A compreensão coletiva dos conflitos sociais ficou cada vez mais reduzida à esfera cotidiana imediata, e os alvos das atividades de manutenção da ordem pública tornaram-se cada vez mais territorializados: não se trata mais de coibir atividades proibidas, mas de controlar áreas tidas como perigosas
Nos idos de 1969, a ditadura militar, por vários motivos − um dos quais
combater os assaltos a banco realizados por grupos de esquerda −,
promulgou o Decreto-Lei de Segurança Nacional. A consequência que mais
interessa aqui foi aproximar a violência política da violência comum,
fazendo o controle do crime violento sair das últimas páginas dos
jornais e se estabelecer como um problema central da agenda pública. É
verdade que, ao longo da redemocratização, a repressão à violência
criminal deixou de ser formulada como uma questão de defesa do Estado,
cuja crítica se fazia na linguagem dos direitos humanos, para ser
apresentada como um problema de defesa da sociedade, focalizando as
ameaças à integridade física e patrimonial contidas no desenrolar da
vida cotidiana. Entretanto, de lá para cá nunca mais o tema da ordem
pública deixou de ser tratado, pelas agências estatais e pela população
em geral, segundo um viés repressivo.
Esse foi o resultado mais amplo da aplicação daquela lei que, ao forçar
a convivência entre presos políticos e comuns, abriu para estes últimos
a possibilidade de legitimar suas atividades, mimetizando uma ideologia
revolucionária que eles não possuíam. O crime violento comum deixou de
ser entendido e praticado como um punhado de atividades desviantes,
meramente intersticiais e sem muitas relações umas com as outras, e
adquiriu certa autonomia e uma visibilidade que nunca havia tido. Data
dessa época a formação da Falange Vermelha, espécie de avó das facções
atuais. Pode-se dizer, portanto, que o que se conhece hoje como o
coração do “mundo do crime” foi uma decorrência, provavelmente não
intencional, das políticas institucionais de controle social produzidas
durante a ditadura militar.
Mas a sobrepolitização e a polarização definitiva da compreensão da
violência criminal como ameaça à continuidade das rotinas cotidianas,
endurecendo o debate sobre a ordem pública, só vieram a ocorrer bem mais
tarde, ao final do processo de redemocratização. Sua raiz está na
reação de uma parte da população carioca à decisão de Leonel Brizola de
proibir as grandes “operações” policiais nas favelas, cumprindo promessa
de campanha para sua primeira eleição ao governo do estado (1983-1986).
A medida, que visava coibir o arbítrio e a violência policial que
atingia os moradores daquelas localidades, foi entendida pelos
antibrizolistas como uma defesa da criminalidade, já àquela época
associada ao tráfico de drogas que então vinha se expandindo. Brizola
ganhou a eleição, mas pode-se dizer que os antibrizolistas estabeleceram
o quadro de referência básico das políticas atuais de manutenção da
ordem pública no Rio de Janeiro.
II
É claro que as atividades de comércio de drogas ilícitas para consumo
final, que tendem a ser realizadas em sua maioria em pontos fixos – as
chamadas bocas −, demandam a defesa armada dos respectivos territórios,
pois os varejistas não podem se esconder dos compradores nem contar com a
proteção regular (sublinhe-se o termo, para não esquecer o
espaço aberto pela corrupção policial) das instituições estatais.
Produziu-se assim uma dobradinha complexa e altamente rentável entre o
comércio de drogas ilícitas e o comércio de armas, fornecendo a base
material para a reprodução dos bandos de traficantes. De certa maneira,
um dos subprodutos dessa combinação foi levar a tradicional e
corriqueira “delinquência juvenil” a mudar de patamar, menos pelo
desenvolvimento histórico interno de uma subcultura de adolescentes que
desafiam os valores estabelecidos e mais por injunções
político-econômicas.
Essa mudança está associada a um debate público que passou a destacar e
enfatizar a dimensão repressiva da organização da vida social e,
ademais, a reduzir o entendimento dessa dimensão às disputas pelo
domínio do território da cidade. Nesse quadro, entra em funcionamento a
“metáfora (será apenas metáfora?) da guerra”, que mobiliza e reforça o
imaginário fragmentado da representação do Rio de Janeiro, o qual, em
certa medida, expressa a desigualdade da presença das instituições
estatais nos diferentes bairros e regiões. Ressalte-se que é absurda,
apesar de muito difundida, a ideia de “ausência do Estado” nas áreas de
moradia das camadas populares: não há qualquer questionamento ou ameaça à
soberania do Estado brasileiro em qualquer lugar. Aquela ideia só passa
a fazer sentido quando traduzida para uma afirmação sobre as variações
nas modalidades de presença das instituições estatais nessas
áreas quando comparadas a outras regiões da cidade. Aí estaria a ironia,
se não fosse uma tragédia: é a própria desigualdade na atuação do
Estado que produz a ideia de sua ausência.
III
Pode-se dizer que as transformações no debate público acompanham,
enquadram e orientam as mudanças na organização institucional da vida
social. A discussão coletiva nunca é apenas sobreas ações de pessoas e grupos, ela constituiessas
ações na medida em que lhes confere sentido. Há décadas grande parte da
atenção coletiva, das disputas que ela engendra e das práticas
institucionais associadas a essas disputas vem se reduzindo à repressão à
violência criminal embutida na esfera cotidiana. Lembremo-nos de que
isso não tem nada de natural ou obrigatório. O Brasil é testemunha de
conjunturas que enfatizaram o outro lado da coerção na produção da ordem
social, ou seja, houve momentos na história de nosso país que
privilegiaram processos de negociação, convencimento e aceitação
voluntária de valores e normas que regulam conduta. Mas isso é
incompatível com a “metáfora da guerra” que define a lógica das
discussões atuais, mesmo que ela venha se transformando, como é o caso,
em “pacificação”, que obviamente depende do resultado e é um sucedâneo
da guerra. Ainda que essa modificação esteja longe de ser desprezível,
na melhor das hipóteses, “pacificação” é a etapa final da guerra.
Em resumo, a maneira de produzir a regulação social e garantir a ordem
pública na atualidade, com foco no controle da “violência urbana” e não
em uma relação em que os vários segmentos sociais reconhecem seus
interesses e os negociam segundo regras compartilhadas, cria um enclave
de significado na compreensão coletiva das relações sociais. Os
diferentes são vistos como inimigos, o diálogo entre os segmentos
sociais se esgarça e o policiamento cotidiano não se realiza mais como
uma etapa indispensável, mas de importância secundária, relativa à ponta
final do estabelecimento da ordem social. A atividade policial assume
um protagonismo (para o bem e para o mal, como veremos) que pode ser
qualificado como descabido em uma democracia.
Por sua vez, é nesse quadro que se (re)organizam também as práticas
criminais, pois, transformados em inimigos, os criminosos adquirem certa
autonomia e espaço para se organizar. Não nos iludamos: nas últimas
décadas, o “crime” tornou-se uma referência amplamente compartilhada
pelas pessoas comuns, pelos próprios criminosos e pelos programas de
intervenção dos órgãos públicos e privados, referência negativa ou positiva
que articula a representação da “violência urbana”, essa representação
genérica do perigo a rondar as rotinas diárias. Tal compreensão funciona
como um sumidouro de grande parte das políticas sociais, as quais
deixam de ser aplicadas na tradicional linguagem dos direitos e passam a
ser justificadas como recursos de controle cotidiano do crime,
subsidiárias à repressão policial direta e indissociáveis desta. Há
tempos não há um programa de intervenção social, em qualquer nível,
público ou privado, que não esteja focado em alguma área de moradia
popular e não se apresente como recurso de combate ao crime. No Rio de
Janeiro de hoje, o mais evidente exemplo, apesar das dificuldades de sua
introdução efetiva, é a extensão “social” do programa das UPPs
“militares”, a qual, mesmo não estando a cargo da polícia, é pensada
como um reforço necessário de combate ao crime.
IV
Tudo isso tem sido desastroso para as camadas populares. Os processos
de territorialização do controle social descritos, que reduzem as
atividades de manutenção da ordem a uma questão de garantia da
continuidade das rotinas cotidianas, as afastam do debate público e
silenciam suas lideranças. As manifestações dos grupos subalternos são
desqualificadas, como se fossem emanações dos interesses do “crime”.
Perde-se de vista a distinção entre o domínio territorial que faz parte
das atividades direta ou indiretamente ligadas ao crime violento e o
restante dos moradores das localidades onde ele está instalado.
Nas favelas, os residentes estão encurralados entre o arbítrio dos
traficantes, as incursões policiais e a profunda desconfiança da
população da cidade que não mora nessas áreas. Onde as UPPs estão, os
confrontos diminuíram significativamente – mas a submissão dos moradores
comuns aos traficantes foi substituída pela submissão aos policiais,
que também são agressivos e arbitrários. De modo geral, os moradores
comuns preferem as UPPs, que de fato diminuíram as mortes, mas acham que
estão trocando seis por meia dúzia quanto ao desrespeito com que são
tratados. E permanece o medo do retorno ao domínio dos traficantes.
Nas periferias, o papel das instituições estatais na produção de uma
ordem pública que articula o território da cidade e as relações
cotidianas entre a repressão policial e o domínio do crime é ainda mais
complicado. Nelas, quase sempre constituídas por loteamentos
clandestinos ou irregulares, o controle social tem estado a cargo das
chamadas “milícias”. Compostas de policiais militares e civis, da ativa
ou reformados, bombeiros, informantes etc., elas se organizam como
máfias. Sob o argumento de combater o tráfico, os assaltos e roubos etc.
– o mesmo argumento do discurso oficial –, assumem o controle das áreas
onde atuam, cobrando pela oferta de “proteção” e monopolizando, à
força, certas atividades econômicas. Nesses locais, o confronto das
milícias com a polícia “regular” é quase inexistente, uma vez que elas são
a polícia. Em suma, nas periferias o controle social é exercido pelo
“outro lado” do Estado. Nesses espaços da cidade, os atores principais
do filme não são os policiais e os bandidos, como nas favelas, mas os
bandidos contra os bandidos.
V
A repressão violenta ao crime comum sempre foi uma delegação tácita
conferida à polícia por parte dos grupos dominantes. Mas foi durante a
ditadura que ela se institucionalizou e entrou no debate público,
explodindo como uma questão política candente em meados dos anos 1980.
De certo modo, essa nova maneira de tratar as atividades desviantes
acabou favorecendo uma profunda reorganização do mundo do crime, que
saiu dos interstícios da ordem social e adquiriu vida própria, auxiliada
pelas altas taxas de acumulação proporcionadas pela dobradinha tráfico
de drogas ilícitas/comércio de armas. No Rio de Janeiro, o “crime”
passou a se organizar como uma espécie de nebulosa com vários graus de
adesão a um núcleo duro, constituído como um padrão de sociabilidade
caracterizado basicamente por relações de força material (não apenas a
força física, mas também suas extensões na forma de armas cada vez mais
pesadas) na obtenção dos objetivos almejados.
A compreensão coletiva dos conflitos sociais ficou cada vez mais
reduzida à esfera cotidiana imediata, e os alvos das atividades de
manutenção da ordem pública tornaram-se cada vez mais territorializados:
não se trata mais de coibir atividades proibidas, mas de controlar áreas
tidas como perigosas – o que, inevitavelmente, afeta em especial os
territórios de moradia dos segmentos subalternos. Acrescente-se que o
termo controle, neste caso, tem vários sentidos, que só se resolvem
contextualmente e a partir de confrontos sempre mais violentos: controle
pela polícia “regular”, pelo “crime” ou pela “milícia”.
Tudo isso cria uma situação paradoxal. O crescimento econômico, apesar
das oscilações, vem beneficiando as camadas populares, sobretudo nas
últimas décadas. Mas, ao mesmo tempo, elas são castigadas por um intenso
processo de segregação socioterritorial que provoca um silenciamento
político nefasto para a democracia brasileira.
Luiz Antonio Machado da Silva
Ilustração: Jean Jullien |
Sindicato dos Servidores Públicos do Judiciário Estadual na Baixada Santista, Litoral e Vale do Ribeira do Estado de São Paulo
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sábado, 2 de março de 2013
O controle do crime violento no Rio de Janeiro
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