Por Vladimir Safatle.*
Egito e
Paraguai não têm muita coisa em comum, a não ser a fragilidade de suas
democracias. Eis países que gostariam de se ver caminhando em direção à
consolidação democrática, mas que descobrem como tal caminho pode ser
atrapalhado, vejam só, pelas leis.
Certamente, uma afirmação dessa natureza será rapidamente contraposta pelos ditos defensores do Estado democrático de Direito.
Na verdade,
tais defensores querem nos fazer acreditar que as leis que temos devem
sempre ser respeitadas, sob o risco de entrarmos em situações de puro
arbítrio nas quais o mais forte impõe sua vontade. Eles esquecem como,
muitas vezes, criamos leis que visam permitir que grupos interfiram e
fragilizem os processos democráticos. Ou seja, leis que são, na verdade,
a mera expressão da vontade dos grupos sociais mais fortes.
Isso explica
porque a democracia, muitas vezes, avança por meio da quebra das leis.
Ela reconhece que ações hoje vistas como criminosas possam ser, na
verdade, portadoras de exigências mais amplas de justiça. Foi assim, por
exemplo, com as greves -compreendidas durante muito tempo como crimes, e
aceitas hoje como direito de todo trabalhador. Vale a pena lembrar
desse ponto porque vimos no Egito e no Paraguai situações exemplares do
uso da lei contra a democracia.
No Egito, um
tribunal constitucional dissolveu o primeiro Parlamento
democraticamente eleito da sua história por julgar inconstitucional uma
lei parlamentar que proibia membros do regime ditatorial de Mubarak de
participar de eleições. Não só a lei aprovada pelo Parlamento era justa,
como o ato de dissolvê-lo por julgar inconstitucional uma de suas ações
é claramente uma aberração. Mas tal golpe foi feito na mais clara
“legalidade” e sem nenhuma manifestação da comunidade internacional.
Já no
Paraguai, o Congresso votou o impeachment do presidente em um processo
sumário, que durou algumas horas e sob a acusação nebulosa de
incompetência (há de perguntar qual parlamentar escaparia de uma
acusação dessa natureza). Tal lei serve apenas para tornar o presidente
refém de um Congresso que, há mais de cem anos, representa as mesmas
oligarquias. Um processo sério de impeachment exigiria amplos direitos
de defesa e esclarecimento. Mas tudo foi feito “legalmente”.
Diga-se, de
passagem: até o golpe de Estado brasileiro (1964) foi feito
“legalmente”, já que o presidente do Senado, Auro de Moura Andrade,
declarou vacante a Presidência por Goulart ter “abandonado” o governo ao
procurar abrigo no RS, tomando posse o presidente da Câmara, Ranieri
Mazzilli.
O que demonstra como nem sempre estamos protegidos pelas leis.
Vladimir Safatle
é professor livre-docente do Departamento de Filosofia da USP, bolsista
de produtividade do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e
Tecnológico (CNPq), professor visitante das Universidades de Paris VII e
Paris VIII, professor-bolsista no programa Erasmus Mundus.
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