Por João Alexandre Peschanski.
Definimos aqui o
capitalismo como um sistema econômico em que o proprietário dos meios
de produção explora a força de trabalho de indivíduos destituídos dos
meios de produção. Por um lado, a desigualdade fundamental da relação
entre o capitalista e o trabalhador é indesejável, na medida em que, na
sua forma extremada, nega o acesso mínimo aos bens de subsistência a uma
parcela da população, refém das estratégias de lucro dos detentores dos
meios de produção, o que é moralmente injustificável, e instaura
geralmente um conjunto de mecanismos que recria e agrava as posições
desiguais dos capitalistas e dos trabalhadores em relação à satisfação
das necessidades básicas e à possibilidade de viver vidas dignas. Por
outro lado, os mecanismos básicos do capitalismo – a propriedade privada
dos meios de produção, o mercado de trabalho e a troca de produtos num
mercado visando ao lucro – são em geral relativamente funcionais e criam
as condições para que o capitalismo se reproduza. Por mais que haja
déficit ético e notórias ineficiências, o capitalismo é uma maneira
razoavelmente previsível e estável de organizar a produção e a troca de
bens e serviços: tanto os capitalistas quanto os trabalhadores têm
incentivos, variados e variáveis, para, no dia seguinte, manter o
sistema funcionando; existem mecanismos para estimular a inovação
tecnológica etc.
Agora, num
exercício de imaginação, assumamos que haja um projeto de economia ou
estejamos racionalmente convencidos de uma simulação de instituições
econômicas mais justa e eficiente, que seja robusto e sustentável. Ou
seja, aceitemos a proposta do socialismo como uma alternativa de
organização econômica que, com base em instituições diferentes das que
existem no capitalismo, seja possível, viável e atingível.
Aceitemos hipoteticamente
que há uma forma racional e qualitativamente melhor do que o capitalismo
para organizar a economia.
Uma primeira
dedução dessa hipótese é que, para os trabalhadores, é melhor estar no
socialismo do que no capitalismo. É de seu interesse objetivo estar numa
sociedade onde a satisfação social das necessidades se dá sem a
exploração de sua força de trabalho. Vimos aqui que
a posição na estrutura de classe determina em teoria os interesses
objetivos; é racional para o trabalhador acabar com a exploração de sua
força de trabalho, se uma alternativa melhor existir.
Uma segunda
dedução dessa hipótese é que, sem as condições apropriadas para uma
transição de baixo custo do capitalismo ao socialismo, é racional para
os trabalhadores preferirem lutar para “melhorar” o capitalismo do que
para “criar” o socialismo. (Especifico que, nesse exercício de
abstração, capitalismo e socialismo são definidos como modos de
organizar a economia qualitativamente diversos – isto é, para funcionar
de maneira estável, o socialismo depende da construção de novas
instituições.) Geralmente, transições são custosas: elevam o nível de
incerteza, desorganizam o funcionamento estável de instituições (mesmo
que diagnostiquemos essas instituições como injustas e ineficientes). Os
capitalistas têm, potencialmente, a capacidade real de tornar muito
custosa a transição do capitalismo para o socialismo, especialmente
porque controlam ainda no capitalismo o fluxo de investimentos, a
condição da produção futura. O desinvestimento leva possivelmente a uma
desorganização real da economia, em que a taxa de satisfação social das
necessidades é negativa, isto é, em que a população, que se emancipa da
exploração, está pelo menos por um tempo com um acesso às condições de
sua sobrevivência inferior ao que tinha enquanto era explorada. O
horizonte de que, no futuro, a situação vai efetivamente melhorar não é
necessariamente alentador para as pessoas que, no presente, não
conseguem sobreviver.
Uma terceira
dedução é que, de toda maneira, a existência de uma alternativa real ao
capitalismo empodera os trabalhadores. No capitalismo – sem a
existência de uma alternativa –, é mais provável que o trabalhador
esteja numa posição mais vulnerável na relação de força com o
capitalista do que o contrário, especialmente se não se está numa
situação de pleno emprego, numa sociedade onde a mediana da população
tenha acesso a uma qualificação profissional de bom nível e num espaço
em que haja alta densidade organizacional do trabalho. A alternativa
real permite ao trabalhador aumentar seu poder de barganha e, portanto,
melhorar no presente a qualidade de sua vida, claro que nos limites da
reprodução da exploração. O capitalista tem interesse em estabelecer um
compromisso com os trabalhadores, se ele tiver acesso a informações que
sinalizem que estes vão cumprir com o combinado, isto é, limitar-se a
exigir melhorias no contexto em que aceitam as regras necessárias para a
reprodução do capitalismo.
Na medida em
que estabelecemos que capitalismo e socialismo são sistemas
qualitativamente diversos, o melhor dos capitalismos nunca será tão
eficiente e tão justo quanto o socialismo. Por conseguinte, a existência
de uma alternativa real ao capitalismo não é suficiente para a criação
do socialismo, por mais que, como argumentei com Calnitsky no artigo
supracitado, a teorização da alternativa seja absolutamente necessária.
Nessa perspectiva, uma tarefa principal dos socialistas no capitalismo é
criar as condições reais para reduzir os custos da transição de um modo
de organizar a economia para outro, tema sobre o qual espero voltar em
um post futuro.
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João Alexandre Peschanski é sociólogo, coorganizador da coletânea de textos As utopias de Michael Löwy (Boitempo, 2007) e integrante do comitê de redação da revista Margem Esquerda: Ensaios Marxistas.
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