Quando
destrói a escola pública, o Estado reacionário decide dificultar o
acesso do pobre à escola universitária pública, gratuita e de boa
qualidade, e ao fazê-lo procura reservá-la àqueles que puderam
frequentar cursos preparatórios de qualidade. Foto: arquivo
Por Roberto Amaral
O sempre mestre e sempre saudoso Evandro Lins e Silva lembrava-me a
força de bisturi da lógica de Anatole France desmontando o igualitarismo
farisaico do direito liberal:
“Em sua igualdade majestática a lei proíbe tanto ao rico quanto
ao pobre dormir embaixo da ponte, esmolar nas ruas e furtar pão”.
Os dois mestres e a sentença genial me vêm a propósito de telefonema
de prezada amiga e leitora, que me interpela pedindo justificativa para
as políticas de afirmação positiva:
“Se somos todos iguais, não seria uma discriminação contra os outros, o privilégio dado aos negros no acesso à universidade?”
Ora, não somos iguais, e uma das maiores farsas do direito de classe é
a afirmação, consagrada nas chamadas constituições democráticas, de que
‘todos são iguais perante a lei’, que só poderia ser aceita como
projeto de uma sociedade igualitária. Numa sociedade de classes, como a
brasileira, essa ‘igualdade’ formal, tomada ao pé da letra, significa
simplesmente a manutenção das desigualdades e o aprofundamento da
dominação dos pobres. Na verdade, somos desiguais (uns mais fracos
outros mais poderosos, uns mais aquinhoados outros menos aquinhoados,
uns ricos outros pobres – e, outros, miseráveis), e, por isso, a
igualdade só se busca quando os diferentes são tratados de forma
diferenciada. A formulação marxiana – ‘De cada um de acordo com suas
possibilidades, a cada um de acordo com suas necessidades’ – parece-me
a mais correta e a única de corte humanista. Não pode o Estado cobrar
de todos os mesmos deveres, nem oferecer a todos os mesmos direitos,
pois, dos poderosos, dos ricos, incumbe-lhe cobrar mais e aos mais
fracos, aos mais pobres, oferecer mais (porque deles, tomou e toma
mais).
Toma mais dos pobres, também, porque a estrutura tributária é injusta: penaliza o salário e protege o rendimento financeiro.
Mas, observe-se que, se a maioria da população legitimar um Estado
que de pronto consagre a desigualdade absoluta entre seus súditos,
legitimará a Pretória do Apartheid, legitimará o statu dos dalits, intocáveis, seres inferiores para 60% da população indiana. No mundo do homem, é desafio buscar a igualdade na desigualdade.
É farsa dizer que o filho do pobre, já inferiorizado em todos os
sentidos por ser pobre e arcar com todas as consequências daí
resultantes (moradia precária, má alimentação, baixa escolaridade
familiar etc.), que frequenta nossas péssimas escolas públicas de ensino
básico, fundamental e médio (quando delas não é afastado para
contribuir na composição do salário familiar), desaparelhadas
propositalmente desde os primeiros governos militares, é farsa dizer,
repita-se, que esse filho do pobre tem, no vestibular de acesso ao
ensino superior (e o vestibular já é em si uma consagração da
diferença) as mesmas oportunidades do rebento da classe média alta, que
estuda em escolas privadas e caras, equipadas com laboratórios e
bibliotecas, com acesso ao “cursinho”, a estudo particular de línguas e a
viagens internacionais de intercâmbio – e, com tudo isso e por tudo
isso (acrescente-se à lista a rede de contatos, importantíssima na nossa
cultura do favor), ingressa no mercado de trabalho muito mais tarde e
com preparo incomparável, numa disputa com só os seus pares.
O Estado (os teóricos do reacionarismo não são burros) quando destrói
a opção da escola pública, abastardando sua qualidade, está
conscientemente desaparelhando o pobre na disputa do mercado de trabalho
e impedindo sua ascensão social e a conquista da cidadania, pois
mercado e cidadania são reservados aos ‘mais iguais’, os filhos da
classe média alta. Quando o Estado põe esse pobre e esse rico “em
igualdade de condições” na disputa do que quer que seja, mas
principalmente na disputa de uma vaga na universidade pública, está
punindo o pobre. E quando digo o pobre, refiro-me, principalmente, aos
negros, porque no Brasil a pobreza tem cor. À nossa dívida pela
discriminação econômica, soma-se, como elemento ético, a dívida
impagável de brancos e escravocratas.
Quando destrói a escola pública, o Estado reacionário decide
dificultar o acesso do pobre à escola universitária pública, gratuita e
de boa qualidade, e ao fazê-lo procura reservá-la àqueles que puderam
frequentar cursos preparatórios de qualidade. A decisão da sociedade de
classes é essa: aos pobres a formação secundária de baixa qualidade que
não os capacita nem para o vestibular da universidade pública nem para o
mercado de trabalho, cada vez mais exigente; aos ricos a escola
universitária de qualidade, a carreira universitária, a pesquisa, as
grandes clínicas e os grandes escritórios, enfim, a reprodução do poder e
da dominação. É ou não é um sistema de cotas às avessas?
As universidades públicas, sejam estaduais, sejam federais – por
exemplo, a USP, a Unicamp, a UFRJ e outras que tais – são, a rigor, as
únicas que oferecem, na área técnica, laboratório, pesquisa e, quase
sempre, bolsas de iniciação científica, custeadas, é evidente, ora pelo
CNPq, ora pela Finep, ora pela Fundação de Amparo à Pesquisa do
respectivo estado. Aliás, as universidades públicas são responsáveis
por algo como 80% dos cursos (respeitáveis) da área técnica, como as
engenharias em geral, medicina, física etc. Por todas essas razões, seus
vestibulares são os mais procurados, e, por serem os mais procurados,
os mais difíceis. Ou seja, são acessíveis apenas aos vestibulandos mais
bem formados, filhos da classe média, de média para alta. Com esses
jovens evidentemente não podem concorrer os pobres egressos da escola
pública secundária, de baixíssima qualidade, restando-lhes as
inumeráveis espeluncas espalhadas pelas esquinas como os botequins, que
estão, no país inteiro, há décadas, imprimindo diplomas de ensino
superior sem serventia no mercado competitivo.
Mas quais são os cursos que lhes são reservados, aos pobres, na
escola privada? Os técnicos? Não. Esses são caros e o ensino privado é
um ramo da atividade comercial, que persegue o lucro (já há dessas
empresas com ações em bolsa!). Aos pobres são destinados os cursos que
não requerem laboratórios nem professores de tempo integral, que podem
ser dados em salas com mais de 50/60 alunos, cuja didática depende
exclusivamente de exposições do professor mal-remunerado correndo de uma
escola para outra, de uma aula para outra, para assegurar o salário
mensal. Depois de quatro anos de ‘estudos’ e muitas mensalidades e
matrículas pagas pelo esforço familiar, o jovem pobre sai da ‘faculdade’
com um canudo de advogado, de jornalista, de assistente social, disso
ou daquilo, e volta para seu empreguinho de origem, no comércio, na
indústria, onde puder. Doutor de canudo, anel, foto e festa de
formatura, mas sem qualificação e sem mercado. Enquanto isso, seu colega
(de geração) que conclui também o curso, mas ou na universidade pública
ou numa PUC, já se prepara, com bolsa, para o mestrado, já pensando no
doutorado no exterior. Ou já sai empregado, quando não começa a
trabalhar nos últimos semestres. Cedo, recomendado pela verdadeira grife que é o só nome de sua escola, já terá conhecido os primeiros estágios profissionais.
É o ensino na sociedade de classes.
A política de cotas visa a reduzir essa injustiça.
Os reacionários de
todos os quadrantes bradam que isso quebrará o ‘alto’ padrão do ensino.
A realidade – como sempre ela! – os desmente.
Os egressos da política
de cotas e de programas como o Pró-UNI têm-se revelado, no geral,
excelentes alunos.
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