Na
semana passada ocorreu um momento significante para a memória sobre o período
ditatorial e o reconhecimento do impacto político e social da herança
autoritária que persiste na atual democracia. Trata-se do encontro dos
familiares de mortos e desaparecidos políticos e demais perseguidos pela
ditadura com a Comissão Nacional da Verdade, em São Paulo, no dia 11 de
junho. O evento marcou a possibilidade de uma nova abordagem da
responsabilização do Estado sobre os crimes da ditadura e uma nova
compreensão da herança autoritária assumida pela democracia.
Na reunião
da Comissão Nacional da Verdade com os familiares, como foi nomeada,
estiveram presentes cinco dos sete membros da Comissão (Gilson Dipp,
José Carlos Dias, Maria Rita Kehl, Paulo Sérgio Pinheiro e Rosa Maria
Cardoso da Cunha) e cerca de 40 parentes de vítimas e perseguidos da
ditadura. Não faço aqui um relato da reunião, a qual me pareceu um passo
importante de participação dos familiares na pauta dos trabalhos da
Comissão, mas chamo a atenção para alguns aspectos observados que
evidenciam as relações políticas e o grau de nossa democracia. A reunião
transcorreu em um clima de respeito e também de cobrança. Os
familiares, por um lado indicaram a esperança de uma nova postura do
Estado com a criação da Comissão e, por outro, demonstraram a angústia e
a ausência de esferas públicas nas quais pudessem, nestes 25 anos de
democracia, expressar suas demandas e construir as narrativas sobre a
experiência vivida.
Houve,
depois da entrada de civis no governo e da promulgação da Constituição
em 1988 somente dois momentos nos quais o Estado brasileiro reconheceu a
responsabilidade pelas graves violações de direitos: o primeiro ocorreu
com a Lei 9.140, de 1995, de reconhecimento dos mortos e desaparecidos
políticos, autorizando a indenização de seus familiares. Os parentes das
vítimas tiveram que entrar com os pedidos de reconhecimento junto ao
Executivo e, indicando a limitação do reconhecimento de sua condição,
tiveram que provar ao Estado que seus entes foram assassinados ou
desaparecidos por aquele mesmo Estado, o qual tem e deveria acessar em
seus arquivos as provas dos fatos. Ao contrário, o ônus coube às
vítimas. Os familiares dos desaparecidos, ao final do processo, além da
indenização, recebiam um atestado de óbito sem a causa da morte e a data
certa do ocorrido. De certo modo, ao reconhecer a responsabilidade, o
Estado desaparecia mais um pouco o corpo do opositor da ditadura. Sem a
apuração das circunstâncias do desaparecimento, a localização do corpo e
a responsabilização pelo crime, a história do desaparecimento permanece
velada e esquecida nos arquivos mais escondidos das Forças Armadas.
No segundo
momento de reconhecimento da responsabilidade pelos crimes da ditadura, o
Estado brasileiro criou, em 2002, a Comissão de Anistia aos perseguidos
políticos. Nascida com a interpretação de que a indenização seria
concedida com base nos danos trabalhistas, a responsabilização seguiu
uma lógica de discriminação social e de classe. Um dia preso nas
dependências da repressão política apresentava, segundo a Lei, um valor
indenizatório diferenciado para um juiz e outro para um operário, mesmo
tendo sofrido as mesmas violações. Demonstrando ambiguidade e vacilo na
política de memória do Estado, a Lei de criação da Comissão de Anistia
não utilizou o termo “vítima” para se referir aos que sofreram
perseguição política, indicando, nos parece, uma limitação na
compreensão de como um Estado democrático deve lidar com as violações de
direitos.
Sem dúvida
que estas duas leis de reconhecimento e responsabilização do Estado,
apesar de seus limites, significaram avanço, inclusive para as vítimas,
evidenciado no apoio e em algum modo de participação dos movimentos de
familiares em ambas as instituições. Contudo, e este é o fenômeno que
nos interessa nesta análise, tais atos se inscreveram tanto como
políticas de memória, quanto em uma política de silêncio. Em ambas, na
Comissão de Mortos e Desaparecidos e na Comissão de Anistia, foram raros
os momentos em que as vítimas puderam construir narrativas sobre a
violência sofrida e o modo como compreendiam a história do país.
Normalmente, a relação das vítimas se deu por meio de frios papéis de
encaminhamento dos pedidos nos quais se inscreviam tentativas de
escritas daquilo que não podia ou não devia ser narrado em público. A
negação às falas dos que resistiram à ditadura e à fala de seus
familiares, que resistiram à imposição do silêncio na democracia, ficou
explícita na construção simbólica de que houve no país uma guerra entre
dois lados “demoníacos”. Construção negacionista da história de
resistência legítima a um estado ditatorial que voltou a ser veiculada
no início dos trabalhos da Comissão Nacional da Verdade.
Na reunião
dos familiares com a Comissão da Verdade no último dia 11 de junho, o
discurso de negação da repressão política contra oposicionistas foi
categoricamente recusado pelos comissionários, representando positiva
sinalização no sentido de desvelar a história do aparato repressivo da
ditadura.
Apesar do
pouco tempo para a escuta da narrativa dos familiares, o que deverá ser
repensado para os próximos encontros, houve espaço para o depoimento de
uma jovem, neta de Heleny Guariba (desaparecida desde 1971), de extrema
significância para pensarmos qual verdade precisa ser procurada pelos
trabalhos da Comissão. Tomo a liberdade de citar parte do conteúdo e com
ela encerro este artigo, diante da certeza de que a nova geração, a dos
esculachos, expressa o desejo de rompimento do silêncio imposto por uma
transição negociada e mantida com pouca escuta (por vezes nenhuma) dos
movimentos sociais:
“(…) o
Estado não tem o poder de estabelecer ou restituir minha paz familiar,
não tem o poder de me reconciliar com aqueles que me oprimem e oprimem a
sociedade, aqueles que reprimiram a possibilidade de um avanço social
dando o Golpe de 64 e que reprimiram e trucidaram a resistência à
ditadura.
(…) o Estado
não pode me dar a memória da avó que eu não tive, nem ao meu pai e ao
meu tio a memória da mãe que o Estado tirou a vida tão cedo, nem as
famílias que perdem seus pais e filhos diariamente na guerra do Estado
contra a pobreza, cujo pretexto, no presente momento, é a guerra, há
tanto perdida, contra o tráfico de drogas.
(…) minha
necessidade não é a de saber nas profundezas de que mares o corpo de
minha avó foi parar, minha necessidade de familiar de uma desaparecida
política e de cidadã é que o povo saiba o que aconteceu, por que
continua acontecendo, quem continua no poder, que sistema tem se
repetido e o que significa a impunidade”.
***
Edson Teles é
doutor em filosofia pela Universidade de São Paulo (USP), é professor
de filosofia política na Universidade Federal de São Paulo (Unifesp).
Pela Boitempo, organizou com Vladimir Safatle a coletânea de ensaios O que resta da ditadura: a exceção brasileira (2010), além de contar com um artigo na coletânea Occupy: movimentos de protesto que tomaram as ruas (2012). Colabora para o Blog da Boitempo mensalmente, às quartas.
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