Ao
longo dos tempos, uma pequeno grupo sempre tenta apresentar como
interesse público o que é interesse privado.
UMA
SOCIEDADE DEMOCRÁTICA decente deveria ser baseada no princípio
do consentimento dos governados. Essa idéia ganhou
aceitação geral, mas pode ser contestada tanto por ser muito forte
quanto por ser muito fraca. Muito forte, porque sugere que as pessoas
devem ser governadas e controladas. Muito fraca, porque mesmo os
governadores mais brutais precisam, em certa medida, do consentimento
dos governados, e geralmente o obtêm não apenas à força.
Essas
questões foram tratados há 250 anos por David Hume em obra
considerada clássica. Hume estava intrigado com “a facilidade com
que os muitos são governados pelos poucos e a submissão implícita
com que os homens cedem os seus destinos aos seus governantes”.
Achava tal fato surpreendente, pois “a força sempre está do lado
dos governados”. Se as pessoas se dessem conta disso,
sublevar-se-iam e derrubariam seus governantes. Chegou à conclusão
de que o governo está baseado no controle de opinião.
Os
governados têm o direito de consentir, mas nada mais além disso. A
população é deespectadores, e não de participantes.
Assim é a arena política. A população deve ser inteiramente
excluída da arena econômica, na qual em grande parte se determina o
que acontece na sociedade.
Tais
questões só ganharam força especial a partir do primeiro levante
democrático na Inglaterra do século XVII. A agitação da época é
freqüentemente descrita como um conflito entre Rei e Parlamento, mas
na verdade parte significativa da população não queria ser
governada por qualquer dos concorrentes ao poder, mas “por cidadãos
como nós, que conhecem nossas necessidades, e não por fidalgos
e cavalheiros, que desconhecem as necessidades do povo e irão
somente nos oprimir”, como declaravam em seus panfletos.
Tais
idéias perturbaram os homens da melhor qualidade, como
eles mesmos se intitulavam. Estavam preparados para conceder direitos
ao povo, mas dentro de limites e ancorados no princípio de que “por
povo não queremos dizer a ralé confusa e ignorante”, explicavam.
Mas
como esse princípio fundamental da vida social poderia ser
reconciliado com a doutrina do consentimento dos governados,
doutrina que já não era então fácil de ser suprimida?
Uma
solução para o problema foi proposta por Hutcheson, famoso filósofo
moral contemporâneo de Hume. O filósofo argumentava que o princípio
do consentimento dos governados não é violado
quando os governantes impõem planos que são rejeitados pelo
público, se mais tarde as massas “estúpidas e preconceituosas”
consentirem calorosamente com o que foi feito em seu nome.
Podemos
adotar o princípio do consentimento sem consentimento.
Este
ponto foi aprimorado nos Estados Unidos. Na Guerra das Filipinas, a
imprensa afirmou que o americano estava massacrando os
nativos à moda inglesa. Para dar a isso um tom adequadamente
civilizado, um ensaísta americano engendrou seu próprio conceito
deconsentimento sem consentimento: “Se em anos vindouros [o
povo conquistado] vier a admitir que a disputa fora pelo mais alto
interesse de todos, será possível sustentar razoavelmente que a
autoridade foi imposta com o consentimento dos governados,
da mesma forma quando um pai impede a criança de correr para uma rua
movimentada”.
A
enorme indústria de Relações Públicas tem se dedicado ao controle
da mente pública, como os líderes do mundo dos negócios
descrevem a tarefa.
Alguns
anos depois de Hume e Hutcheson os descreverem, os tumultos da massa
popular na Inglaterra estenderam-se às colônias rebeldes da América
do Norte. Os Pais da Pátria (Founding Fathers)
também se sentiram perturbados, como os britânicos da
melhor qualidade e quase com as mesmas palavras. Como um
deles disse: “Quando menciono o público, eu quero dizer que aí
incluo só a parte racional. O vulgar ignorante é tão incapaz de
julgar os modos [do governo] como é incapaz de manejar suas rédeas”.
“O
povo é uma grande
besta que
precisa ser domada”, declarou Alexander Hamilton. Fazendeiros
rebeldes e independentes tinham de ser ensinados, às vezes à força,
que os ideais dos panfletos revolucionários não deveriam ser
levados demasiadamente a sério. O povo comum não poderia ser
representado por cidadãos como eles mesmos [do povo], que sabem de
suas agruras, mas por homens
responsáveis.
Os
Estados Unidos são certamente o caso mais importante para se
analisar, se quisermos entender o mundo de hoje e de amanhã. Uma
razão é o seu poder incomparável. Outra, as suas instituições
democráticas estáveis. Ao estudar história, não se pode construir
experimentos, mas os Estados Unidos estão tão próximos quanto
possível de um caso ideal de democracia capitalista
de Estado.
O
seu principal designer foi um astuto pensador
político: James Madison. Madison salientou, nos debates sobre a
Constituição, que se as eleições na Inglaterra “fossem abertas
a todas as classes da população, o patrimônio dos proprietários
de terra seria inseguro”. Uma lei agrária logo teria lugar, “dando
terra aos sem-terra”. A responsabilidade primeira do governo é
“proteger a minoria dos opulentos contra a maioria”, declarou
Madison.
Madison
previu que a ameaça da democracia provavelmente se tornaria mais
aguda com o tempo devido ao aumento na “proporção daqueles que
trabalham sob todas as agruras da vida e, secretamente, desejam uma
distribuição mais eqüitativa de suas bênçãos”. Madison temia
que esse contingente pudesse se tornar influente. Ele estava
preocupado com os “sintomas de um espírito de nivelamento”, que
já aparecera e advertiu sobre o “perigo futuro”, se o direito de
voto colocasse o “poder sobre a propriedade nas mãos dos que não
tinham parte nela”. Não se pode esperar que “aqueles sem
propriedade ou com esperança de adquiri-la concordem suficientemente
com seus direitos”, explicou Madison. Sua solução era manter o
poder político nas mãos daqueles que “procedem da e
representam a riqueza da nação, o conjunto de
homens mais capazes”, em suas palavras, com o povo fragmentado e
desorganizado.
O
problema do espírito de nivelamento surge também no
exterior, naturalmente. Aprendemos um bocado sobre a teoria
democrática realmente existente, vendo como tal problema é
percebido, especialmente em documentos internos secretos, nos quais
os líderes podem ser mais francos e mais abertos.
Tomem
o exemplo importante do Brasil, o colosso do Sul. Em visita
realizada ao país em 1960, o presidente Eisenhower assegurou
aos brasileiros que “o nosso sistema de empreendimento privado
socialmente cônscio beneficia o povo todo, donos e trabalhadores
igualmente. Em liberdade, o trabalhador brasileiro fica feliz, com as
alegrias da vida dum sistema democrático”.
Mas
os brasileiros reagiram rispidamente às boas novas trazidas pelos
seus tutores do norte. As elites latino-americanas são “como
crianças”, informou o secretário de Estado John Foster Dules ao
Conselho Nacional da Segurança, “praticamente sem capacidade para
autogoverno”. Pior ainda, os Estados Unidos estão “muito mais
atrasados que os soviéticos no controle sobre as mentes e emoções
de povos não-sofisticados”.
Mas
a grande besta é difícil de ser domada.
Repetidamente tem-se pensado que o problema foi resolvido e que o fim
da história foi alcançado, numa espécie de utopia dos
patrões.
Isso
lembra um momento notável das origens da doutrina liberal no começo
do século XIX, quando Ricardo e Malthus , entre outras grandes
figuras da economia clássica, anunciaram que a nova ciência tinha
provado, com a certeza das leis de Newton, que os pobres só eram
prejudicados quando tentávamos ajudá-los; e o melhor presente que
poderia ser oferecido às massas sofredoras seria libertá-las da
ilusão de que têm direito à vida.
Perto
da década de 1830 parecia, na Inglaterra, que tais doutrinas tinham
vencido. Mas surgiu um problema imprevisto: as massas
não-inteligentes começaram a inferir: “Se não temos o
direito de viver, então vocês não têm o direito de governar”. O
exército britânico teve de enfrentar tumultos e desordem, e logo
uma ameaça ainda maior se esboçou, quando os trabalhadores
começaram a se organizar exigindo leis de fábrica e legislação
social para protegê-los.
Jamais
houve e nem haverá motivo para acreditar que somos coagidos por leis
sociais misteriosas e desconhecidas, e não por decisões
simplesmente tomadas dentro de instituições sujeitas ao desejo
humano – instituições humanas que têm de
enfrentar o teste da legitimidade e que, se forem reprovadas, podem
ser substituídas por outras, mais livres e mais justas, como
freqüentemente ocorreu no passado.
Um comentário:
Belíssima exposição , uma aula precisa da história recente. Tomara seja assimilada por todos em nosso grupo ...
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