
Ocorre que sem planejamento (sem dados e diagnóstico, rotinas,
estruturas organizacionais apropriadas e pessoal preparado), não há
estipulação de metas, sem as quais tampouco pode haver avaliação, o que,
por sua vez, impede o monitoramento corretivo de todo o processo de
trabalho da corporação. O mais grave não é o erro: somos humanos,
estamos fadados ao erro. O verdadeiramente grave é não nos credenciarmos
a identificá-lo, porque, se não o reconhecermos, correremos o risco de
nos condenarmos a repeti-lo. Em vez de sistema racional, capaz de
aprender com os erros, evoluir, amadurecer, acumular memória histórica,
as instituições policiais brasileiras, em função de sua organização
irracional –não da incompetência de seus membros, pois não é disto que
se trata, ainda que haja evidentemente problemas de formação e
capacitação a superar-, tropeçam no voluntarismo espasmódico, na
reatividade ou na simples inércia conservadora e absolutamente
insensível para as demandas de nosso tempo e as mudanças em curso no
mundo social contemporâneo e no universo da criminalidade.
Nas instituições policiais não há gestão, porque não há as condições
mínimas para que uma gestão racional opere: não há formação de pessoal
adequada às missões profissionais, especialmente não há educação
corporativa compatível com as exigências da gestão do conhecimento, às
quais as rotinas, estruturas organizacionais e processos decisórios
também são indiferentes, quando não refratários ou mesmo hostis.
Em outras palavras, não há dados confiáveis, diagnósticos rigorosos,
planejamento consistente, avaliações sistemáticas, monitoramento
corretivo regular. Não havendo gestão –ou suas pré-condições-, não é
possível aplicar uma política de segurança. Antes, portanto, de examinar
as qualidades das políticas substantivas, é preciso verificar se há
condições mínimas para sua implementação. Em não havendo, como é o caso,
resta proceder às mudanças institucionais e organizacionais, para que
se viabilize a gestão e para que, finalmente, em conformidade com a
gestão racional, políticas inteligentes e consistentes se formulem e
implantem.
Nesse sentido, faz parte de qualquer iniciativa séria de reforma das
polícias e de qualquer política de segurança que mereça este nome (a
qual não tem como ser plenamente implementada sem reformas nas
estruturas organizacionais, as quais dependem de mudanças no artigo 144
da Constituição), a construção dos meios indispensáveis à gestão, não
porque isso baste, não porque superestimemos essa dimensão, mas porque
sem esses meios não haverá política alguma. Permanecerão, as
instituições policiais e afins, condenadas ao círculo vicioso do
improviso e da reatividade.
Requer-se, portanto, como fundamento das políticas substantivas, uma
política de reforma institucional ampla, viabilizadora da gestão –da
gestão de que precisamos, aquela que seja adequada à magnitude do
desafio posto à sociedade e ao Estado pela criminalidade violenta.
Além das deficiências referidas, há outras duas que avultam:
(a) a primeira delas e mais importante, a fratura do ciclo de trabalho
policial, que separa as funções ostensivas e preventivas das tarefas
envolvidas com a investigação, destinando-as, respectivamente, às
polícias militar e civil. Não se trata de divisão racional do trabalho
em sentido complementar para beneficiar a eficiência. Pelo contrário,
produzem-se ineficiência e rivalidades, duplicam-se atividades e se
reduzem a efetividade e a qualidade dos esforços. A sociologia das
organizações demonstra que cada instituição tende a desenvolver valores e
identidade próprios, cuja raiz é a diferença agonística e cujo
combustível é a comparação competitiva e conflitiva com aquelas que
atuam no mesmo campo. As disputas podem ser assimiladas e convertidas em
energia construtiva para ambas, desde que a dependência recíproca não
exija unidade e coesão para a consecução rotineira das respectivas
atribuições, em todos os domínios de suas atividades. Prevenção e
investigação, ou, por um lado, rondas, vigilância territorial e
policiamento comunitário, e, por outro lado, levantamento de informações
visando esclarecimento de crimes, não constituem ações auto-suficientes
que se complementem na realização de objetivos comuns mais elevados.
Pelo contrário, são ações intimamente ligadas e interdependentes. A
colaboração entre a atuação ostensiva e as tarefas investigativas não se
esgota na preservação da cena de um crime e no apoio para a coleta de
vestígios. Ou seja, as duas metades não são metades de uma unidade, são
etapas de um continuum as quais, por vezes, superpõem-se e que, de todo
modo, não prescindem das demais e, consequentemente, exigem articulação
orgânica que apenas a unidade institucional proporciona. Impõe-se,
portanto, a unificação do ciclo de trabalho policial –o que é
inteiramente diverso da unificação entre as atuais polícias civis e
militares. Por motivos vários, inclusive os que estão aqui elencados,
elas são instituições extremamente problemáticas. Unificá-las geraria um
problema de dimensões ainda maiores.
Uma das mais ostensivas manifestações das dificuldades que
decorrem da ruptura do ciclo é a falta de integração sistêmica na
dimensão territorial, cujas implicações operacionais e gerenciais são
muito graves.
Com exceção de poucos estados ou de algumas regiões limitadas de alguns
poucos estados, as unidades locais das polícias civil e militar não
compartilham responsabilidade territorial. Ou seja, as delegacias
distritais responsabilizam-se por determinada área e as unidades locais
da polícia militar responsabilizam-se por outras áreas, cuja delimitação
segue orientações distintas. Como todo o território dos estados está
sob responsabilidade de ambas as polícias, todo recorte espacial
corresponde à superposição de responsabilidades, mas seus limites não
coincidem. Isso impede a colaboração operacional, a avaliação integrada,
o planejamento compartilhado, o monitoramento comum, o diálogo comum
com as comunidades.
Ainda mais grave: as circunscrições territoriais não correspondem a setores censitários definidos pelo IBGE5 ou
a seus múltiplos –os setores censitários são as unidades elementares
com as quais trabalha o censo e, portanto, são as referências atômicas
para os dados demográficos (e outros), indispensáveis para
contextualizar os números absolutos de crimes e resultados de ações
policiais, tornando-os relativos, isto é, comparáveis entre si e,
portanto, passíveis de análise.
Não haverá gestão efetiva sem a integração das áreas e sua subordinação
às delimitações censitárias. Isto porque só há gestão (entenda-se:
planejamento, avaliação, monitoramento, distribuição de funções,
conhecimentos e recursos de poder, estabelecimento de rotinas e
readequação organizacional) havendo dados qualificados e diagnósticos. A
qualificação envolve imputação, aos dados, do predicado da
comparabilidade –ou eles nada significarão.
A superposição das áreas sob responsabilidade de cada polícia e sua
sobreposição às circunscrições censitárias tornam possível -ou
potencializam- o emprego de softwares de geoprocessamento, cuja
importância para a análise das dinâmicas criminais e, conseqüentemente,
para o planejamento e o trabalho preventivo (ou seja, para a gestão),
deve ser sublinhada.
(b) As duas polícias estaduais, na prática, são quatro: delegados e
não-delegados; oficiais e não-oficiais. Cada uma dessas esferas
compartilha valores, ambições e expectativas diferentes e, com
frequência, em atrito. Basta imaginar o que significa para dezenas de
agentes da polícia civil lotados em determinada delegacia, com vinte
anos de carreira, a chegada para comandá-los de um novo delegado,
recém-concursado –recebendo salário superior e se beneficiando de mais
prestígio e de incomparáveis perspectivas de ascensão–, um rapaz muito
jovem, que concluiu há pouco seu bacharelado em Direito e teve pouca
oportunidade de estudar segurança pública (que não se confunde com o
conhecimento das leis) e menos ainda gestão de agências policiais.
Pode-se também imaginar o que significa ingressar como soldado na PM,
sabendo que há um teto para a ascensão profissional, independentemente
de suas qualidades, a não ser que tenha ainda idade para sair e
recomeçar, se dispuser dos títulos necessários, por meio de novo
concurso, agora para o oficialato. Em algumas polícias militares, a
carreira já está sendo unificada, o que representa um admirável avanço.
Quanto às polícias civis e à polícia federal, não tem havido nenhuma
sinalização nesse sentido.
A unificação das carreiras policiais, em cada especialidade, é
indispensável para garantir coesão e adesão seja à disciplina, seja às
eventuais divisões do trabalho. Todo neófito que chega às ruas para
enfrentar o primeiro dia de trabalho sabe que nada o impede de alcançar o
posto máximo de sua instituição, a depender de sua dedicação, de sua
competência, de suas qualidades éticas e profissionais, de seus estudos,
méritos, experiência e de seu desempenho nos testes e exames
pertinentes. Nesse sentido, a carreira é democrática e estimula a
aplicação e o desenvolvimento de cada profissional. Os cursos serão
recompensados e o conhecimento reconhecido.
A unificação das carreiras não implicaria, necessariamente,
exclusividade, porque o ingresso por concurso de jovens delegados pode
ser importante para oxigenar a instituição, mas não me parece que a
graduação exigida tivesse de ser, forçosamente, em Direito (ainda que
fosse preciso estudar Direito, além de segurança pública, no processo de
formação). Contudo, esse processo deveria privilegiar os profissionais
que já estão na instituição, desde que se preparassem (contando com
apoio institucional) e se submetessem com sucesso a exames seletivos. Os
candidatos externos ocupariam as vagas correspondentes a determinada
cota.
(4) Um ponto que parece secundário, mas é crucial, e deve figurar com
destaque no diagnóstico da segurança pública brasileira e na análise do
arranjo estrutural e no desempenho de suas instituições é o
relacionamento com a segurança privada e o lugar que esse setor ocupa.
Sem um diagnóstico preciso e profundo, não há como formular propostas
consistentes de reforma. Por isso, essa questão não pode ser
subestimada, sob pena do projeto de mudança vir a negligenciar os
desafios complexos que representa, condenando-se ao fracasso.
Outra maneira de definir essa mesma problemática seria a seguinte: um
ponto crucial, sine qua non, é o padrão salarial dos policiais –mais
ainda: são suas condições de trabalho, que incluem dimensão psicológica,
a qual exige acompanhamento e atenção permanentes, considerando-se o
stress provocado pelas rotinas tensas e arriscadas.
Por que salários e segurança privada remetem a um único tópico? Porque a
segurança privada informal e ilegal tornou-se fonte de financiamento
indireto do orçamento público na área da segurança. É o que costumo
denominar “gato orçamentário”, ironicamente, recorrendo ao jargão
miliciano (ou budgetcat, por analogia ao netcat das milícias
fluminenses). Para evitar o colapso do orçamento, provocado por demandas
salariais (estimuladas por salários irreais e indignos), as autoridades
toleram o envolvimento de policiais com o bico ou o segundo emprego na
segurança privada, a despeito da ilegalidade (segundo os marcos legais
vigentes na grande maioria dos estados – alguns, mal ou bem, estão
começando a disciplinar esse universo sombrio e ardiloso, pleno de
consequências perigosas). Culpar a polícia federal, porque a ela cabe
fiscalizar a segurança privada, não passa de pseudo-justificativa e
desvio de foco. Todos sabem que seria impossível cumprir essa função com
15 mil profissionais, responsáveis por uma miríade de missões, em todo o
país. Ocorre que, ao fechar os olhos para a ilegalidade benigna e em
certo sentido legítima, considerando-se o esforço dos policiais mal
pagos em oferecer (por meio de seu trabalho bem intencionado que lhe
complementa a renda) melhores condições de vida a suas famílias, as
autoridades também deixam de ver (e reprimir) a ilegalidade maligna e
seus tentáculos, que prosperam metastaticamente, gerando fenômenos
criminais grotescos, como as milícias. Ressalve-se que o lado benigno da
ilegalidade a que me refiro o é do ponto de vista da intenção dos
trabalhadores policiais, mas não do ponto de vista de seus efeitos, que
são negativos por diversas razões, como tenho dito em artigos e
entrevistas. Não é o caso, aqui, de descer a detalhes. Basta registrar
que a esfera que chamei maligna estende-se da produção de insegurança
para vender segurança à formação de grupos de extermínio e esquadrões da
morte, e chegam ao extremo: a montagem das mencionadas máfias
milicianas, as quais consolidam a instalação do crime organizado nas
corporações policiais.
Enquanto o Estado aceitar, por omissão cúmplice, o financiamento de
origem ilegal e criminosa, que lhe permite pagar salários irreais, não
poderá cumprir seu papel constitucional como fiador da legalidade e
condenará suas polícias à degradação e à impotência. Por isso, pagar
salários suficientes e dignos impõe-se como condição sine qua non para a
reconstrução da segurança pública no Brasil. Afinal, sabemos todos que
segurança não é matéria exclusivamente policial, que há fatores
decisivos relativos a outras áreas da vida social e da responsabilidade
estatal. Contudo, também sabemos que sem polícia não há segurança
pública, nem Estado democrático de direito –polícia legalista, bem
entendido, comprometida com os valores da equidade e da dignidade
humana, voltada à provisão de garantias para a fruição de direitos e
liberdades por parte da cidadania.
Ocioso acrescentar que o outro tipo de vínculo de profissionais da
segurança pública com a segurança privada constitui, pura e
simplesmente, crime e não guarda qualquer relação com níveis salariais
inferiores às necessidades. Refiro-me a delegados e oficiais que se
tornam proprietários de empresas de segurança, por interpostas pessoas
(os “laranjas”), e agenciam seus comandados. A inação das autoridades,
nesse caso, não passa de cumplicidade ativa, absolutamente
injustificável. Por que o Ministério Público não age? Por que a mídia
silencia? Por que a sociedade não se manifesta e exige mudanças? Vê-se
que não basta culpar governos. Omissões e cumplicidades parecem
contagiosos.
***
Em resumo: a arquitetura institucional da segurança pública e o modelo
policial não funcionam. A quem interessa a preservação de um estado de
coisas que não funciona? Ou funciona para alguém?
Em primeiro lugar, é preciso compreender uma tese fundamental das
ciências sociais: nem tudo o que existe corresponde a uma vontade, uma
intenção ou um interesse. Nem tudo o que existe, na vida social, cumpre
um papel funcional. Pode, inclusive, ser disfuncional e contrário a
todos os interesses.
Se é assim, por que existe? Porque, não raro, ações sociais geram
efeitos inesperados ou perversos, que traem as intenções dos agentes
(também chamados “efeitos de composição”), uma vez que provocam
desdobramentos que se combinam com outras dinâmicas em curso.
A visão reducionista, mecânica e equivocada tende a fazer leituras
reflexas: se a educação no Brasil é ruim, culpa-se algum interesse
maligno ou algum agente mal intencionado, que se beneficiaria da
ignorância. Por exemplo, políticos clintelistas, corruptos e
manipuladores, ou empresários gananciosos que contam com a ignorância
para intensificar a exploração do trabalho. Claro que esse tipo de
hipótese não está excluída, em contextos em que as condições sejam
primitivas e simplórias –como na primeira República, talvez. Contudo, no
capitalismo globalizado, o empresariado que apostasse na ignorância de
seus potenciais empregados estaria condenado à falência.
O mesmo vale para a segurança: a quem interessaria o fracasso da
segurança pública? Aos empresários da segurança privada e aos
fabricantes e comerciantes de armas e munições, e de outros utensílios
do tipo? Sim, mas apenas no curto prazo. Projetada para o futuro, a
insegurança dilapidaria o potencial de desenvolvimento do país e,
portanto, degradaria o ambiente em que viveriam os netos dos supostos
atuais beneficiários da insegurança. A que se reduziria esse patrimônio,
originalmente nutrido pela insegurança, se não houver país nenhum, no
futuro? Portanto, só uma visão muito pobre, míope, estreita, imediatista
e pouco racional poderia apostar na insegurança pública. Seria muito
mais razoável, mesmo da perspectiva estritamente capitalista e
utilitária, privilegiar o aprimoramento da segurança pública e vender os
produtos voltados para a segurança privada nesse contexto,
adaptando-os.
Há os que vivem do crime. Mas esses não têm poder para manter toda uma
estrutura organizacional, constitucionalmente desenhada. Tampouco teriam
tanto poder os empresários da segurança privada e do setor de armas,
munição e gadgets assemelhados. Mesmo a maioria dos profissionais da
seguranca pública sendo contrária ao atual arranjo institucional, há 30%
a favor, muitos deles com poder nas corporações e articulações no mundo
político. Eles formam um lobby significativo. Mas não teriam poder
suficiente para bloquear mudanças se a sociedade desejasse a mudança.
Ela quer, porque está insatisfeita com o status quo. Porém, não sabe em
que direção mudar. A meta está clara: a sociedade deseja mais segurança,
menos violência, menos crimes, menos corrupção, menos injustiças. Mas
não sabe que arranjo institucional e que modelo policial alternativo
seriam mais adequados à realização desses objetivos. Nem mesmo está
convencida de que a arquitetura institucional e, dentro dela, o modelo
policial tenham relevância e contribuam para a atual ineficiência.
Portanto, não tem consciência a respeito da necessidade de mudá-los. Os
políticos servem para difundir e qualificar opiniões sobre problemas,
para produzir agendas públicas, para formular propostas e métodos de
ação, e para negociar sua implementação. Não é o que têm feito, em
matéria de segurança, com raríssimas exceções. Tampouco eles têm ideias
claras, apoiadas em análises objetivas dos problemas. Pensam e agem,
usualmente, a partir de preconceitos, calculando a receptividade da
opinião pública e se adaptando a expectativas sociais, visando
credenciarem-se à escolha do eleitorado no mercado de votos.
Os grupos organizados e politizados, no sentido elevado da palavra, que
militam por causas coletivas com espírito crítico, respeitando valores
democráticos e republicanos, tampouco foram capazes de alcançar um
consenso quanto ao diagnóstico e a propostas de mudança. As
universidades tampouco assumiram o protagonismo, no debate público sobre
a problemática da segurança, e deixaram de sugerir um caminho viável de
transformação, que reunisse clareza, racionalidade persuasiva e valores
suscetíveis de atrair um consenso mínimo. Os motivos geradores desse
quadro desalentador têm sido meu objeto constante de estudo e reflexão6.
Os gestores ligados ao executivo tentaram, algumas vezes, induzir
processos de mudança, mas não encontraram respaldo social e político.
Como não lhes cabe alterar a Constituição ou o arcabouço
infra-constitucional, limitaram-se a operar nos marcos legais vigentes,
na melhor das hipóteses reduzindo danos, contra a corrente. Além disso,
sendo os gestores não só membros do Poder executivo, mas também e,
sobretudo, políticos, há que se levar em conta o choque entre o ciclo
eleitoral, bienal, e o tempo de maturação de políticas públicas
reestruturantes, cuja primeira etapa é marcada por dificuldades e
declínio de efetividade. Aos políticos não interessa assumir o custo do
desgaste e legar os resultados aos sucessores.
O Ministério Público poderia impor ao executivo Termos de Ajuste de
Conduta (TACs), que obrigassem os governantes estaduais a promover
mudanças profundas, as quais, revelando-se fortemente limitadas pela
camisa de força do artigo 144, os levassem a pressionar por respostas
legislativas, no Congresso Nacional.
Infelizmente, o MP não está
convencido, em seu conjunto, quanto à possibilidade e a conveniência
dessa hipótese.
Talvez esse grau mais ostensivo de ativismo se choque
com a relativa dependência política ao executivo, determinada pelo
mecanismo de distribuição do poder interno. Além disso, uma das virtudes
do MP está na autonomia de seus componentes, o que, paradoxalmente,
fixa limites à formação de consensos e à gestação de ações coletivas,
que unifiquem a instituição, politicamente.
O que fazer, então? Qual a melhor arquitetura institucional para o
Brasil? Qual o melhor modelo policial para nosso país? Como chegar até
lá?
(5) Para chegar a qualquer lugar é imprescindível o apoio da opinião
pública e a mobilização da sociedade. Tais requisitos supõem, por sua
vez, a formação de um consenso mínimo em torno de pontos simples,
claros, inteligíveis e objetivos. Um projeto de reforma institucional
exige elaboração técnica complexa. Ou seja, não pode ser objeto de
demanda popular. O que, sim, pode fazer a conexão entre alguma eventual
bandeira popular e um projeto tecnicamente rigoroso, é o valor. Só a
mediação de um valor, plasmado em enunciados objetivos, pode servir de
combustível político para um processo de mudança, o qual, todavia,
apenas será consistente e consequente se encontrar expressão técnica,
sustentada por uma coalizão –limitada, numericamente, mas coesa e dotada
de legitimidade– de gestores, policiais, pesquisadores, lideranças da
sociedade civil e políticos.
Qual seria esse valor? A igualdade. Democracia pressupõe igualdade
perante a Lei; igualdade no acesso à Justiça; igualdade de tratamento
por parte das instituições da Justiça, inclusive e, no caso,
especialmente, da Justiça criminal, com destaque para as polícias. A
segurança ou será, de fato, pública, ou seja, universal, para todos, ou
não será de ninguém. Surge, então, o outro elemento indispensável, sem o
qual a equação da igualdade na provisão da segurança não se sustenta: a
efetividade do Estado, por meio de suas instituições, na provisão da
segurança. A igualdade referida reduz-se a uma abstração se a segurança
não for, realmente, garantida. Portanto, a síntese é: segurança pública é
(deve ser) um bem universal (um direito de todos), cuja provisão cabe
ao Estado garantir (para isso precisa de meios capazes, competentes). Os
meios não se esgotam nas polícias e outras instituições do campo da
segurança e da Justiça, mas os pressupõem. Tudo isso está contemplado na
Constituição, é verdade, o que apenas facilita o processo de difusão da
ideia. Ideia que mobiliza um valor (a equidade, a igualdade)
profundamente enraizados na sociedade brasileira, a despeito de
contradições e resistências do tradicional autoritarismo de classe, do
racismo e de outros preconceitos associados ao patrimonialismo. A ideia
mobiliza um valor matricial e, repito para enfatizar, uma qualidade (a
efetividade) que deve ser atributo do Estado, sem o qual a igualdade
perante a Lei não se converte em prática.
Foi essa a bandeira que viabilizou o SUS, a LOAS, a universalização da
educação pública: a saúde é um bem universal, um direito universal, etc…
A bandeira da universalidade, do bem coletivo, do direito de todos
resolve todas as questões mais importantes, do ponto de vista da
definição de finalidades, funções, responsabilidades, o que, por sua
vez, orienta a construção do modelo institucional, uma vez que, como
vimos, o melhor formato organizativo é aquele que melhor atende à
realização das finalidades atribuídas à organização. A bandeira serve
também de guia paraa adoção de políticas de segurança. Por exemplo: como
autorizar uma incursão bélica a uma favela, colocando em risco a vida
dos moradores, se eles são os destinatários da segurança, tanto quanto
os habitantes dos demais bairros da cidade. O que justificaria
abordagens diferenciadas? O que legitimaria a aplicação seletiva das
leis? O que sustentaria a criminalização da pobreza?
A bandeira universalista atende ao conjunto da sociedade, a começar
pelas atuais vítimas das iniquidades. Por isso, é curiosa e
surpreendente a oposição de setores da esquerda a essa perspectiva,
mesmo quando sabem que sua adoção interessaria em primeiro lugar aos
mais vulneráveis, àqueles grupos sociais que têm sofrido discriminação.
Esse viés da esquerda explica por que grupos de direitos humanos
solidarizam-se com certas vítimas, não com todas elas; frequentam
sepultamentos de pobres vitimados pela brutalidade policial, mas não de
policiais vitimados pela violência de atores sociais egressos da
pobreza, que convivem com a pobreza (como traficantes de drogas e armas,
ou membros de facções criminosas como o PCC). Esses setores atuam como
se o problema da violência se esgotasse naquela perpetrada pelo Estado.
Evidente que esta forma de violência é gravíssima e deve ser condiderada
a mais importante, uma vez que sem superá-la não se avança no rumo da
construção de instrumentos institucionais que garantam a segurança
pública em sentido universalista. Mas essa forma de violência não é a
única e não pode ser focalizada, unilateralmente, e com exclusividade.
A bandeira universalista pode ser erguida pelo conjunto da sociedade,
sem distinções, desde que conservadores e progressitas reconheçam o
valor constitucional da igualdade e, por consequência, da universalidade
dos bens públicos: segurança pública é bem coletivo, interesse
universal, direito de todos e deve ser garantida pelo Estado –para ser
garantida, o Estado precisa dispor de meios que sejam efetivos e, ao
mesmo tempo, orientem-se exclusivamente pelo princípio da igualdade.
Quando a bandeira popular abrir espaço para a questão da efetividade
dos meios ou das instituições que servirão ao propósito enunciado
(garantir a provisão de segurança pública como direito de todos, como
bem universal), surgirá a oportunidade para a apresentação de uma
proposta de reforma da arquitetura institucional e do modelo de polícia,
em consonância com os princípios e os limites evocados pelo novo
consenso político.
A reforma incidirá sobre o artigo 144 da Constituição e terá de
estipular uma metodologia e o desdobramento de etapas, de tal modo que
nenhum trabalhador policial seja ferido em seus direitos e que o aparato
ora vigente não se desorganize (mais do que já está).
(6) Quanto à arquitetura institucional da segurança, considerando-se o
diagnóstico exposto, a proposta alternativa está sintetizada no projeto
denominado SUSP (Sistema Único de Segurança Pública), tal como formulado
pela SENASP ao longo de 2003, a partir do já indicado no Plano nacional
de segurança pública, com o qual o presidente Lula venceu a eleição de
2002. A União assume maiores responsabilidades; a SENASP é valorizada;
as polícias federais, mesmo não unificadas, são fortalecidas e
articuladas por uma coordenação sistêmica. O DEPEN também amplia sua
faixa de autoridade e responsabilidade. No outro extremo da cadeia, o
município também é valorizado, passando a assumir responsabilidades pela
seguranca pública, conforme se verá, adiante, na apresentação de duas
propostas alternativas para a mudança do modelo policial.
Mais especificamente: a União assume a responsabilidade de viabilizar a
criação e o funcionamento de um Conselho Superior de Educação Policial,
vinculado ao Estado brasileiro, não ao governo federal, com mandato,
cuja composição seria negociada com as instituições policiais, a SENASP,
o Ministério da Educação e a Associação de Reitores das Universidades
Públicas. Caberia ao Conselho fixar um currículo básico nacional, comum a
todas as instituições da segurança pública, independentemente de
especializações. Cumpriria também ao Conselho supervisionar todas as
escolas de formação de profissionais da segurança pública e atestar a
observância de critérios mínimos de qualidade. Seu poder incluiria
recomendações e vetos, e a negociação de pactos análogos aos TACs com os
governos estaduais, o governo federal (e também municipais).
A União assume também a responsabilidade de negociar com os governos
estaduais e municipais, e com o Congresso Nacional, medidas que
organizem a realidade babélica dos dados criminais no país,
uniformizando categorias e metolodogias, e exigindo o cumprimento de
medidas que garantam a comutabilidade das plataformas informacionais.
Essa iniciativa já foi tomada e o projeto foi aprovado pelo Congresso, o
que representa o maior (e único) avanço do atual governo federal em
matéria de segurança pública, até o momento.
A União, por meio da SENASP, assume a responsabilidade e a
correspondente autoridade para implantar um sistema nacional de
avaliação de desempenho das instituições da segurança pública, cujos
critérios serão amplamente negociados com as instituições envolvidas e
os governos estaduais e municipais, mas que, necessariamente, incluirão o
respeito aos direitos humanos e aos princípios de equidade e
legalidade. Nesse sentido, farão parte do sistema nacional de avaliação
as Ouvidorias estaduais e municipais, dotadas de recursos, autoridade
para fiscalizar e mandato. A implementação do referido sistema
transformará a SENASP em uma Agência Nacional Reguladora da Segurança
Pública. De acordo com os resultados, o Fundo nacional de segurança
pública será distribuído e eventuais problemas observados, caso tenham a
natureza de ruptura da legalidade, poderão suscitar medidas legais,
acionados os instrumentos judiciais pertinentes, a começar pelo MP. Essa
iniciativa será relevante para estimular a criação de mecanismos
racionais de gestão, assim como para incentivar o controle das ações
policiais, no sentido da legalidade e da equidade.
A União assume a responsabilidade por apoiar a formação de unidades de
perícia efetivas e tecnologicamente atualizadas, dotadas de autonomia
funcional –relativamente às polícias–, de pessoal e recursos, e de
estrutura de carreira atraente. Os vínculos com institutos científicos e
universidades são fundamentais.
(7) Quanto ao modelo policial poder-se-ia dizer que não há somente um
desenho alternativo defensável e superior ao atual. Há vários. Passo a
descrever dois modelos, porque me parecem mais adequados e factíveis7.
Um deles aponta na direção da municipalização da segurança pública,
ainda que com provisos e cautelas, visando evitar que pequenas agências
policiais se submetam ao poder político local como guardas pretorianas,
na contramão dos princípios e valores, objetivos e metas, aqui evocados.
O outro tende a preservar até o limite do possível o que já existe,
promovendo mudanças importantes mas talvez mais palatáveis,
politicamente, e mais fáceis de implementar. A primeira venho defendendo
há bastante tempo, ao lado de algumas lideranças políticas, sociais e
policiais. A segunda foi proposta pelo ex-secretário nacional, Ricardo
Balestreri, e faz eco –enriquecendo-as– a posições antes defendidas por
atores políticos e institucionais de variada extração. Prestei, ao lado
de Marcos Rolim, solidariedade a Balestreri, no momento em que tentou
articular uma ampla aliança em torno de sua proposta. De meu ponto de
vista, ambas as hipóteses são positivas e representariam extraordinário
avanço. Pessoalmente, me disporia a endossar aquela que encontrasse
melhor passagem na sociedade e nos meios policiais, porque mais
importante do que eventuais preferências está a necessidade urgente de
realizar a mudança –considerando-se, insisto, que ambas as hipóteses são
virtuosas.
(7.1) A proposta municipalista:
Os municípios se tornariam responsáveis pela segurança pública em seu
território, dispondo de uma polícia municipal de ciclo completo. A
transição deve ocorrer, inicialmente, nos municípios com mais de um
milhão de habitantes e, aos poucos, naqueles com mais de 500 mil
habitantes, e assim sucessivamente, de acordo com o sucesso alcançado
pelas mudanças promovidos nas cidades maiores. Os municípios, com sua
capacidade de intervenção capilar e sua permeabilidade à participação
social, constituem a unidade de gestão mais adequada ao tratamento das
questões mais complexas, que afetam o dia a dia da sociedade, a partir
de dinâmicas sempre específicas e processos locais. A gradual
municipalização da segurança pública –devidamente acompanhada da
correspondente transferência de recursos, o que envolveria uma
renegociação do pacto federativo- seria extremamente positiva, desde que
algumas condições fossem atendidas: basicamente, que as polícias
municipais se organizassem como polícias de ciclo completo
(responsáveis, portanto, pelo trabalho preventivo-ostensivo e pelas
funções investigativas-judiciárias) e desde que respeitassem normas
nacionais, previstas no Sistema Único de Segurança Pública, quanto a
formação e capacitação, gestão do conhecimento, estrutura funcional,
perícia, controle interno, prevenção e controle externo. O risco haveria
–sobretudo nos municípios menores- se estas condições não fossem
cumpridas, o que nos levaria de volta ao passado, condenando o país a
repetir os próprios erros, reproduzindo nas novas instituições
municipais as deficiências que caracterizam, hoje e tradicionalmente, as
polícias estaduais brasileiras. Com um agravante –mais provável nos
menores municípios: prefeitos inescrupulosos tratariam as novas
instituições como guardas pretorianas a serviço das oligarquias locais.
Por isso, a municipalização da segurança é uma faca de dois gumes: um
avanço histórico extraordinário, exprimindo princípios republicanos e
democráticos essenciais, expressão de uma necessidade incontestável,
oportunidade de transformações profundas em nosso modelo de polícia e de
segurança pública; mas, ao mesmo tempo, risco de reprodução dos velhos
vícios, que já se tornaram atávicos, no Brasil, por sua tradição
centralizadora e autoritária, pouco afeta à transparência e à
participação popular, marcada pela lamentável noção segundo a qual as
polícias existem para proteger o Estado e não para servir a cidadania,
defendendo seus direitos e suas liberdades. Para evitar esses riscos, o
processo dar-se-ia, na primeira década, apenas nas cidades maiores e
cada nova etapa seria antecedida por um exame sobre as condições, ou
não, de avanço.
As atuais polícias estaduais, civis e militares, seriam unificadas sob
estatuto civil e teriam sua responsabilidade restrita às regiões não
cobertas pelas polícias municipais. As atuais polícias poderiam oferecer
profissionais às novas corporações, mediante seleção rigorosa. As
guardas civis municipais existentes seriam absorvidas e reordenadas
pelas novas instituições.
(7.2) A proposta de diferenciação por tipo criminal:
Nesse modelo, as polícias, todas elas civis, distinguem-se pela função e
não pelo território, e a função refere-se a tipos criminais que
deveriam ser objeto de sua ação preventiva e ou repressiva. A polícia
municipal, de ciclo completo, ocupar-se-ia dos crimes de pequeno
potencial ofensivo, definidos pela Lei 9.099, e das transgressões a
normas municipais. A polícia estadual, também de ciclo completo, visaria
os demais tipos criminais, à exceção daqueles praticados por
organizações criminosas, os quais constituiriam o alvo específico da
polícia estadual especializada, também ela de ciclo completo –mesmo não
comportando rondas ostensivas e patrulhas uniformizadas, ou policiamento
comunitário voltado para a resolução de problemas, o enfrentamento
preventivo e repressivo do que se denomina crime organizado requer
eventuais incursões, cuja operacionalização exige pessoal treinado e
autoridade para tais ações. Sua articulação com a polícia federal seria
indispensável.
(7.3) Qualquer que viesse a ser o novo modelo policial, a cooperação
inter-institucional seria essencial, o que pressuporia, para
efetivar-se, a implantação das determinações do SUSP, já explicitadas,
assim como a investimento na perícia técnico-científica, a unificação
das carreiras em cada instituição, a valorização profissional que
dignifica os trabalhadores e rompe a aliança promíscua do Estado com a
segurança privada informal e ilegal. Tal rompimento, por sua vez,
viabiliza a reorganização racionalizadora dos turnos de trabalho, cuja
definição deverá ser menos formalista e burocrático e mais ditada por
tarefas e missões. Sabemos que, no futuro, nem a municipalização
progressiva, nem a divisão por tipo criminal será um modelo flexível e
dinâmico o suficiente para funcionar como plataforma institucional de
uma polícia ágil e multiconectada, hiper focalizada no local e também no
trans-estadual e no trans-nacional. Na era do conhecimento e da
complexidade, da informação e da alta tecnologia, os agentes, altamente
qualificados e bem remunerados, provavelmente trabalharão em grupos
pequenos, com autonomia (mas também transparência e controle externo) e
tecnologia, em limites supervisionados pela Justiça. Nesse mundo futuro,
ainda que provavelmente próximo de nós, a inquérito policial será peça
de museu (museu de horrores de um tempo de paralisia e impotência) e o
diálogo com o MP e a Justiça serão mais diretos, constantes e
horizontais, com menos entraves formalistas e nobiliárquicos e menos
rituais hierárquicos –sem que se sacrifique as linhas de comando e os
vértices de autoridade, legitimamente constituídos e bem mais expostos
ao controle da sociedade do que hoje. Esse futuro tão próximo e tão
distante não será atingido sem mediações, queimando-se etapas que serão
politicamente educativas. O primeiro passo precisa ser dado mesmo em
caminhadas longas, que tomam décadas ou séculos. O nosso tem sido
sucessivamente adiado. É tempo de ousar caminhar. Tanto a
municipalização modular e progressiva da segurança pública, quanto a
reorganização das instituições policiais por tipo criminal trazem
consigo conquistas e qualidade, a começar pela unificação do ciclo do
trabalho policial. Mas nenhum modelo policial representará um avanço
histórico real se não vier associado à implantação do SUSP, tal como
descrito acima. Implementá-lo implica ampliar as responsabilidades da
União sem desrespeitar a autonomia dos entes federados e sem camisas de
força centralizadoras. Implica intervir com energia, obstando a
corrupcão e a brutalidade policiais, assim como o corrente desapreço
pelos profissionais da segurança pública. Implica revolucionar a
formação policial, a gestão do conhecimento e a governança das
instituições, abrindo-as ao diálogo com a sociedade e ao controle
externo. Significa valorizar a inteligência investigativa e as políticas
preventivas. Sobretudo, significa reafirmar o papel das instituições da
segurança pública no Estado democrático de direito: garantir direitos e
liberdades da cidadania, respeitar a dignidade humana, reconhecer a
prioridade da vida e submeter a esses valores a compreensão e a
aplicação do uso comedido da força.
Nada disso encerra o assunto. Temos que discutir como construir, ao
longo do tempo, a nova institucionalidade, e o que fazer com as novas
polícias, ou seja, quais deveriam ser as políticas de segurança e também
qual deveria ser a política criminal –incluindo a desastrosa e
hipócrita política de drogas. Urge repensar o encarceramento voraz
(anverso da medalha da criminalização da pobreza e do racismo estrutural
da sociedade brasileira) e o sistema penitenciário. Mas esses temas
terão de aguardar outra oportunidade.
1 Paulo Brinckman de Oliveira colaborou, fazendo a arqueologia da trama
legal. Esse trecho foi extraído de meu livro, Legalidade Libertária
(Lumen-Juris, 2006).
2 Nas polícias civis temos um problema simétrico inverso: faltam
códigos disciplinares que organizem (ou ajudem a organizar) a entropia.
3 Este parágrafo foi escrito em parceria com Ricardo Balestreri para
artigo que publicamos juntos na Folha de São Paulo, em 18 de maio de
2012, sob o título, “A Raiz de nossos problemas de segurança”.
4 Observe-se, entretanto, que há diferenças significativas entre
instituições e entre unidades no interior de cada instituição, em cada
estado, em distintos momentos, sob governos diferentes. O que afirmo
refere-se à realidade predominante no Brasil.
5 Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, órgão do Estado, ao
nível federal, responsável pela geração das informações sobre a
sociedade brasileira, em todos os aspectos relevantes para a formulação e
implantação das políticas públicas -a começar pelos dados demográficos.
6 Vide, por exemplo, Legalidade Libertária (Lumen-Juris, 2006).
7 Deixo de incluir a “Desconstitucionalização” entre as propostas,
porque ela corresponde não à solução desejável, mas a um acordo
politicamente viável que poderia iniciar um processo de mudança, capaz
de gerar casos de sucesso os quais emulariam outros estados a adotarem
as mudanças mais exitosas experimentadas pelos estados pioneiros.
Desconstitucionalizar a segurança não significa retirar da Constituição a
definição dos pressupostos e das finalidades da segurança pública ou
das instituições que atuam na área. Além disso, a
desconstitucionalização proposta no plano nacional do primeiro mandato
do presidente Lula transferiria aos estados o poder para manter ou
alterar o modelo policial vigente, mas lhes imporia um conjunto
normativo infra-constitucional –o SUSP-, que regeria aspectos centrais
das polícias estaduais (fossem mantidas as atuais ou criadas outras, em
novo arranjo institucional), quanto à formação, à informação, à gestão, à
perícia, à conexão inter-setorial nas ações preventivas, à valorização
profissional e ao controle externo. Portanto, não haveria risco de
aumento da atual fragmentação (que decorre não do número de polícias,
mas da desconexão entre elas e de características caóticas e irracionais
de cada uma), nem de deterioração institucional.
* Luiz Eduardo Soares é antropólogo e escritor.
Ex-secretário nacional de segurança pública. Professor da UERJ e
coordenador da pós-graduação em gestão e política de segurança pública,
na Universidade Estácio de Sá.Para conhecer o site de Luiz Eduardo Soares, Clique aqui. |
Sindicato dos Servidores Públicos do Judiciário Estadual na Baixada Santista, Litoral e Vale do Ribeira do Estado de São Paulo
Pesquisar este blog
quarta-feira, 22 de agosto de 2012
A desigualdade no acesso à Justiça corrói a confiança nas instituições
Assinar:
Postar comentários (Atom)
Nenhum comentário:
Postar um comentário