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terça-feira, 28 de abril de 2015

Mais pressão na ALESP pelos PLC(s) 06 e 56.

Nesta tarde de 28.04 Oficiais de Justiça, Assistentes Sociais e Psicólogos estiveram na ALESP para mais pressão para que se coloque em pauta os projetos de lei 06 e 56 de 2013 que tratam da criação de cargos de Assistentes Sociais , Psicólogos e nível universitário para os O.Jj(s). Após a reunião no Colégio de lideres, fizeram a defesa dos projetos os deputados João Paulo Rillo (PT), Carlos Gianazzi e Raul Marlo (PSOL), por fim  o presidente da ALESP Fernando Capez (PSDB) se pronunciou no sentido de que votará tais projetos, mas antes será recebido o Secretário de Planejamento do Estado de São Paulo para discussão do assunto na próxima terça-feira (05.05.15).O SINTRAJUS foi representado por Sergio Crochemore​, Cláudia Damião​, Gisele Alonso​, Rita De Cássia Ribeiro​, Michel Iorio. A ASSOJUBS por Alexandre dos Santos, Rosangela dos Santos, Luiz Milito​ e Silvio Realle.



ADICIONAL DE QUALIFICAÇÃO E O DESCUMPRIMENTO DA LEI 1217/13

Apesar do expediente da SGRH do TJ-SP divulgado no D.O.E de 24.04.15 quando publicou nova relação dos servidores contemplado pelo adicional de qualificação, o TJ-SP continua descumprindo a lei 1217/13 e agora o que foi decidido pelo Órgão Especial em resolução recente quando deliberou pelo pagamento aos aposentados e a base de cálculo incidindo sobre os décimos incorporados. Acesse a pagina do D.O.E:http://www.dje.tjsp.jus.br/cdje/consultaSimples.do?cdVolume=9&nuDiario=1871&cdCaderno=10&nuSeqpagina=1

domingo, 26 de abril de 2015

A vingança de Kant ou, porquê o assédio moral tornou-se a Peste Negra do século XXI



15 04 13 _ Giovanni Alves[Giorgio De Chirico, As duas máscaras, 1926]




A violência é um velho diabo. Ela representa o cerne essencial da relação-capital ou relação de Poder. A violência é o próprio modo de ser do capital como sociometabolismo estranhado, onde propriedade privada – divisão hierárquica do trabalho são determinações reflexivas. O capital engendra e engendrou historicamente um rol de violências (no plural) que compõem o quadro das opressões cotidianas e dominação social de classe. O assédio moral é um modo de violência do capital que possui características próprias que iremos tentar desvelar neste pequeno artigo.
A violência desde as priscas eras da história da humanidade caracterizou a relação-capital. Mas o termo “assédio moral” e suas múltiplas configurações contingentes é bastante recente. Por exemplo, o assédio moral no trabalho é um modo de violência que não se confunde meramente com o despotismo fabril salientado por Marx no século XIX. Talvez possamos dizer que o assédio moral no trabalho seja um novo modo de despotismo laboral que possui características muito peculiares que não se confundem com a violência explicita, pura e simples.
O que o conceito de “assédio moral” no trabalho nos diz, além daquilo que já sabíamos, com respeito às violências explícitas, próprias da relação-capital, que ocorrem nos locais de trabalho em nossos dias? Como o assédio moral se distingue, por exemplo, do dano moral no trabalho, ou mesmo das múltiplas violências explicitas que permeiam a cotidianidade alienada da relação salarial há séculos?
Perguntemos: qual a novidade que o conceito de “assédio moral” – no trabalho ou na vida cotidiana – anuncia no século XXI? 
Primeiro, podemos dizer que o conceito de “assédio moral” desvela, em si e para si, que o capital é hoje, mais do que nunca, e acima de tudo, uma relação social de fundo moral. Por isso, o adjetivo “moral” possui um sentido profundo ao qualificar o substantivo “assédio”. Não se trata de simples assédio, mas sim assédio moral. Precisamos entender, com mais perspicácia, o que é “assédio” e por que ele é “moral”. A violência do capital assume hoje um caráter de violência implícita, isto é, ela é sutil e silenciosa, envolvente e perversa. Eis o sentido profundo do assédio moral – na vida cotidiana ou no trabalho. Na verdade, no plano da aparência, a nova violência do capital assedia, mas não violenta. Um assédio moral não é meramente um dano (ou ofensa) moral, ou mesmo uma agressão peremptória contra a pessoa-humana-que-trabalha. Ameaçar, constranger, impor, reprimir homens e mulheres que trabalham, não se configuram propriamente como assédio moral. Tudo isso representa violências explícitas do capital, mas não são, a rigor, assédio moral propriamente dito. Por exemplo, escravos não sofrem assédio moral, mas apenas trabalhadores assalariados, que são trabalhadores livres que serem explorados no mercado de trabalho e que hoje são sujeitos de direitos. A liberdade na ordem burguesa, a própria contradição em termos, é capaz de nos iludir sobre a nossa condição existencial. Apenas homens livres são capazes de serem assediados moralmente, pois eles acreditam que são livres e donos de si, quando não o são efetivamente.
Segundo, o assédio moral como novo modo de ser da violência do capital como modo estranhado de controle sociometabolico, adquire um caráter efetivamente real. Trata-se de uma violência simbólica que desmonta – por dentro – a pessoa-humana-que-trabalha como subjetividade complexa. O desmonte “violento” da personalidade humana é, efetivamente, no caso do assédio moral, um desmonte ideológico que corrói o núcleo moral da genericidade humana ideológico, tendo em vista que é operado por meio de valores-fetiches (o que explica seu caráter sutil e envolvente). O sujeito moral é intimado a consentir com sua própria degradação humano-genérica. Portanto, podemos dizer que o assédio moral é o veículo da “captura” da subjetividade do trabalho. “Captura” da subjetividade (“captura” entre aspas) não significa “seqüestro” da subjetividade, pois o termo “seqüestro” sugere violência explicita e peremptória. Por isso, podemos dizer que, efetivamente, nas novas formas de gestão de cariz toyotista não existe seqüestro, mas sim “captura”, muito embora, articulada com a “captura” possa existir formas despóticas – ou explicitamente violenta – do capital que configuram um “sequestro” ou manipulação insidiosa. Um sequestro não poderia ser sutil, envolvente e consentido, como ocorre com a “captura”, que implica resistência e coerções envolventes. 
Assim, a nova violência do capital – o assédio moral que permeia o mundo do trabalho e a totalidade social, é deveras sutil, envolvente e silenciosa. Como “captura” da subjetividade ela é uma escolha moral do sujeito que trabalha, assediado pelos valores-fetiches do capital. Por ser livre, o sujeito que trabalha na ordem burguesa, escolhe moralmente ser escravo. Ao dizermos “escolha moral” significa que o sujeito assediado é o sujeito que colabora “voluntariamente” (entre aspas porque o “voluntariado” é expressão de consentimento espúrio, agenciado pelo medo e operado pelo inconsciente estendido – no nosso livro Trabalho e subjetividade (Editorial Boitempo, 2011) discutimos os mecanismos psicológicos que operam a “captura” da subjetividade).
Existe uma violência condensada na prática do assédio moral, mas o modo de ser (a violência sutil e perversa), e o sujeito-objeto da sua efetividade (personalidades humanas complexas), são radicalmente outros. Nesse caso, no caso do assédio moral, a violência implícita oculta-se como violência propriamente dita, assumindo ideologicamente um caráter de consentimento perverso (auto-alienação do homem que trabalha). O caráter cínico e farsesco da ordem burguesa hipertardia propicia a violência implícita no discurso da Exploração auto-consentida. No assédio moral, a própria pessoa escolhe sua desefetivação humano-genérica (o tema da “servidão voluntária”, de La Boetie, que emergiu na época da “acumulação primitiva” do capital é reposto, deste modo, nas condições históricas do capitalismo global, que repõem a acumulação por espoliação, como diria David Harvey).
Enfim, o assédio moral é um modo específico de manipulação: a manipulação reflexiva (o que significa que, o adjetivo “reflexiva” qualifica radicalmente o substantivo, do mesmo modo que “moral” qualificou o substantivo “assédio”). A reflexividade significa ação ideológica sobre o Outro-como-proximo, visando convence-lo e induzi-lo a colaborar, aceitar e assumir os valores do capital. A vida cotidiana e os novos locais de trabalho reestruturado estão permeados de valores-fetiches –formas ideológicas – operados por múltiplos veículos de comunicação (livros, artigos em jornais e revistas, imagens-fetiches que permeiam telas, cursos e treinamentos de fundo moral, discursos, filmes, etc). Essa prática reflexiva (e comunicativa) – densamente ideológica – configura-se como sendo um modo de ser do “assédio moral”. Na verdade, nas condições do capitalismo manipulatório onde viceja o espírito do toyotismo, o assédio moral tornou-se o próprio metabolismo social. A violência implícita permeia não apenas locais de trabalho, mas relações sociais cotidianas, onde o outro-como-próximo torna-se apenas meio para nossas satisfações egoístas.
No plano objetivo, a adoção dos valores-fetiches que compõem o universo ideológico da ordem burguesa, degradam a personalidade humana. Por exemplo, a linguagem oriunda do discurso gerencialista degrada o núcleo moral da genericidade humana. Na era da barbárie social, podemos nos desumanizar pela linguagem. Os valores-fetiches do capital que permeiam, por exemplo, o discurso do Pensamento Único neoliberal, disseminado pela mídia hegemônica, revolvem a subjetividade complexa das personalidades humanas hoje. Este é o caráter da violência do capital, que na dimensão jurídico-institucional, pode ser contestada como ilicitude na medida em que forem elaboradas provas materiais que comprovem o nexo primordial entre, por exemplo, o discurso da gestão – que permeia a vida cotidiana e os locais do trabalho reestruturados – e a degradação da pessoa humana que trabalha, manifestada pelas pressões cotidianas – sutis, envolvente e silenciosa – pelo cumprimento de metas abusivas, no dia-a-dia do labor alienado – pressões verticais e horizontais que, pouco a pouco, conduz personalidades humanas mais sensíveis, à depressão e adoecimentos laborais como expressão das múltiplas formas de desefetivação humano-genérica. 
É claro que a luta juridico-politica (e sindical) é uma das frentes candentes de luta contra o assédio moral no trabalho. Mas como o assédio moral é um recurso ideológico, a ação efetiva de luta deve adquirir também predominantemente um caráter ideológico. O assédio moral é a nova violência do capital na era do poder da ideologia. Deste modo, a proliferação do assédio moral em nossos dias decorre, em parte, da renuncia da esquerda em geral, principalmente da esquerda social-democrata, em levar a cabo a luta ideológica contra o capital. Aceitamos que o Verbo neoliberal adquirisse corpo e alma, assediando moralmente as pessoas que trabalham, subvertendo referenciais ético-morais de resistência e luta contra a lógica do mercado. Por exemplo, é assédio moral atribuir à pessoa que trabalha a denominação de “colaboradores” ao invés de “trabalhadores” ou disseminar por meio de perspectivas epistemológicas nas universidades, que a categoria trabalho não constitui mais categoria ontológica fundante e fundamental do ser social. Enfim, a corrosão do universo locucional da classe é o modo de violência sociometabólica do capital na era da manipulação reflexa.
Podemos dizer que o assédio moral configura-se como uma ação predominantemente ideológica que opera, em si e para si, o fenômeno do estranhamento que, na perspectiva lukacsiana, significa a degradação da pessoa humana que trabalha (vide capítulo “O estranhamento”, volume II, do livro Para uma ontologia do ser social, de Georg Lukács, Editorial Boitempo, 2014). Na era do capitalismo global manipula-se reflexivamente, pessoas humanas mais desenvolvidas em suas relações sociais, personalidades humanas complexas, portanto, mais ricas, prenhes de possibilidades de desenvolvimento omnilateral (o que distingue as individualidades pessoais de classe dos séculos passados). O capital como processo de desenvolvimento civilizatório, expande e reduz, ao mesmo tempo, as possibilidades de desenvolvimento humano. Esta é a “contradição viva” que cria subjetividades complexas e, ao mesmo tempo, as reduz no plano das relações humanas instrumentalizadas. Por isso, o assédio moral é sintoma do processo sistemático – e não meramente casual ou contingente – que reduz a genericidade humana. O assédio moral no trabalho e na vida cotidiana é um traço da crise de civilização intrínseca à própria lógica do capital global. Enfim, vivemos na civilização do assédio moral.
O assédio moral como fenômeno social – e que se diferencia de outras formas de violências do capital, apesar de estar articuladas com elas (como o dano moral, discriminação racial e sexual, despotismo laboral, etc) – diz respeito, deste modo, a um sistema social e a um processo de subjetivação. Por exemplo, fala-se hoje em assédio moral organizacional. Entretanto, o “organizacional” apenas compõem uma totalidade social, cujo sociometabolismo incorporou práticas de assédio moral. Pode-se falar assim, com maior precisão conceitual, em assedio moral sistêmico, que se confunde com a própria vigência da ideologia dominante do capital. Enfim, o assedio moral sistêmico é o eufemismo para o poder da ideologia do capital. O discurso da Ordem interpela – e assedia – cada vez mais as pessoas que trabalham como sujeitos morais. É claro que o capital atua nos locais de trabalho reestruturados, moldando a gestão e a nova organização do trabalho. Mas é importante perceber o assédio moral como sendo elemento compositivo intrínseco do modo de controle estranhado do capital global, articulando, mais do que nunca, vida e trabalho. Ele pode manifestar-se com vigor nos locais de trabalho – afinal, como diria Antonio Gramsci, a hegemonia nasce da fábrica. Entretanto, constitui-se hoje todo um processo de subjetivação baseado no assedio moral com suas características perversas e manipulatórias dos sujeitos humanos.
Tem havido hoje uma ampla discussão na sociedade sobre assédio moral – principalmente assédio moral no trabalho. Na verdade, trata-se de algo sintomático: ao constituir-se o conceito de “assédio moral”, explicita-se o reconhecimento politico e social da nova violência do capital no plano categorial. É a nominação da nova miséria humana silenciosa e sutil que expõe o espectro da barbárie social. A nova violência do capital é, ao mesmo tempo, um velho diabo e um novo demônio que explicita, como traço orgânico da nova ordem do capital global, o fenômeno do estranhamento na acepção lukacsiana. Como dissemos acima, o assédio moral opera em si e para si, o fenômeno do estranhamento que explicita uma densa e profunda contradição social: o desenvolvimento das capacidades humanas por conta do desenvolvimento das forças produtivas do trabalho social, não se traduz em desenvolvimento pleno da personalidade humana. Pelo contrário, o sistema social do capital, incubador de personalidades humanas perversas, provoca o desmonte e degradação de personalidades humanas complexas. O assédio moral como metabolismo social e processo de subjetivação estranhada cria personalidades humanas perversas que operam no trabalho e na vida cotidiana a degradação da pessoa que trabalha. O assédio moral contém a lógica da reificação e instrumentalização do Outro-como-próximo que se interverte em mero objeto de manipulação dos desejos egoístas. Trata-se de uma forma sofisticada – sutil, perversa e envolvente – de relações humanas alienadas que permeiam a sociedade burguesa.
É claro que a lógica da instrumentalização do outro é a lógica da produção capitalista em si e para si, desde sua constituição originaria. O capitalismo nasce reificando o trabalho vivo, transformando-o em força de trabalho como mercadoria. Mas o que diferencia o assédio moral das formas de violência primitiva, exposta e brutal, que caracteriza a exploração/espoliação, opressão e dominação do capital desde as priscas eras históricas até os dias de hoje, é seu caráter de instrumentalização moral, sutil, envolvente e consentida. Enfim, instrumentalização perversa onde o eu torna-se carrasco de si mesmo (a auto-alienação dos empreendedores) e, ao mesmo tempo, sujeito de fruição de sua própria desefetivação humano-genérica.
A vigência do “assédio moral” como a forma dominante da violência do capital no trabalho e na vida cotidiana é, de certo modo, a proclamação daquilo que poderíamos denominar a “vigência de Sade”. No alvorecer da ordem burguesa, nos fins do século XVIII, o literato libertino Marques de Sade explicitou em seus romances, as consequências (des)humanas da nova lógica do liberalismo clássico imbuído do individualismo possessivo. Na ótica sadeana, o liberalismo clássico levado às últimas conseqüências, constituiria o outro meramente como um meio para minha fruição perversa. É de seu nome que surge o termo “sadismo”, que define a perversão sexual de ter prazer na dor física ou moral do parceiro ou parceiros.
No filme Saló ou os 120 dias de Sodoma, de 1975, inspirado na obra homônima do Marques de Sade, adaptado para o século XX, o cineasta visionário Pier Paolo Pasolini, vislumbrou a miséria da sociabilidade instrumental do capitalismo global. No filme, na Itália, durante o outono europeu de 1944, um grupo de jovens são selecionados por quatro dirigentes fascistas (um presidente de um banco, que representa o poder econômico; um bispo, representando a igreja; um duque, que representa a nobreza; e um juiz, que representa o poder judicial) para serem o objeto de uma série de torturas e experimentos sádicos, ao longo de 120 dias.
A razão liberal, tal como a razão iluminista denunciada por Adorno e Horkheimer no livro Dialética do esclarecimento, continha sua própria miséria histórica: a degradação do Outro-como-próximo. Na verdade, a lógica do liberalismo clássico – a dominação do Outro como meio para a Exploração e produção da riqueza abstrata; e a lógica do Iluminismo – a dominação da Natureza como símbolo do Progresso e desenvolvimento da Tecnologia – compunham a lógica sistêmica da razão instrumental que caracterizaria o capitalismo histórico.
Na mesma época histórica, o filósofo Immanuel Kant, aterrorizado pelas consequências éticas da nova racionalidade instrumental do liberalismo burguês, buscou em vão, fundamentar sua ética do imperativo categórico, no corolário de que nenhum homem pode ser meio para o outro. Para ele, a moralidade pode resumir-se num princípio fundamental – o “imperativo categórico” – a partir do qual se derivam todos os nossos deveres e obrigações. Na Fundamentação da Metafísica dos Costumes (1785) exprimiu-o desta forma: “Age apenas segundo aquela máxima que possas ao mesmo tempo desejar que se torne lei universal”. No entanto, Kant deu igualmente outra formulação do imperativo categórico. Mais adiante, na mesma obra, afirmou que se pode considerar que o princípio moral essencial afirma o seguinte: “Age de tal forma que trates a humanidade, na tua pessoa ou na pessoa de outrem, sempre como um fim e nunca apenas como um meio”. Portanto, pare ele a moralidade exige que tratemos as pessoas “sempre como um fim e nunca apenas como um meio”. Kant foi o primeiro a reconhecer que ao homem não se pode atribuir valor (preço), devendo ser considerado como um fim em si mesmo e em função da sua autonomia enquanto ser racional (o contrário da lógica do capital que se constituía historicamente naquela época).
Entretanto, a perspectiva do Marques de Sade foi deveras mais realista. A nova civilização do capital, que nascia efusivamente no século XVIII, deixava claro que a vigência do processo do trabalho como processo de valorização, implicava que o homem seria, não apenas meio para uma finalidade estranhada (a produção do valor), mas que, num segundo momento, o próprio desenvolvimento do processo de valorização (com a grande indústria), “negaria” o processo de trabalho, subsumindo realmente (e não apenas formalmente) o sujeito humano como força de trabalho tornado não apenas apêndice do sistema de máquina – no plano formal, mas realmente guardião e regulador do processo de produção (o que exige novo modo de manipulação do capital). 
A subsunção real do trabalho ao capital, ocorrido com a grande indústria, caracterizou o século XX. Na era do fordismo-taylorismo, as dimensões perversas do nexo psicofísico do capital não estavam postas de modo pleno. Como mero apêndice da máquina, o homem que trabalha tinha apenas a função de suporte da linha de montagem. É com o toyotismo como fordismo genuíno, e a nova base técnica informacional, que instaura a nova forma de produção do capital – a maquinofatura – que se explicita a radicalidade perversa da exploração capitalista na medida em que se instaura, como diria Ruy Fausto, a subordinação formal intelectual (ou espiritual) do trabalho ao capital.
A lógica da gestão toyotista é a lógica do assédio moral. É o que salientamos no livro Trabalho e subjetividade (Editora Boitempo, 2011). No plano da lógica da acumulação de valor, a moral torna-se campo de disputa. A nova base técnica do sistema do capital com a vigência da maquinofatura, alteram o modo de ser da subsunção real do trabalho ao capital. Como salientou Ruy Fausto (ele utiliza o termo pós-grande indústria e não maquinofatura), a subsunção real torna-se subsunção formal intelectual (ou espiritual), onde a “captura” da subjetividade – inclusive como “captura” da espiritualidade – se impõe. É nesse novo campo de exploração do homem que trabalha, que constitui-se o terreno fértil para o assédio moral. O homem-que-trabalha torna-se implicado efetivamente, em sua dimensão moral (ou espiritual) com a lógica do capital. Enfim, a proliferação do assédio moral no trabalho e na vida cotidiana diz respeito a mudanças estruturais na forma de produção do capital.
Como contradição viva em processo, o capital opera movimentos contraditórios: primeiro nega, com a grande indústria, o homem como sujeito moral, que torna-se mero apêndice da máquina. Depois de negar o homem como sujeito moral, volta a “resgata-lo” – no interior da nova materialidade de exploração do capital – como subjetividade (e espiritualidade) com a dita “pós-grande indústria” ou maquinofatura. Na “sociedade de serviços”, onde predomina o que denominamos de “trabalho ideológico”, o homem aparece não apenas como força de trabalho, mas também como trabalho vivo, com a dimensão moral sendo restaurada, para logo a seguir, ser “capturada” pelo capital – como exige a nova materialidade “espiritual” do capital. Nesse caso, constitui-se o campo ideológico propicio para o assédio moral, principalmente nos locais de trabalho reestruturados – tanto do setor privado quanto do setor público da totalidade viva do trabalho.
A contradição candente implícita do “assédio moral” é que a “negação” da personalidade humana – que assume uma dimensão perversa – ocorre no momento em que o desenvolvimento civilizatório, posto como redução das barreiras naturais, produz, de forma intensa e extensa, personalidades humanas complexas. Temos novamente outro “nó contraditório” do capital: o resgate da subjetividade ocorre para que se possa disputa-la e “captura-la” em prol dos valores-fetiches do capital (o que implica sua deformação perversa – ou perversidade narcísicas). Ao “resgatar” a subjetividade, o capital da pós-grande indústria/maquinofatura busca – no sentido literal – espoliar a riqueza de personalidades humanas complexas que se constituíram com o processo civilizatório do capital. 
Ao dizermos “processo civilizatório do capital” expomos outro “nó contraditório” do capital, isto é, na medida em que ocorre o desenvolvimento das forças produtivas do trabalho social, ocorre a redução das barreiras naturais (embora, ao mesmo tempo, em virtude do fetichismo social, imponha-se uma “segunda natureza” cada vez mais social). É para lidar com personalidades humanas complexas, resultado do processo civilizatório, e prenhe – de modo contraditório – por novas possibilidades de desenvolvimento humano, que o sistema social do capital altera a forma de ser da sua violência ancestral. Para operar de modo hegemônico em sociedades complexas, o capital constitui-se como capitalismo manipulatório. É por isso que o “assédio moral” emerge como categoria política e social candente para expor a miséria da normalidade burguesa. Como diria Horácio, em Hamlet (de William Shakespeare), “há algo de podre no reino da Dinamarca”. 
É como personalidades humanas complexas, que nós dizemos hoje “não” à violência sutil do capital que assume a forma de manipulação reflexiva. De certo modo, a luta contra o “assédio moral” é quase como a vingança do filosofo Kant, que em sua ética da razão prática, condenava qualquer um que utilizasse o outro como meio para fins egoístas. Como perversidade, o “assédio moral” representa a prática ideológica sistêmica de dispor o outro – de modo instrumental – como sujeito perverso da barbárie social do capital. Com o assédio moral ocorre a instrumentalização do outro para as finalidades alienadas – particularistas e ensimesmadas – das “personas” do capital.
Ester de Freitas e Roberto Heloani definem assim o assédio moral no trabalho: “O assédio moral é uma conduta abusiva, intencional, freqüente e repetida, que ocorre no ambiente de trabalho e que visa diminuir, humilhar, vexar, constranger, desqualificar e demolir psiquicamente um indivíduo ou um grupo, degradando as suas condições de trabalho, atingindo a sua dignidade e colocando em risco a sua integridade pessoal e profissional”. Deste modo, o assédio moral possui um traço de intencionalidade sistêmica na medida em que é freqüente e repetido e não meramente casual. Na medida em que possui um caráter sistêmico, ele diz respeito à própria lógica organizacional (e social) da exploração da força de trabalho e do trabalho vivo. A degradação da personalidade humana torna-se um meio para a satisfação de personas do capital que visam com isso, obviamente, não apenas satisfazer idiossincrasias de chefias (ou colegas de trabalho) perversas, mas cumprir objetivos de gestão do negócio. O assédio moral torna-se horizontal – entre colegas de trabalho – porque tornou-se efetivamente assédio moral sistêmico, ideologia dominante do sociometabolismo do capital.
Finalmente, cabe tratar do nexo essencial entre assédio moral e capitalismo necrófilo. O capitalismo global baseia-se numa dinâmica sociometabólica que não contribui para o desenvolvimento. Pelo contrário, representa aquilo que apresenta-se como o próprio resultado do assédio moral: a diminuição, humilhação, vexame, constrangimento, desqualificação e demolição psíquica do homem que trabalha. É que ocorre com o metabolismo social do desemprego e precariedade do trabalho que tem se dissmeninado nos últimos “trinta anos” perversos de capitalismo global. O conceito candente de “assédio moral” sinaliza que vivemos hoje no tempo histórico do perverso – perversidade que flerta com a morte. Por exemplo, fazendo um paralelo com o filme Saló ou 120 dias de Sodoma, de Pier Paolo Pasolini, diríamos que o vínculo orgânico entre assédio moral e morte representa o último círculo que compõe a narrativa de Pasolini baseada no livro de Sade – o Círculo de Sangue. A obra de Pasolini, tida por muitos como uma das mais perturbadoras da história do cinema, é dividida em 3 fases, chamadas de ‘círculos’, que são o Círculo das Manias, onde os fascistas satisfazem seus desejos sexuais; o Círculo das Fezes, repleto de escatologia, onde os jovens são obrigados a ingerir fezes; e o Círculo de Sangue, onde os prisioneiros desobedientes são punidos através de mutilações, torturas físicas e assassinato. Extrapolando a narrativa pasoliniana para a lógica gerencialista diríamos que nas organizações sistêmicas temos as Manias do Desempenho (ou Produtivismo), as Fezes da Resiliência e o Sangue da degradação psíquica da pessoa que trabalha.
O psicologo marxista Erich Fromm salientou a dimensão necrófila do capitalismo tardio. O gozo da morte reverbera, por exemplo, na perversidade explicita ou implícita das pequenas (e grandes) loucuras da cotidianidade alienada. Na medida em que a produção do capital torna-se totalidade social, o assédio moral torna-se assédio moral sistêmico. É traço endêmico do metabolismo social. Na era da barbárie social, o assédio moral é o veículo dos consentimentos espúrios que degradam a personalidade humana como condição sine qua non da reprodução social da ordem burguesa hipertardia. Portanto, da respiração ofegante do co-piloto que, trancado na cabine, provocou a morte de 150 passageiros e tripulantes do avião da Germanwings (em março de 2015), às narrativas ficcionais de sexo e sado-masoquismo que seduzem hoje multidões de jovens e adultos (do romance best-seller Cinquenta tons de cinza ao filme maldito Ninfomaníaca, de Lars von Trier), vivemos na era do perverso ou era do assédio moral como metabolismo social. 
Na era do perverso, onde o “apagão ético” se contrasta com a proliferação do assédio moral, vivemos formas supremas de irracionalidades sociais. Em pleno século XXI, personalidades humanas complexas são dilaceradas pelas candentes contradições sociais ou “nós contraditórios” do capital. O desvelamento do sentido ontológico do “assédio moral” é apenas a “ponta do iceberg” da barbárie social que caracteriza a ordem sociometabólica do capital global.



***

Giovanni Alves é doutor em ciências sociais pela Unicamp, livre-docente em sociologia e professor da Unesp, campus de Marília. É pesquisador do CNPq com bolsa-produtividade em pesquisa e coordenador da Rede de Estudos do Trabalho (RET), do Projeto Tela Crítica e outros núcleos de pesquisa reunidos em seu site giovannialves.org. É autor de vários livros e artigos sobre o tema trabalho e sociabilidade, entre os quais O novo (e precário) mundo do trabalho: reestruturação produtiva e crise do sindicalismo (Boitempo Editorial, 2000) e Trabalho e subjetividade: O espírito do toyotismo na era do capitalismo manipulatório (Boitempo Editorial, 2011). Colabora para o Blog da Boitempo mensalmente, às segundas

sábado, 25 de abril de 2015

Benditos sejam os inimigos




fogueira


Publicado no Unisinos


A experiência prova que a ameaça do inferno é sempre mais eficaz que a promessa do Céu.

Benditos sejam os inimigos.

Dante já sabia que Maomé era terrorista. 

Por alguma razão o colocou em um dos círculos do inferno, condenado à pena de prisão perpétua. “O vi partido”, celebrou o poeta em A Divina Comédia , “desde a barba até a parte inferior do ventre…”. Mais de um Papa já tinham comprovado que as hordas muçulmanas, que atormentavam a Cristandade, não eram formadas por seres de carne e osso, eram um grande exército de demônios que aumentava quanto mais sofria com os golpes das lanças, das espadas e dos arcabuzes.

Hoje em dia, os mísseis fabricam muito mais inimigos que os inimigos das entranhas. Porém, que seria de Deus, afinal de contas, sem inimigos? O medo impera, as guerras existem para desbaratar o medo. A experiência prova que a ameaça do inferno é sempre mais eficaz que a promessa do Céu. Benditos sejam os inimigos. Na Idade Média, cada vez que o trono tremia, por bancarrota ou fúria popular, os reis cristãos denunciavam o perigo muçulmano, desatavam o pânico, lançavam uma nova Cruzada, o santo remédio. Agora, há pouco tempo, George W. Bush foi reeleito presidente do planeta graças ao oportuno aparecimento de Bin Laden, o grande Satã do reino, que as vésperas das eleições anunciou, pela televisão, que ia comer todas as crianças.

Lá pelo ano de 1564, o especialista em demonologia Johann Wier teria contado os demônios que estavam trabalhando na terra, a tempo integral, a favor da perdição das almas cristãs. Eram sete milhões quatrocentos e nove mil cento e vinte sete, que agiam divididos em setenta e nove legiões.

Muita água fervente passou, depois daquele censo, debaixo das pontes do inferno. Quantos são, hoje em dia, os enviados do reino das trevas? As artes do teatro dificultam as contas. Estes falsos continuam usando turbantes, para ocultar seus cornos, e longas túnicas tampam os rabos do dragão, suas asas de morcego e a bomba que carregam debaixo do braço.

O Demônio é judeu

A colossal carnificina organizada por Hitler culminou uma longa história de perseguição e humilhação.

Hitler não inventou nada. Há mil anos, os judeus são os imperdoáveis assassinos de Jesus e os culpados de todas as culpas. Como? Jesus era judeu? E judeus eram também os doze apóstolos e os quatro evangelistas? O que você disse? Não pode ser. As verdades reveladas estão além das dúvidas e não exigem mais evidências do que a própria existência. As coisas são como se diz que são, e se diz porque se sabe: nas sinagogas o Demônio dá aulas, e os judeus desde há muito se dedicam a profanar hóstias e a envenenar águas bentas. Por causa deles aconteceram bancarrotas econômicas, crises financeiras e derrotas dos militares; são eles que trouxeram a febre amarela e a peste negra e todas as outras pestes.

A Inglaterra os expulsou, nenhum escapou, no ano de 1290, porém isso não impediu Chaucer, Marlowe e Shakespeare, que nunca tinham visto um judeu, fossem obedientes à caricatura tradicional e reproduzissem personagens judeus segundo o modelo satânico de parasita sanguessuga e o avaro usurário.

Acusados de servir ao Maligno, estes malditos andaram durante séculos de expulsão em expulsão e de matança em matança. 

Depois da Inglaterra foram sucessivamente expulsos da França, Áustria, Espanha, Portugal e de numerosas cidades suíças, alemães e italianos. 

Os reis católicos Izabel e Fernando expulsaram os judeus e também os muçulmanos porque sujavam o sangue. 

Os judeus haviam vivido na Espanha durante treze séculos. Levaram com eles as chaves de suas casas. Há quem as guarde ainda. Nunca mais voltaram.

A colossal carnificina organizada por Hitler culminou uma longa história de perseguição e humilhação. A caça aos judeus tem sido sempre um esporte europeu. 

Agora, os palestinos, que jamais a praticaram, pagam a culpa.

O Demônio é mulher

“Toda a bruxaria provém da luxúria carnal, que nas mulheres é insaciável”.

O livro Malleus Maleficarum, também chamado O martelo das bruxas, recomenda o mais ímpio exorcismo contra o demônio que tem seios e cabelos compridos.

Dois inquisidores alemães, Heinrich Kramer e Jakob Sprenger, o escreveram, a pedido do Papa Inocêncio VIII, para enfrentar as conspirações demoníacas contra a Cristandade. Foi publicado pela primeira vez em 1486 e até o final do século XVIII foi o fundamento jurídico e teológico dos tribunais da Inquisição em vários países.

Os autores afirmavam que as bruxas, do harém de Satanás, representavam as mulheres em estado natural: “Toda bruxaria provém da luxúria carnal, que nas mulheres é insaciável”. E demonstravam que “esses seres de aspecto belo, cujo contato é fétido e a companhia mortal” encantavam os homens e os atraíam com silvos de serpentes, rabos de escorpião, para aniquilá-los. Os autores advertiam aos incautos: “A mulher é mais amarga que a morte. É uma armadilha. Seu coração, uma rede; e correias, seus braços”.

Esse tratado de criminologia, que enviou milhares de mulheres às fogueiras da Inquisição, aconselhava que todas as suspeitas de bruxaria fossem submetidas à tortura. Se confessassem, mereceriam o fogo. Se não confessassem também, porque só uma bruxa, fortalecida por seu amante, o Demônio, nos conciliábulos das bruxas, poderia resistir a semelhante suplício sem soltar a língua.

O papa Honório III sentenciara que o sacerdócio era coisa de machos: – As mulheres não devem falar. Seus lábios têm o estigma de Eva, que provocou a perdição dos homens.

Oito séculos depois, a Igreja Católica continua negando o púlpito às filhas de Eva. O mesmo pânico faz com que os muçulmanos fundamentalistas as mutilem o sexo e lhes cubram a cara.

E o alívio pelo perigo conjurado leva os judeus mais ortodoxos a começar o dia sussurrando: “Graças, Senhor, por não me ter feito mulher”.

O Demônio é homossexual

Em nenhum lugar do mundo se levou em conta os muitos homossexuais condenados ao suplício ou a morte pelo delito de sê-lo.

Desde 1446, os homossexuais iam para a fogueira em Portugal. Desde 1497 eram queimados vivos na Espanha. O fogo era o destino merecido pelos filhos do inferno, que surgiam do fogo.

Na América, ao contrário, os conquistadores preferiam jogá-los aos cachorros. Vasco Núnez de Balboa, que entregou muitos deles para a refeição dos cães, acreditava que a homossexualidade era contagiosa. Cinco séculos depois, ouvi o Arcebispo de Montevidéu dizer o mesmo. Quando os conquistadores apontaram no horizonte, só os astecas e os incas, em seus impérios teocráticos, castigavam a homossexualidade com a pena de morte. Os outros americanos a toleravam e em alguns lugares a celebravam, sem proibição ou castigo.

Essa provocação insuportável devia desencadear a cólera divina. Do ponto de vista dos invasores, a varíola, o sarampo e a gripe, pestes desconhecidas que matavam índios como moscas, não vinham da Europa, mas sim do Céu. Assim, Deus castigava a libertinagem dos índios que praticavam a anormalidade com toda a naturalidade.

Nem na Europa, nem na América, nem em nenhum lugar do mundo se levou em conta os muitos homossexuais condenados ao suplício ou a morte pelo delito de sê-lo. Nada sabemos dos longínquos tempos e pouco ou nada sabemos dos tempos de agora.

Na Alemanha nazista, estes “degenerados culpados de aberrante delito contra a natureza” eram obrigados a exibir a estrela amarela. Quantos foram para os campos de concentração? Quantos lá morreram? Dez mil? Cinqüenta mil? Nunca se soube. Ninguém os contou, quase ninguém os mencionou. Tampouco se soube quantos foram os ciganos exterminados.

No dia 18 de setembro de 2002, o governo alemão e os bancos suíços resolveram “retificar a exclusão dos homossexuais entre as vítimas do Holocausto”. Levaram mais de meio século para corrigir essa omissão. A partir dessa data os homossexuais que tinham sobrevivido em Auschwitz e em outros campos, se é que ainda haja algum vivo, puderam reclamar uma indenização.

O Demônio é índio

Os conquistadores cumpriram a missão de devolver a Deus o ouro, a prata e outras várias riquezas que o Demônio havia usurpado.

Os conquistadores descobriram que Satã, quando expulso da Europa, tinha encontrado refúgio na América. Nas ilhas e nas praias do mar do Caribe, beijadas dia e noite por seus lábios flamejantes, habitadas por seres bestiais que andavam nus, tal como o Demônio os havia colocado no mundo, que cultuavam o sol, a terra, as montanhas, os mananciais e outros demônios disfarçados de deuses, que chamavam de jogo ao pecado carnal e o praticavam sem horário nem contrato, que ignoravam os dez mandamentos e os sete sacramentos e os sete pecados capitais, que não conheciam a palavra pecado nem temiam o inferno, que não sabiam ler nem tinham nunca ouvido falar do direito de propriedade, nem de nenhum direito e que, como se tudo isso fosse pouco, tinham o costume de comerem uns aos outros. 

A conquista da América foi uma longa e difícil tarefa de exorcismo. Tão arraigado estava o Demônio nestas terras, que quando parecia que os índios se ajoelhavam devotamente ante a Virgem, estavam na realidade adorando a serpente que ela amassava com o pé; e quando beijavam a Cruz não estavam reconhecendo ao Filho de Deus, mas estavam celebrando o encontro da chuva com a terra.

Os conquistadores cumpriram a missão de devolver a Deus o ouro, a prata e outras várias riquezas que o Demônio havia usurpado. Não foi fácil recuperar o tesouro. Ainda bem que de vez em quando recebiam alguma pequena ajuda de lá de cima. Quando o dono do inferno preparou uma emboscada em um desfiladeiro, para impedir a passagem dos espanhóis em busca da prata de Cerro Rico de Potosi, um arcanjo baixou das alturas e lhe deu uma tremenda surra.

O Demônio é negro

Supunha-se que a leitura da Bíblia podia facilitar a viagem dos africanos do inferno para o paraíso, mas a Europa esqueceu de ensiná-los a ler.

Como a noite, como o pecado, o negro é inimigo da luz e da inocência.

Em seu célebre livro de viagens, Marco Pólo fala dos habitantes de Zanzibar. “Tinham uma boca muito grande, lábios muito grossos e nariz como o de um macaco. Caminhavam nus, totalmente negros e para quem de qualquer outra região que os visse acreditaria que eram demônios”.

Três séculos depois, na Espanha, Lúcifer, pintado de negro, trepado numa carroça em chamas, entrava nos pátios das comédias e nos palcos das feiras. Santa Tereza de Jesus, que viveu para combatê-lo, apesar disso nunca pode entendê-lo. Uma vez ficou ao lado e viu “um negrinho abominável”. Outra vez ela viu que do seu corpo negro saía uma chama vermelha, quando se sentou em cima de seu livro de orações e queimou os textos do ofício religioso.

Uma breve história do intercâmbio entre África e Europa: durante os séculos XVI, XVII e XVIII, a África vendia escravos e comprava fuzis. Trocava trabalho pela violência. Os fuzis punham ordem no caos infernal e a escravidão iniciava o caminho da redenção. Antes de serem marcados com ferro quente, na cara e no peito, todos os negros recebiam uma boa unção de água benta. O batismo espantava o demônio e dava alma a esses corpos vazios. Depois, durante os séculos XIX e XX, a África entregava ouro, diamantes, cobre, marfim, borracha e café e recebia Bíblias. Trocava produtos por palavras. Supunha-se que a leitura da Bíblia podia facilitar a viagem dos africanos do inferno para o paraíso, mas a Europa esqueceu de ensiná-los a ler.

O Demônio é estrangeiro

O imigrante está disponível para ser acusado como responsável pelo desemprego, a queda do salário, a insegurança pública e outras temíveis desgraças.

O “culpômetro” indica que o imigrante vem roubar-nos o emprego e o “perigosímetro” acende a luz vermelha. 

Se for pobre, jovem e não for branco, o intruso, que veio de fora, está condenado, a primeira vista, por indigência, inclinação ao tumulto ou por ter aquela pele. De qualquer maneira, se não é pobre, nem jovem, nem escuro, deve ser mal recebido, porque chega disposto a trabalhar o dobro em troca da metade.

O pânico diante da perda do emprego é um dos medos mais poderosos entre todos os medos que nos governam nestes tempos de medo. E o imigrante está sempre disponível para ser acusado como responsável pelo desemprego, a queda do salário, a insegurança pública e outras temíveis desgraças.

Em outros tempos, a Europa distribuía para o mundo soldados, presos e camponeses mortos de fome. Estes protagonistas das aventuras coloniais passaram à história como agentes viajantes de Deus. Era a Civilização lançada nos braços da barbárie.

Agora a viagem se faz na contramão. Os que chegam, ou tentam chegar do sul em direção ao norte, não trazem nenhuma faca entre os dentes nem fuzil no ombro. Vêm de países que foram oprimidos até a última gota de seu sugo e não têm a intenção de conquistar nada além de um trabalho ou trabalhinho. Esses protagonistas das desventuras parecem, muito mais, mensageiros do Demônio. É a barbárie que toma de assalto a Civilização.

O Demônio é pobre

Os bens de poucos sofrem a ameaça dos males de muitos.

Se lambem enquanto você come, espiam enquanto você dorme: os pobres espreitam. Em cada um se esconde um delinqüente, talvez um terrorista. Os bens de poucos sofrem a ameaça dos males de muitos. Nada de novo. Tem sido assim desde quando os donos de tudo não conseguem dormir e os donos de nada não conseguem comer.

Submetidas a um acossamento durante milhares de anos, as ilhas da decência estão encurraladas pelos turbulentos mares da vida desgraçada. Rugem as ondas sucessivas que forçam viver em sobressalto perpétuo. Nas cidades de nosso tempo, imensos cárceres que prendem os prisioneiros ao medo, as fortalezas dizem ser casas e as armaduras simulam ser trajes.

Estado de sítio. Não se distraia, não baixe a guarda, desconfie: você está estatisticamente marcado, mais cedo ou mais tarde terá que sofrer algum assalto, seqüestro, violação ou crime. Nos bairros malditos espreitam, ocultos, remoendo invejas, tragando rancores, os autores de sua próxima desgraça. São vagabundos, pobres diabos, bêbados, drogados, carne de cárcere ou bala, pessoas sem dentes, sem rumo e sem destino.

Ninguém os aplaude, porém os ladrões de galinha fazem o que podem imitando, modestamente, os mestres que ensinam ao mundo as fórmulas do êxito. Ninguém os compreende, porém eles aspiram serem cidadãos exemplares, como esses heróis de nosso tempo que violam a terra, envenenam o ar e a água, estrangulam salários, assassinam empregos e sequestram países.


por Eduardo Galeano

quinta-feira, 16 de abril de 2015

NÃO AO SINDICATO ESPECÍFICO!

Os Oficiais de Justiça da Baixada Santista reunidos no Salão do Júri da Comarca de Santos DELIBERARAM PELO NÃO A MAIS UM SINDICATO ESPECÍFICO que está marcado para o próximo dia 25 de abril de 2015 em Limeira. A Assembleia iniciou com informes sobre a terceirização no país com PL 4330 (terceirização das atividades fim) e no TJ-SP o  pagamento de conciliadores (PL 1005-13) e o provimento 2251-15 que premite a instalação de unidades de atendimento, sem a exigência de concurso público. Também foram informados dos ofícios protocolados pelo SINTRAJUS/ASSOJUBS para a aprovação do PLC 56-13 (nivel universitário para O.J.) e a mobilização na ALESP. Por fim, as visitas às comarcas e Guarujá, Bertioga, São Vicente, Praia Grande, Peruíbe, Itanhaém, Itariri, Cubatão e Santos. Com a presença do Dr. Jonadabe Rodrigues Laurindo​ (assojubs/sintrajus) que fez uma introdução sobre questões sindicais, desenvolvendo para criação de mais um sindicato específico que traria mais divisão e fragmentação  para categoria do judiciário estadual. O Oficial Sergio Crochemore​ atentou para a conduta de luta que deve harver num sindicato:  "Um sindicalista deve ter história, um passado de participação em movimentos pelos direitos dos servidores". A Oficiala Catarina L Morgado​ fez um breve histórico sindical desde a criação  e tentativa do antigo SINDIGESP, sindicato de Santos e região e sua tranformação na Assojubs Servidores Do Judiciário​. Sobre a greve de 2010 e criação do SINTRAJUS e sua atuação nestes últimos anos. Após as dúvidas tiradas pelos O.J(s), foi DECIDIDO PELA CONTRARIEDADE AO SINDICIATO ESPECÍFICO DOS OFICIAIS DE JUSTIÇA INTERIOR.

terça-feira, 14 de abril de 2015

AÇÃO ENTRE AMIGOS.

A sorteada de nossa "Ação entre amigos": Neide de Arruda n. 406.

VISITA À CENTRAL DE MANDADOS DE CUBATÃO

No final da tarde de 13.04.2015, o SINTRAJUS e a ASSOJUBS, representados por Michel Iorio e Rosângela dos Santos, estiveram na Central de Mandados da Comarca de Cubatão para informes gerais e convocação para o dia 15 de abril de 2015, às 09:30 horas no salão do júri da Comarca de Santos, onde será discutido a criação do sindicato dos Oficiais de Justiça - Interior. 

segunda-feira, 13 de abril de 2015

O império do consumo

                Hoje, a América  Latina  ficou  mais pobre...

O império do consumo


Esta ditadura da uniformização obrigatória impõe, no mundo inteiro, um modo de vida que reproduz os seres humanos como fotocópias do consumidor exemplar. 

Por Eduardo Galeano

publicado por  Envolverde  em 30/12/2010 



"Novos consumidores não aceitam imposições: querem primeiro se identificar com as marcas..."


A produção em série, em escala gigantesca, impõe em todo lado as suas pautas obrigatórias de consumo. Esta ditadura da uniformização obrigatória é mais devastadora que qualquer ditadura do partido único: impõe, no mundo inteiro, um modo de vida que reproduz os seres humanos como fotocópias do consumidor exemplar.

O sistema fala em nome de todos, dirige a todos as suas ordens imperiosas de consumo, difunde entre todos a febre compradora; mas sem remédio: para quase todos esta aventura começa e termina no écran do televisor. A maioria, que se endivida para ter coisas, termina por ter nada mais que dívidas para pagar dívidas as quais geram novas dívidas, e acaba a consumir fantasias que por vezes materializa delinquindo.

Os donos do mundo usam o mundo como se fosse descartável: uma mercadoria de vida efémera, que se esgota como se esgotam, pouco depois de nascer, as imagens disparadas pela metralhadora da televisão e as modas e os ídolos que a publicidade lança, sem tréguas, no mercado. Mas para que outro mundo vamos mudar-nos?

A explosão do consumo no mundo atual faz mais ruído do que todas as guerras e provoca mais alvoroço do que todos os carnavais. Como diz um velho provérbio turco: quem bebe por conta, emborracha-se o dobro. O carrossel aturde e confunde o olhar; esta grande bebedeira universal parece não ter limites no tempo nem no espaço. Mas a cultura de consumo soa muito, tal como o tambor, porque está vazia. E na hora da verdade, quando o estrépito cessa e acaba a festa, o borracho acorda, só, acompanhado pela sua sombra e pelos pratos partidos que deve pagar.

A expansão da procura choca com as fronteiras que lhe impõe o mesmo sistema que a gera. O sistema necessita de mercados cada vez mais abertos e mais amplos, como os pulmões necessitam o ar, e ao mesmo tempo necessitam que andem pelo chão, como acontece, os preços das matérias-primas e da força humana de trabalho.

O direito ao desperdício, privilégio de poucos, diz ser a liberdade de todos. Diz-me quanto consomes e te direi quanto vales. Esta civilização não deixa dormir as flores, nem as galinhas, nem as pessoas. Nas estufas, as flores são submetidas a luz contínua, para que cresçam mais depressa. Nas fábricas de ovos, as galinhas também estão proibidas de ter a noite. E as pessoas estão condenadas à insônia, pela ansiedade de comprar e pela angústia de pagar. Este modo de vida não é muito bom para as pessoas, mas é muito bom para a indústria farmacêutica. Os EUA consomem a metade dos sedativos, ansiolíticos e demais drogas químicas que se vendem legalmente no mundo, e mais da metade das drogas proibidas que se vendem ilegalmente, o que não é pouca coisa se se considerar que os EUA têm apenas cinco por cento da população mundial.

“Gente infeliz os que vivem a comparar-se”, lamenta uma mulher no bairro do Buceo, em Montevideo. A dor de já não ser, que outrora cantou o tango, abriu passagem à vergonha de não ter. Um homem pobre é um pobre homem. “Quando não tens nada, pensas que não vales nada”, diz um rapaz no bairro Villa Fiorito, de Buenos Aires. E outro comprova, na cidade dominicana de San Francisco de Macorís: “Meus irmãos trabalham para as marcas. Vivem comprando etiquetas e vivem suando em bicas para pagar as prestações”.
Invisível violência do mercado: a diversidade é inimiga da rentabilidade e a uniformidade manda. A produção em série, em escala gigantesca, impõe em todo lado as suas pautas obrigatórias de consumo. Esta ditadura da uniformização obrigatória é mais devastadora que qualquer ditadura do partido único: impõe, no mundo inteiro, um modo de vida que reproduz os seres humanos como fotocópias do consumidor exemplar.

O consumidor exemplar é o homem quieto. Esta civilização, que confunde a quantidade com a qualidade, confunde a gordura com a boa alimentação. Segundo a revista científica The Lancet, na última década a “obesidade severa” aumentou quase 30% entre a população jovem dos países mais desenvolvidos. Entre as crianças norte-americanas, a obesidade aumentou uns 40% nos últimos 16 anos, segundo a investigação recente do Centro de Ciências da Saúde da Universidade do Colorado.

O país que inventou as comidas e bebidas light, os diet food e os alimentos fat free tem a maior quantidade de gordos do mundo. O consumidor exemplar só sai do automóvel par trabalhar e para ver televisão. Sentado perante o pequeno écran, passa quatro horas diárias a devorar comida de plástico.

Triunfa o lixo disfarçado de comida: esta indústria está a conquistar os paladares do mundo e a deixar em farrapos as tradições da cozinha local. Os costumes do bom comer, que veem de longe, têm, em alguns países, milhares de anos de refinamento e diversidade, são um patrimônio coletivo que de algum modo está nos fogões de todos e não só na mesa dos ricos.

Essas tradições, esses sinais de identidade cultural, essas festas da vida, estão a ser espezinhadas, de modo fulminante, pela imposição do saber químico e único: a globalização do hambúrguer, a ditadura do fast food. A plastificação da comida à escala mundial, obra da McDonald’s, Burger King e outras fábricas, viola com êxito o direito à autodeterminação da cozinha: direito sagrado, porque na boca a alma tem uma das suas portas.

O campeonato mundial de futebol de 98 confirmou-nos, entre outras coisas, que o cartão MasterCard tonifica os músculos, que a Coca-Cola brinda eterna juventude e o menu do MacDonald’s não pode faltar na barriga de um bom atleta. O imenso exército de McDonald’s dispara hambúrgueres às bocas das crianças e dos adultos no planeta inteiro. O arco duplo desse M serviu de estandarte durante a recente conquista dos países do Leste da Europa. As filas diante do McDonald’s de Moscou, inaugurado em 1990 com fanfarras, simbolizaram a vitória do ocidente com tanta eloquência quanto o desmoronamento do Muro de Berlim.

Um sinal dos tempos: esta empresa, que encarna as virtudes do mundo livre, nega aos seus empregados a liberdade de filiar-se a qualquer sindicato. A McDonald’s viola, assim, um direito legalmente consagrado nos muitos países onde opera. Em 1997, alguns trabalhadores, membros disso que a empresa chama a Macfamília, tentaram sindicalizar-se num restaurante de Montreal, no Canadá: o restaurante fechou. Mas em 1998, outros empregados da McDonald’s, numa pequena cidade próxima a Vancouver, alcançaram essa conquista, digna do Livro Guinness.

As massas consumidoras recebem ordens num idioma universal: a publicidade conseguiu o que o esperanto quis e não pôde. Qualquer um entende, em qualquer lugar, as mensagens que o televisor transmite. No último quarto de século, os gastos em publicidade duplicaram no mundo. Graças a ela, as crianças pobres tomam cada vez mais Coca-Cola e cada vez menos leite, e o tempo de lazer vai-se tornando tempo de consumo obrigatório.

Tempo livre, tempo prisioneiro: as casas muito pobres não têm cama, mas têm televisor e o televisor tem a palavra. Comprados a prazo, esse animalejo prova a vocação democrática do progresso: não escuta ninguém, mas fala para todos. Pobres e ricos conhecem, assim, as virtudes dos automóveis do último modelo, e pobres e ricos inteiram-se das vantajosas taxas de juros que este ou aquele banco oferece.

Os peritos sabem converter as mercadorias em conjuntos mágicos contra a solidão. As coisas têm atributos humanos: acariciam, acompanham, compreendem, ajudam, o perfume te beija e o automóvel é o amigo que nunca falha. A cultura do consumo fez da solidão o mais lucrativo dos mercados.

As angústias enchem-se atulhando-se de coisas, ou sonhando fazê-lo. E as coisas não só podem abraçar: elas também podem ser símbolos de ascensão social, salvo-condutos para atravessar as alfândegas da sociedade de classes, chaves que abrem as portas proibidas. Quanto mais exclusivas, melhor: as coisas te escolhem e te salvam do anonimato multitudinário.

A publicidade não informa acerca do produto que vende, ou raras vezes o faz. Isso é o que menos importa. A sua função primordial consiste em compensar frustrações e alimentar fantasias: Em quem o senhor quer converter-se comprando esta loção de fazer a barba? O criminólogo Anthony Platt observou que os delitos da rua não são apenas fruto da pobreza extrema. Também são fruto da ética individualista. A obsessão social do êxito, diz Platt, incide decisivamente sobre a apropriação ilegal das coisas. Sempre ouvi dizer que o dinheiro não produz a felicidade, mas qualquer espectador pobre de TV tem motivos de sobra para acreditar que o dinheiro produz algo tão parecido que a diferença é assunto para especialistas.

Segundo o historiador Eric Hobsbawm, o século XX pôs fim a sete mil anos de vida humana centrada na agricultura desde que apareceram as primeiras culturas, em fins do paleolítico. A população mundial urbaniza-se, os camponeses fazem-se cidadãos. Na América Latina temos campos sem ninguém e enormes formigueiros urbanos: as maiores cidades do mundo e as mais injustas. Expulsos pela agricultura moderna de exportação, e pela erosão das suas terras, os camponeses invadem os subúrbios. Eles acreditam que Deus está em toda parte, mas por experiência sabem que atende nas grandes urbes.
As cidades prometem trabalho, prosperidade, um futuro para os filhos. Nos campos, os que esperam veem passar a vida e morrem a bocejar; nas cidades, a vida ocorre, e chama. Apinhados em tugúrios [casebres], a primeira coisa que descobrem os recém chegados é que o trabalho falta e os braços sobram.

Enquanto nascia o século XIV, frei Giordano da Rivalto pronunciou em Florença um elogio das cidades. Disse que as cidades cresciam “porque as pessoas têm o gosto de juntar-se”. Juntar-se, encontrar-se. Agora, quem se encontra com quem? Encontra-se a esperança com a realidade? O desejo encontra-se com o mundo? E as pessoas encontram-se com as pessoas? Se as relações humanas foram reduzidas a relações entre coisas, quanta gente se encontra com as coisas?

O mundo inteiro tende a converter-se num grande écran de televisão, onde as coisas se olham mas não se tocam. As mercadorias em oferta invadem e privatizam os espaços públicos. As estações de ônibus e de comboios, que até há pouco eram espaços de encontro entre pessoas, estão agora a converter-se em espaços de exibição comercial.

O shopping center, ou shopping mall, vitrine de todas as vitrines, impõe a sua presença avassaladora. As multidões acorrem, em peregrinação, a este templo maior das missas do consumo. A maioria dos devotos contempla, em êxtase, as coisas que os seus bolsos não podem pagar, enquanto a minoria compradora submete-se ao bombardeio da oferta incessante e extenuante.

A multidão, que sobe e baixa pelas escadas mecânicas, viaja pelo mundo: os manequins vestem como em Milão ou Paris e as máquinas soam como em Chicago, e para ver e ouvir não é preciso pagar bilhete. Os turistas vindos das povoações do interior, ou das cidades que ainda não mereceram estas bênçãos da felicidade moderna, posam para a foto, junto às marcas internacionais mais famosas, como antes posavam junto à estátua do grande homem na praça.

Beatriz Solano observou que os habitantes dos bairros suburbanos vão ao center, ao shopping center, como antes iam ao centro. O tradicional passeio do fim de semana no centro da cidade tende a ser substituído pela excursão a estes centros urbanos. Lavados, passados e penteados, vestidos com as suas melhores roupas, os visitantes vêm a uma festa onde não são convidados, mas podem ser observadores. Famílias inteiras empreendem a viagem na cápsula espacial que percorre o universo do consumo, onde a estética do mercado desenhou uma paisagem alucinante de modelos, marcas e etiquetas.

A cultura do consumo, cultura do efêmero, condena tudo ao desuso mediático. Tudo muda ao ritmo vertiginoso da moda, posta ao serviço da necessidade de vender. As coisas envelhecem num piscar de olhos, para serem substituídas por outras coisas de vida fugaz. Hoje a única coisa que permanece é a insegurança, as mercadorias, fabricadas para não durar, resultam ser voláteis como o capital que as financia e o trabalho que as gera.

O dinheiro voa à velocidade da luz: ontem estava ali, hoje está aqui, amanhã, quem sabe, e todo trabalhador é um desempregado em potencial. Paradoxalmente, os shopping centers, reinos do fugaz, oferecem com o máximo êxito a ilusão da segurança. Eles resistem fora do tempo, sem idade e sem raiz, sem noite e sem dia e sem memória, e existem fora do espaço, para além das turbulências da perigosa realidade do mundo.

Os donos do mundo usam o mundo como se fosse descartável: uma mercadoria de vida efêmera, que se esgota como esgotam, pouco depois de nascer, as imagens que dispara a metralhadora da televisão e as modas e os ídolos que a publicidade lança, sem tréguas, no mercado. Mas a que outro mundo vamos nos mudar? Estamos todos obrigados a acreditar no conto de que Deus vendeu o planeta a umas quantas empresas, porque estando de mau humor decidiu privatizar o universo?

A sociedade de consumo é uma armadilha caça-bobos. 

Os que têm a alavanca simulam ignorá-lo, mas qualquer um que tenha olhos na cara pode ver que a grande maioria das pessoas consome pouco, pouquinho e nada, necessariamente, para garantir a existência da pouca natureza que nos resta.

A injustiça social não é um erro a corrigir, nem um defeito a superar: é uma necessidade essencial. 

Não há natureza capaz de alimentar um shopping center do tamanho do planeta. 

ATENÇÃO: OFICIAIS DE JUSTIÇA!

NÃO DEIXE QUE NINGUÉM DECIDA POR VOCÊ. 
COMPAREÇA NO SALÃO DO JÚRI DA COMARCA DE SANTOS, NO PRÓXIMO DIA 15 DE ABRIL, ÀS 09:30 HORAS PARA DISCUSSÃO E DELIBERAÇÕES SOBRE A CRIAÇÃO DO SINDICATO DOS OFICIAIS DE JUSTIÇA - INTERIOR.

sábado, 11 de abril de 2015

Extrema direita cresce, envenena debate político e coloca em xeque avanços democráticos e dos direitos humanos






Quem acha o golpismo pequeno e o extremismo minúsculo, se esquece de que eles jamais precisaram de maioria para prevalecer.



Depois do dia 15 de março, há uma nova manifestação de direita convocada para o dia 12 de abril.

Há quem argumente que tais protestos devem ser encarados como normais, pois o golpismo e o extremismo são minoritários.A maioria dos que foram às ruas no dia 15 está apenas farta de "tudo isso".


Parece uma constatação bastante óbvia e inquestionável, principalmente se acompanhada de um inaceitável desconhecimento histórico de como funcionam o golpismo, a direita e seu extremismo.

Tudo parece normal quando se esquece o que aconteceu no Brasil em 1937, 1954 e 1964, quando o golpismo de uma minoria tomou o poder. 
 
Apenas em 1954 o golpismo foi derrotado, ainda assim às custas do suicídio de Vargas.

Fossem os golpistas maioria, eles não precisariam de golpismo algum.
 
Ganhariam eleições. 
 
É próprio do golpismo e inerente à sua definição que ele signifique que governantes eleitos ou mesmo um regime político constituído por uma maioria seja pisado como a um verme por uma minoria ensandecida.

É próprio do golpismo tomar o poder enquanto minoria e usar a força justamente por faltar-lhe o mínimo consenso.

É próprio do extremismo, por sua vez, que ele ganhe terreno não por ter se tornado majoritário, mas por não contar com quem imponha resistência à altura a esses grupos de agressores.

Fossem os golpes majoritários, eles não precisariam, em sua maioria, que militares apontassem suas baionetas para massacrar adversários.

Tivessem sido os nazistas majoritários, eles não teriam se valido do incêndio do palácio do Reischtag, o parlamento alemão, em 1933, para a sua ascensão definitiva ao controle do Estado.

Se o golpismo precisasse mesmo ser majoritário e o extremismo benquisto, a Espanha não teria amargado décadas de franquismo.

No Chile, a insatisfação contra Allende teria aguardado a eleição seguinte para se manifestar. Augusto Pinochet sequer seria aceito por qualquer partido decente, nem ganharia mais que um punhado de votos.

O presidente João Goulart era muito popular em 1964, muito mais que a presidenta Dilma é no atual momento. De cada 10 brasileiros, apenas 2 reprovavam o governo Jango.

Quem acha o golpismo pequeno e o extremismo minúsculo se esquece de que eles jamais precisaram de maioria para prevalecer. Sempre se valeram não de grande adesão, mas apenas de uma grande insatisfação e de uma imensa anomia.

Insatisfação e anomia; revolta e decepção; a intolerância de uns e a indiferença de muitos - bastam tais ingredientes para que a direita e mesmo seus extremistas ameacem tomar conta da situação.

O rumo de manifestações políticas de massa é sempre dado não pela média dos que dela participam, mas pelas iniciativas dos que as convocam e conduzem.

O que se viu no dia 15 de março e se verá reeditado no dia 12 de abril são manifestações de insatisfeitos liderados por grupos de direita e alguns de extrema direita.

Golpismo e extremismo prosperam quando as pessoas passam a acreditar que sua participação vale pouco; que seu voto vale nada; que seus líderes são fracos ou os abandonaram.

O poder de grupos direitistas, alguns de caráter extremista - reacionários em suas concepções, agressivos em seus discursos, violentos no confronto com adversários - cresce à medida em que aumenta a insatisfação não apenas com os governos, mas com a política, com as instituições de uma democracia ainda pouco participativa e com novos direitos que trouxeram para a sala de estar da cidadania aqueles que sempre foram tratados a pontapés.

Não à toa, o ódio dos extremistas orienta-se a abominar direitos que tornam regra proteger e incluir setores excluídos. Setores que sempre foram tratados como marginais.

O extremismo é apenas a forma mais obtusa de transformar meticulosamente a frustração em revolta contra partidos, contra instituições democráticas e contra grupos e pessoas que pensam diferente, de modo a criminalizá-las e a buscar exterminá-las política ou mesmo fisicamente.

Faz parte da lógica do extremismo disseminar um sentimento - este sim, muito popular - de que as instituições estão podres, de que os partidos são todos organizações falidas e que eleições não passam de enganação.

Quando um raciocínio dessa espécie a muitos também parece uma constatação óbvia, é sinal de que palavras como democracia e direitos humanos estão em baixa e que seu oposto, o extremismo, mesmo minoritário em termos de adesão explícita, está em alta e com poder de iniciativa.

A História é farta de exemplos de como coisas vistas por muitos como normais reproduzem fenômenos políticos da pior espécie. Fenômenos que, de início, afiguram-se tão estúpidos que muitos consideram que não se deveria dar a eles qualquer relevância.

O grande problema é que, quando eles se tornam riscos óbvios e incontestáveis, aí já pode ser tarde demais.

Um país que conhece minimamente sua própria História não deveria jamais admitir que manifestações comandadas por grupos explicitamente golpistas e extremistas sejam consideradas normais, democráticas e inofensivas.

O desrespeito ao voto, ao devido processo legal e aos direitos humanos não é algo normal, não é nada democrático e está longe de ser inofensivo. Merece o mais ferrenho combate com as armas da crítica, antes que essa seja ameaçada pela crítica das armas.


(*) Antonio Lassance é cientista político.