Esse tipo de sindicalismo calhorda nós já conhecemos muito bem ...
No contexto
da greve nacional dos professores tem se manifestado um debate no mínimo
curioso. Um certo sindicalismo que é a reapresentação grotesca do velho
sindicato ministerialista da época de Getúlio Vargas, tem apresentado o
argumento que a greve não é um instrumento legítimo de luta e que as
assembleias que estão na base de sua deflagração não são
“representativas”, colocando como alternativa a consulta eletrônica e os
plebiscitos.
Tal
argumento ignora, oportunamente, o fato de que esta greve tem uma
dinâmica própria e, em vários aspectos, distinta das outras experiências
grevistas vivenciadas pelos professores federais e que foram
responsáveis por inúmeras conquistas e importantes resistências. Já
começou bastante forte em 33 universidades e rapidamente ganhou a adesão
de mais de cinquenta universidades e instituições de ensino.
Sua
principal razão de ser pode ser encontrada nas trapalhadas do governo na
condução das discussões entorno da carreira docente, mas
fundamentalmente nas condições de trabalho que resultaram da proposta de
expansão materializada no REUNI. Nossa última grande greve foi em 2001 e
ninguém pode acusar, portanto, o ANDES-SN de não estar dispostos ao
diálogo, como demonstra a boa vontade de nossa entidade durante todo o
ano de 2011 na verdadeira comédia de erros que o Ministério do
Planejamento protagonizou.
Diante do
fato inquestionável da greve e de seus motivos, vendo as universidades
aderirem ao movimento mesmo naquelas unidades onde esse sindicalismo
neo-conservador tentou por todos os meios impedi-lo, esses senhores
lançam mão de um argumento que busca deslegitimar o movimento, ou seja,
ele seria resultado da ação de uma minoria (no caso da UFRJ, um dos
dirigentes do sindicalismo ministerialista não hesita em classificar os
dirigentes e grevistas como uma “militância paga”) que em assembleias
pouco representativas imporiam a greve à uma maioria que seria contra.
Pierre
Bourdieu afirmou certa vez que o que há de específico no campo da
política é a disputa pelo silêncio dos “profanos”, desta forma esses
senhores se consideram os porta-vozes daqueles que em silêncio e
ausência estão contra a greve, mas não dizem, enquanto os grevistas
seriam aqueles que reivindicam este silêncio como concordância. O
problema, portanto, passa a ser como averiguar estas suposições.
Enquanto o movimento docente, como base em uma experiência construída em
mais de trinta anos de resistência, luta e militância, procura realizar
isso através de reuniões de unidade, seminários, materiais impressos e
digitais, que levem ao conjunto dos professores os elementos para que
estes possam formar suas convicções para que em assembleias enfrentem as
alternativas e decidam pelos caminhos que devem trilhar; nossos
senhores do sindicalismo oficialista insistem que o mais democrático
seria uma consulta eletrônica na qual os professores deveriam dizer sim
ou não à greve.
Parece-me
que há aqui um importante tema a tratar. Com o fim do ciclo da
autocracia burguesa o debate centrava-se entre uma mera democracia
representativa e uma democracia participativa de forma que
questionávamos o fato que a mera manifestação da vontade pelo voto e a
eleição de representantes seria suficiente para se tornar o canal de
expressão da vontade e dos interesses dos trabalhadores e da maioria da
população em luta contra as demandas da ordem e dos poderosos interesses
de classe que ela manifestava.
Neste
cenário a defesa da democracia direta ou participativa procurava os
canais que fosse adequados à dinâmica da luta de classes naquele momento
colocada e insistíamos nas assembleias, nos comitês, nos conselhos, na
luta direta como nas greves, nas manifestações, nos atos públicos e na
organização política que fosse construída com base nesse princípio, ou
seja, dos núcleos de base e nas formas de controle das bases sobre suas
direções.
Em
contraposição a tudo isso o argumento da ordem era o do respeito às
instituições, aos sindicatos oficiais e atrelados, ao Governo e ao
Congresso, ainda que esses encouraçados de legalidade jurídica
carecessem de legitimidade política.
Interessantemente,
a ordem que derivou deste ciclo e que levou o PT ao governo, tem
transformado esses instrumentos de democracia participativa (o exemplo
mais contundente são os conselhos) em instrumentos de apassivamento. O
chamado “controle social” entendido no contexto das lutas populares como
forma da população controlar a elaboração e execução de políticas
públicas, como no caso do movimento sanitarista, se transforma em
“controle social” restritamente concebido como controle exatamente do
movimento para que não prejudique a implantação de políticas
privatizantes e mercantilizantes dos serviços essenciais como saúde,
educação, moradia, transporte e outros.
A
contradição entre “democracia” e “participação”, isto é, o paradoxo pelo
qual uma forma política que almeja ser da maioria ter que disciplinar a
participação para que a maioria de fato não governe, leva a retorno dos
instrumentos cada vez mais típicos da “representação” e não da
participação direta. Isso no contexto político geral se materializa no
fetiche do voto que como dizia o próprio Rousseau é o ato pelo qual um
povo que se ilude que é soberano transfere a soberania aos que de fato
Irão detê-la e governá-lo.
Mas, o
fetiche do voto vai além. Uma relação entre seres humanos se transforma
numa fantasmagórica relação entre coisas, dizia Marx, quando a relação
entre seres humanos mediada por coisas eleva esta mediação ao papel de
protagonista. Assim como na relação mercantil, esvaziasse o valor de
uso, aquele conteúdo que está relacionado a satisfação das necessidades
humanas, revelasse como fundamental o valor de troca como expressão do
valor, do trabalho abstrato.
Assim, não
são mais as demandas reais, os interesses de classe e suas contradições
essenciais com a produção e reprodução social da vida que estão em jogo,
mas voto em si mesmo, o mento da decisão por este ou aquele
representante ou essa ou aquela decisão. Desta forma a política pode
prescindir daquele tormentoso e difícil momento do debate e ir direto ao
que interessa: o voto.
A mediação
dos meios eletrônicos só aprofunda o fetichismo, assim como o dinheiro
na forma mercadoria. Da mesma forma que o dinheiro nas relações de valor
permite que trabalhos concretos distantes se confrontem nas relações de
troca como iguais, soterrando suas diferenças concretas sob a
objetividade impalpável do valor, o voto soterra o conteúdo qualitativo
das diferenças e antagonismos, no ato em si do ato de votar. Você,
indivíduo encapsulado com suas convicções que lhe parecem pessoais mas
são de fato a expressão do senso comum construído por uma certa ordem
societária que lhe é imposta, se ilude de decidir porque aperta o botão
ao mesmo tempo que muitos outros.
No pavilhão
construído por ocasião da Rio + 20 e que recebe o nome sugestivo de
pavilhão da humanidade (financiado por empresários, a Fundação Roberto
Marinho e outros que pretensamente esperam representar a humanidade) há
uma instalação na forma de biblioteca e ao centro uma espécie de pendulo
fora do prumo. Para que o pendulo fique no prumo todos tem que apertar
vários botões simultaneamente. Segunda a representante da Fundação
Roberto Marinho, isso para “dar a sensação de que a saída depende de
todos nós”.
Trata-se
exatamente disso: uma sensação. Enquanto um número muito grande de
pessoas apertam seus botões para vivenciar a gratificante sensação de
que estão decidindo alguma coisa, um número bem pequeno de pessoas,
aquelas que controlam os verdadeiros botões que podem definir o prumo
das coisas, estão de fato decidindo.
A votação
virtual pode ser um bom instrumento eletrônico para realizar uma
consulta, mas de forma alguma pode substituir o processo político do
debate, do contraditório, do conhecimento de causa, da informação. Esse é
o mesmo processo pelo qual o fetiche da comunicação substitui a
comunicação propriamente dita.
É
significativo que aqueles setores que abandonara a democracia direta e
se renderem à democracia formal, que escondem o particularismo de seus
interesses sob o véu ideológico de uma universalidade abstrata, queiram
agora levar a mesma inflexão para a ação sindical.
A resposta,
no entanto, veio exatamente de onde deveria vir. Estes senhores que
passaram o ano passado inteiro em salas fechadas com o governo numa
atitude subserviente e vergonhosa (na prática como assessores do
Governo), e até o final do ano passado ainda não tinha uma proposta
integral para discutir a carreira além de alguns míseros pontos, estão
sendo varridos por assembléias nas próprias universidades que diziam
“controlar”, como foi na UFG, em parte da UFSCar, na UFBA e no UFC.
Nesta última com um requinte de poesia. Forçaram um plebiscito
eletrônico que ocorreu esta semana e o resultado foi esse: 883
professores favoráveis à greve e 379 contrários.
Saberemos
enterrar esses senhores fetichistas e seus fetiches na mesma cova onde
enterraremos um dia a raiz de tudo isso: a mercadoria, o Estado e o
capital. Como dizia Silvio Rodriguez: onde há homens não há fantasmas.
***
Mauro Iasi
é professor adjunto da Escola de Serviço Social da UFRJ, presidente da
ADUFRJ, pesquisador do NEPEM (Núcleo de Estudos e Pesquisas Marxistas),
do NEP 13 de Maio e membro do Comitê Central do PCB. É autor do livro O dilema de Hamlet: o ser e o não ser da consciência (Boitempo, 2002). Colabora para o Blog da Boitempo mensalmente, às quartas.
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