O golpe
desferido contra o governo de Fernando Lugo é um importante sinal de
alerta para as democracias e governos populares do Cone Sul.
Quais as
razões para a sua imposição há nove meses do término do mandato popular
do Presidente eleito, em plena realização da Rio + 20, momento de forte
liderança internacional brasileira, ignorando solenemente o apelo e a
presença dos chanceleres da Unasul e Mercosul em território paraguaio,
bloco este com quem o Paraguai possuía, em 2007, 45% do seu comércio
exterior, sujeitando-se ainda à punição pela violação de suas cláusulas
democráticas, que vão da expulsão do Mercosul ao fechamento de
fronteiras e interrupção do fornecimento de energia, se tomarmos em
consideração o Protocolo de Ushuaia II, ratificado pelos poderes
executivos de todos os seus Estados?
O governo do
Presidente Lugo se elegeu com precária base parlamentar, em razão da
tardia adesão dos movimentos sociais ao processo eleitoral, apoiando-se
numa coalização anti-partido Colorado – partido este que governou o
Paraguai de 1947-2008 – onde destacou a presença do conservador
Partido Liberal. Durante sua gestão, incapaz de obter maioria
parlamentar, Lugo não pode avançar em promessas chaves de campanha que
confrontavam a oligarquia paraguaia, como a realização de uma reforma
agrária. Formulou para isto um plano modesto que se estenderia até 2023 –
baseado na eventual disponibilidade de créditos multilaterais e
dotações orçamentárias governamentais -, muito insuficiente para
enfrentar a forte concentração da propriedade da terra e sua conexão com
a grilagem. Segundo Idilio Mendez Grimaldi, 85% das terras paraguaias
estão nas mãos de 2% da população, a tributação corresponde a apenas 13%
do PIB e a contribuição da propriedade imobiliária é de 0,04% contra
rendas do agronegócio equivalentes a 30% do produto do país. A
incipiente implementação da reforma agrária foi ainda parcialmente
boicotada pela corrupção no INDERT, órgão encarregado de realizá-la.
Lugo ampliou
recursos com a revisão do tratado de Itaipú e no contexto do limitado
orçamento, propiciou conquistas para a população paraguaia como a
garantia de saúde publica gratuita e o estabelecimento do Tekoporá,
programa de renda mínima que alcançou aproximadamente 93 mil famílias,
gerando tensões com o congresso que quis lhe cortar os recursos e
respostas na mobilização popular para aprova-los. O governo estabeleceu
certa confrontação com a Monsanto no que tange a liberação de sementes
transgênicas, não autorizando o plantio de variações transgênicas de
sementes algodão, ainda que a plantação de soja transgênica, principal
cultivo de grãos do país, tenha permanecido amplamente liberada.
No que tange
a relação com os Estados Unidos, ganhou destaque a questão militar.
Em
setembro de 2009, Lugo não renovou o programa de cooperação estabelecido
na presidência de Nicanor Duarte que permitiria o ingresso em solo
paraguaio de 500 militares estadunidenses com imunidades diplomáticas
para treinamento operacional. Questionado sobre o episódio, o então
comandante das forças armadas Cíbar Benitez o minimizou e relatou haver
programas de cooperação militar permanentes com os Estados Unidos no
Paraguai para assuntos internos, como colaboração com atividades
policiais.
Cerca de um mês após esta recusa, Lugo trocou todo o comando
militar do Estado, em função de tentativa de golpe que havia sido
detectada.
O governo foi ainda assediado pela reunião de 21 generais
estadunidenses com a Comissão de Defesa da Câmara, em meados de agosto
de 2011, para a construção de uma base militar, que foi reivindicada
pelo líder da UNACE, dissidência do Partido Colorado e terceira força
parlamentar, como necessária para conter as ameaças representadas pela
Bolívia e Venezuela bolivarianas. Se rechaçou esta alternativa, por
outro lado, Lugo havia aceitado programas como a Iniciativa Zona Norte
- que permitia a ampla presença militar estadunidense em programas para
combater o crime organizado e de ajuda social sob controle da USAID – e
substituiu o Ministro da Defesa Luis Bareiro Spaini, que se opôs ao
programa, a pedido da Embaixadora dos Estados Unidos, Liliana Ayalde.
Este pequeno
histórico do processo paraguaio demonstra a limitação da presença do
governo Lugo no aparato de Estado paraguaio, sua forte penetração pelo
grande capital local e pelos interesses norte-americanos. Por que então o
golpe de Estado quando praticamente se encerra a experiência de um
tímido governo popular, arriscando as relações do país com seus vizinhos
regionais de quem depende tanto comercialmente e no plano energético?
Duas hipóteses complementares despontam com força:
a) O
golpe tem a função de criar o ambiente de terror para impedir que as
organizações populares e a Frente Guazu possam eleger um novo presidente
com forte base parlamentar capaz de respaldar mobilizações populares e
programas muito mais amplos. Para isso é fundamental destruir a TV
Pública – oásis de informação num ambiente midiático dirigido pelos
grandes proprietários donos de jornais e cadeias televisivas – fraudar
ou adiar as novas eleições;
b) O
golpe tem ainda o papel de modificar o tabuleiro geopolítico da região
criando no Paraguai – em razão de sua localização territorial
estratégica, disponibilidade de reservatórios de agua doce e de fontes
energéticas que afetam principalmente ao Brasil, Argentina, ou
proximidade das reservas de gás da Bolívia – uma fonte de contenção e
desestabilização dos governos de esquerda e centro-esquerda da região.
Tal projeto se articula fortemente com o imperialismo estadunidense e se
consolida com a instalação de bases militares no país. Só este vínculo,
combinado com o desespero da direita paraguaia poderia dar-lhe
imaginariamente a força suficiente para confrontar vizinhos regionais
muito mais poderosos.
O golpe de
Estado se estabelece no elo mais fraco da cadeia de governos
progressistas da região e sinaliza que as velhas estruturas da
dependência, que combinam as oligarquias locais com o imperialismo,
estão vivas. Elas querem condenar nossos povos ao subdesenvolvimento, à
pobreza e à extrema desigualdade de renda e riqueza, lançando-se contra
qualquer processo democrático que não seja simulacro ou teatro de
fantoches e proporcione avanços reais aos trabalhadores e às grandes
maiorias. Será tarefa das lideranças políticas e do pensamento social
ultrapassar estas barreiras na década que se inicia.
***
Carlos Eduardo Martins
é doutor em Sociologia pela Universidade de São Paulo (USP), professor
adjunto e chefe do Departamento de Ciência Política da Universidade
Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), coordenador do Laboratório de Estudos
sobre Hegemonia e Contra-Hegemonia (LEHC/UFRJ), coordenador do Grupo de
Integração e União Sul-Americana do Conselho Latino-Americano de
Ciências Sociais (Clacso) e pesquisador da Cátedra e Rede Unesco/UNU de
Economia Global e Desenvolvimento Sustentável (Reggen).
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