PAULO FREIRE
Toda bibliografia deve refletir uma intenção fundamental de quem a
elabora: a de atender ou a de despertar o desejo de aprofundar
conhecimentos naqueles ou naquelas a quem é proposta. Se falta, nos que a
recebem, o ânimo de usá-la, ou se a bibliografia em si mesma, não é
capaz de desafiá-los, se frustra, então a intenção fundamental referida.
A bibliografia se torna um papel inútil, entre outros, perdido nas gavetas das escrivaninhas.
Essa intenção fundamental de quem faz a bibliografia exige um triplo
respeito: a quem ela se dirige, aos autores citados e a si mesmos. Uma
relação bibliográfica não pode ser uma simples cópia de títulos, feita
ao acaso, ou por ouvir dizer. Quem a sugere, deve saber o que está
sugerido e por que o faz. Quem a recebe, por sua vez, deve ter nela, não
uma prescrição dogmática de leituras, mas um desafio. Desafio que se
fará mais concreto na medida em que comece a estudar os livros citados e
não só a lê-los por alto, como se os folheasse, apenas.
Estudar é, realmente um trabalho difícil. Exige de quem o faz uma
postura crítica sistemática. Exige disciplina intelectual que não se
ganha a não ser praticando-a.
Isto é, precisamente, o que a “educação bancária”[1]
não estimula. Pelo contrário, sua tônica reside fundamentalmente em
matar nos educandos a curiosidade, o espírito investigador, a
criatividade. Sua “disciplina” é a disciplina para a ingenuidade em face
do texto, não para a indispensável criticidade.
Este procedimento ingênuo ao qual o educando é submetido, ao lado de
outros fatores, pode explicar as fugas ao texto, que fazem os
estudantes, cuja leitura se torna puramente mecânica, enquanto, pela
imaginação, se deslocam para outras situações. O que se lhes pede,
afinal não é a compreensão do conteúdo, mas sua memorização. Em lugar de
ser o texto e sua compreensão, o desafio passa a ser a memorização do
mesmo. Se o estudante consegue fazê-lo, terá respondido ao desafio.
Numa visão crítica, as coisas se passam diferentemente. O que estuda
se sente desafiado pelo texto em sua totalidade e seu objetivo é
apropriar-se de sua significação profunda.
Esta postura crítica, fundamental, indispensável ao ato de estudar, requer de quem a ele se dedica:
a) Que assuma o papel de sujeito deste ato.
Isto significa que é impossível um estudo sério se o que estuda se
põe em face do texto como se estivesse magnetizado pela palavra do
autor, à qual emprestasse uma força mágica. Se se comporta passivamente,
“domesticamente”, procurando apenas memorizas as afirmações do autor.
Se se deixa “invadir” pelo que afirma o autor. Se se transforma numa
“vasilha” que deve ser enchida pelos conteúdos que ele retira do texto
para pôr dentro de si mesmo.
Estudar seriamente um texto é estudar o estudo de quem, estudando, o
escreveu. É perceber o condicionamento histórico-sociológico do
conhecimento. É buscar as relações entre o conteúdo em estudo e outras
dimensões do conhecimento. Estudar é uma forma de uma forma de
reinventar, de recriar, de reescrever – tarefa de sujeito e não de
objeto. Desta maneira, não é possível a quem estuda, numa tal
perspectiva, alienar-se ao texto, renunciando assim à sua atitude
crítica em face dele.
A atitude crítica no estudo é a mesma que deve ser tomada diante do
mundo, da realidade, da existência. Uma atitude de adentramento com a
qual se vá alcançando a razão de ser dos fatos cada vez mais
lucidamente.
Um texto estará tão melhor estudado quando, na medida em que dele se
tenha uma visão global, a ele se volte, delimitando suas dimensões
parciais. O retorno ao livro para esta delimitação aclara a significação
de sua globalidade.
Ao exercitar o ato de delimitar os núcleos centrais do texto que, em
sua interação, constituem sua unidade, o leitor crítico irá
surpreendendo todo um conjunto temático, nem sempre explicitado no
índice da obra. A demarcação destes temas deve atender também ao
referencial de interesse do sujeito leitor.
Assim é que, diante de um livro, este sujeito leitor pode ser
despertado por um trecho que lhe provoca uma série de reflexões em torno
de uma temática que o preocupa e que não é necessariamente a de que
trata o livro em apreço. Suspeitada a possível relação entre o trecho
lido e sua preocupação, é o caso, então, de fixar-se na análise do
texto, buscando o nexo entre seu conteúdo e o objeto de estudo sobre que
se encontra trabalhando. Impõe-se-lhe uma exigência: analisar o
conteúdo do trecho em questão, em sua relação com os precedentes e com
os que a ele se seguem, evitando, assim, trair o pensamento do autor em
sua totalidade.
Constatada a relação entre o trecho em estudo e sua preocupação,
deve-se separá-lo de seu conjunto, transcrevendo-o em uma ficha com um
título que o identifique com o objeto específico de seu estudo. Nestas
circunstâncias, ora pode deter-se, imediatamente, em reflexões a
propósito das possibilidades que o trecho lhe oferece, ora pode seguir a
leitura geral do texto, fixando outros trechos que lhe possam aportar
novas meditações.
Em última análise, o estudo sério de um livro como de um artigo de
revista implica não somente numa penetração crítica em seu conteúdo
básico, mas também numa sensibilidade aguda, numa permanente inquietação
intelectual, num estado de predisposição à busca.
b) Que o ato de estudar, no fundo é uma atitude frente ao mundo.
Esta é a razão pela qual o ato de estudar não se reduz à relação leitor-livro, ou leitor-texto.
Os livros em verdade refletem o enfrentamento de seus autores com o
mundo. Expressam este enfrentamento. E ainda quando os autores fujam da
realidade concreta estarão expressando a sua maneira deformada de
enfrentá-la. Estudar é também e sobretudo pensar a prática e pensar a
pratica é a melhor maneira de pensar certo. Desta forma, quem estuda não
deve perder nenhuma oportunidade, em suas relações com os outros, com a
realidade, para assumir uma postura curiosa. A de quem pergunta, a de
quem indaga, a de quem busca.
O exercício desta postura curiosa termina por torná-la ágil, do que resulta um aproveitamento maior da curiosidade mesma.
Assim é que se impõe o registro constante das observações realizadas
durante uma certa prática; durante as simples conversações. O registro
das idéias que se têm e pelas quais se é “assaltado”, não raras vezes,
quando se caminha só por uma rua. Registros que passam a constituir o
que Wright Mills chama de “fichas de idéias”.[2]
Estas idéias e estas observações, devidamente fichadas, passam a
constituir desafios que devem ser respondidos por quem as registra.
Quase sempre, ao se transformarem na incidência da reflexão dos que
as anotam, estas idéias os remetem a leituras de textos com que podem
instrumentar-se para seguir em sua reflexão.
c) Que o estudo de um tema específico exige do estudante que se
ponha, tanto quanto possível, a par da bibliografia que se refere ao
tema ou ao objeto de sua inquietude.
d) Que o ato de estudar é assumir uma relação de diálogo com o
autor do texto, cuja mediação se encontra nos temas de que ele trata.
Esta relação dialógica implica na percepção do condicionamento
histórico-sociológico e ideológico do autor, nem sempre o mesmo do
leitor.
e) Que o ato de estudar demanda humildade.
Se o que estuda assume realmente uma posição humilde, coerente com a
atitude crítica, não se sente diminuído se encontra dificuldades, as
vezes grandes, para penetrar na significação mais profunda do texto.
Humilde e crítico, sabe que o texto, na razão mesma em que é um desafio,
pode estar mais além de sua capacidade de resposta. Nem sempre o texto
se dá facilmente ao leitor.
Neste caso, o que deve fazer é reconhecer a necessidade de melhor
instrumentar-se para voltar ao texto em condições de entendê-lo. Não
adianta passar a página de um livro se sua compreensão não foi
alcançada. Impõe-se, pelo contrário, a insistência na busca de seu
desvelamento. A compreensão de um texto não é algo que se recebe de
presente. Exige trabalho paciente de quem por ele se sente
problematizado.
Não se mede o estudo pelo número de páginas lidas numa noite ou pela quantidade de livros lidos num semestre.
Estudar não é um ato de consumir idéias, mas de criá-las e recriá-las.
*
Escrito em 1968, no Chile, este texto serviu de introdução à relação
bibliográfica que foi proposto aos participantes de um seminário
nacional sobre educação e reforma agrária. Publicado na REA nº 33, fevereiro de 2004, disponível em http://www.espacoacademico.com.br/033/33pc_freire.htm
[1] Sobre “educação bancária”, ver Paulo Freire, Pedagogia do Oprimido, Editora Paz e Terra, Rio de Janeiro, 1977, 4ª ed., (N.E.).
[2] Wright Mills – The Sociological Imagination.
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