Negar a importância do poder estatal pode representar o esvaziamento do debate político
Por Cynthia Semíramis
De vez em quando, surgem teorias e práticas que pregam a
diminuição do poder do Estado. Foi o caso, alguns anos atrás, da
ascensão das ideias neoliberais, calcadas na intervenção estatal mínima
na economia. Atualmente, é possível identificar discursos defendendo
outra forma de diminuição do Estado, desta vez, desprezando a
instituição política do Estado em favor de outras instituições.
Tem sido cada vez mais comum ouvir ou ler frases como “o Estado tem
poder demais” e “precisamos fortalecer outras instituições”. Em parte,
essas afirmações derivam do desencanto com a política partidária, seja
por receio de corrupção, seja por não encontrar nela apoio a questões
importantes para determinados grupos, como a defesa de povos indígenas,
questões ambientais, combate ao racismo, ao machismo e à homofobia. Mas
tais ideias também derivam da ignorância em relação ao poder estatal e
das instituições que estão querendo valorizar.
Negar a importância do Estado como instituição que define as regras
que devem ser seguidas por toda a sociedade significa também esvaziar o
debate político. E, pior ainda, negar toda a construção histórica em
torno de direitos humanos em nome de instituições que, em sua maioria,
violam direitos.
O conservadorismo das instituições não estatais
Um dos problemas em relação a ampliar o poder das demais instituições
é imaginar que elas são semelhantes ao Estado, tanto em sua história
como estrutura. Assim, diminuir o poder estatal significaria
simplesmente transferi-lo para outra instituição mais adequada aos
próprios valores. Porém, as instituições não são intercambiáveis entre
si: elas são diferentes em sua essência, e atuam em esferas diferentes. O
que têm em comum é o poder calcado nos costumes e na moral, procurando
induzir as pessoas a agir de determinada forma. Religião, família,
escola são algumas das instituições com maior poder em nossa sociedade.
Nessas instituições, as regras a respeito de qual ação é permitida ou
proibida são bastante rígidas e claras, baseando-se na tradição e nos
costumes. O efeito dessas regras é bastante conservador. Procura-se
manter as tradições mesmo que, para isso, a vontade dos indivíduos deva
ser anulada. A liberdade sexual e de costumes, o combate ao racismo, os
direitos de homossexuais, mulheres e crianças ainda são vistos com
desconfiança por essas instituições, e há uma pressão constante para se
voltar às tradições.
As mudanças de costumes são lentas, e muitas vezes só acontecem
porque o Estado interfere, criando leis que alteram a dinâmica da
instituição. A criação de uma lei para punir atos racistas tornou o
racismo socialmente inaceitável e criticado. A proibição do trabalho
infantil fez com que crianças passassem a ser vistas como sujeitos de
direito e pudessem estudar em vez de serem submetidas a trabalho
incompatível com sua idade. A aprovação do divórcio e posterior
equiparação da união estável ao casamento tirou milhões de casais da
clandestinidade, reconhecendo filhos e ampliando direitos como pensão em
caso de morte.
Construindo o Estado
O Estado é uma instituição que foi historicamente construída para se
sobrepor às demais instituições. Criado como alternativa ao poder
religioso medieval e como forma de unificar sistemas jurídicos e
políticos bastante diversificados, passou pelo fortalecimento da figura
do monarca, chegando ao Absolutismo, marcado pela frase de Luis XIV, “O
Estado sou eu”. Essa visão foi duramente criticada pelo Iluminismo e
completamente subvertida com as Revoluções Burguesas.
A ascensão da burguesia fez com que fosse modificada também a lógica
do Estado, reduzindo o poder da religião a ponto de se falar em Estado
laico e reduzindo o poder do monarca e da nobreza, a ponto de se
desenvolverem técnicas de ampliação da participação popular e implantar a
república.
Foram criadas novas leis, recusando privilégios da aristocracia e
incorporando valores burgueses em relação à propriedade e à democracia.
Apesar disso, inicialmente foram mantidos vários dos costumes das demais
instituições sociais, especialmente as regras da religião cristã em
relação à família, mantendo as mulheres subjugadas aos homens – e foi
necessária uma luta dentro da lógica dessas novas leis para quebrar esse
tipo de discriminação. Isso só foi possível porque há a possibilidade
de questionar e modificar costumes antigos por meio de lei, diminuindo o
poder de outras instituições para ampliar discursos de reivindicação de
participação política, direitos humanos e proteção a grupos
discriminados.
O Estado moderno se diferencia das demais instituições por ter criado
uma série de regras que limitam o seu poder e permitem o seu controle,
impedindo ou procurando evitar que esse poder seja usado contra a
sociedade. Existem a tripartição de poderes e um sistema de
balanceamento no qual se procura evitar a concentração de poderes na mão
de apenas uma pessoa – como era o caso do monarca no Absolutismo. Quem
faz as leis não é a mesma pessoa ou o mesmo grupo que julga os conflitos
causados pela lei. As regras devem ser leis claras e com a preocupação
de evitar conflitos sociais.
E o Estado tem um poder que as demais instituições não têm: o poder
de coerção, que consiste não só no monopólio do uso legítimo da força,
mas na capacidade de poder forçar a pessoa a agir de determinada forma.
Tem também o poder de criar e abolir crimes. Tem o direito de prender a
pessoa que comete um crime, limitando seu direito de ir e vir. Tem o
poder de obrigar as pessoas a pagar impostos, e a sofrer multa e sanções
caso não façam o pagamento. E tem o poder de obrigar crianças a irem
para a escola em vez de trabalhar, além da capacidade de punir quem
desrespeitar a lei e empregar crianças.
O Estado tem o poder de mudar a sociedade, reconhecendo identidades
historicamente discriminadas (como mulheres, pessoas negras e
homossexuais), garantindo direitos a elas e lhes concedendo uma
liberdade que elas não tinham em outras instituições. É importante
lembrar que o Estado interfere na vida privada para impedir que as
outras instituições pratiquem costumes que violem a lei, tais como
manter uma pessoa em cárcere privado, torturá-la ou espancá-la por não
ter seguido as regras dessas instituições.
Os problemas de desvalorizar o Estado
Abandonar a luta política e optar por desvalorizar o Estado significa
a negação de um processo de conquista de direitos de grupos
historicamente discriminados. As mulheres só obtiveram direitos porque
argumentaram pela igualdade com base nas regras do Estado moderno; de
outra forma, estariam ainda sendo proibidas de estudar, porque a
instituição família e a maioria das instituições religiosas consideram
que mulheres não precisam de educação quando sua função é ser apenas
mães e esposas. Da mesma forma, se hoje o racismo é combatido, o
casamento não é mais perpétuo e pessoas homossexuais têm seus direitos
civis reconhecidos, isso se deve à compreensão do papel do Estado nas
sociedades modernas: ele possibilitou a construção de um discurso para
reivindicar direitos e impedir que fossem restringidos por causa das
regras de uma ou outra instituição.
O que deveria ser o foco das demandas atuais é a ampliação desses
discursos para encaixá-los no Estado democrático de direito. Afinal, o
poder estatal permite estimular direitos sociais e forçar a mudança de
costumes de forma bem mais efetiva do que se utilizando de outras
instituições. Campanhas educativas são importantes, mas de impacto bem
mais lento do que a obrigação de cumprir a lei.
Outra questão importante é que, ao abandonar a pressão para mudanças
nas políticas estatais, abre-se espaço para que grupos que não sejam
pluralistas ocupem esse lugar. É possível ter um retrocesso nas
políticas de Estado, pois tais instituições irão impor as regras de sua
instituição a toda a população, e não haverá pressão popular para
impedi-las, posto que optaram por sair do debate político.
Se é uma instituição religiosa, o que se tem é a violação do Estado
laico. E esse é um ponto delicado: não há liberdade para as pessoas se
elas são obrigadas a seguir as regras de um grupo específico ao qual não
pertencem. Não se deve obrigar um protestante a seguir a doutrina
espírita nem um candomblecista a seguir a doutrina católica, nem um
reconstrucionista helênico a seguir a doutrina judaica. E não cabe ao
Estado obrigar ninguém a seguir as regras de uma determinada religião,
mesmo que seja a religião da maioria: a minoria deve ser respeitada e
não pode ser indiretamente forçada a obedecer as regras de instituição
alheia. Pelo contrário: cabe ao Estado proteger a religião da minoria,
impedindo que seus praticantes sejam perseguidos e impossibilitados de
realizar seus cultos.
Para um Estado que tem poder demais, é possível controlá-lo de modo a
impedir uma ditadura: pelo voto, pelo Judiciário, pela mídia, por
pressão de ativistas (e a internet tem sido bem utilizada para articular
ações), por interferência direta em políticas públicas. Nesse caso, a
sociedade se defende contra os excessos do Estado.
Porém, se a opção for pela transferência de parte desse poder a
outras instituições, não haverá Estado para impedir o massacre do
indivíduo discriminado em nome de regras medievais que violam direitos
humanos. Para defender a sociedade, há momentos em que é necessário
defender o Estado para preservar o Estado laico e para garantir a
autonomia das pessoas e o respeito aos direitos humanos.
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