Nos
primeiros anos da Rússia soviética, parte dos revolucionários entendeu
que chegara a hora de defender a cultura popular contra o elitismo
predominante nos círculos endinheirados. Com a nova situação política, a
produção vinda diretamente do povo poderia afirmar-se em seu valor de
face, sem precisar passar pelos julgamentos de valor de uma pequena
elite que parecia sonhar com os salões culturais dos grandes centros
europeus. Imbuídos da certeza de que a hora do povo chegara, esses
representantes do gosto popular defenderam a riqueza da expressão em
suas formas naturais, sem os delírios formalistas que apenas
demonstravam um pedantismo acadêmico sem vida. Pois, tal como na
política, havia uma luta de classes na cultura e, tal como na política,
era hora de o povo fazer ouvir sua revolução.
Esse exemplo ocorrido há quase cem anos vale ainda hoje. Duas semanas atrás, CartaCapital
apresentou uma capa na qual levantava o problema do vazio da cultura
brasileira na última década. Claro que não se tratava de uma avaliação
extensiva a respeito da qualidade das produções artísticas. O problema
retratado era a impossibilidade de se construirem sistemas de conexão
entre obras, o que permitiria a artistas partilhar uma mesma tradição de
questões. Será sempre possível encontrar alguns grandes artistas
isolados em qualquer momento da história brasileira. É fato, porém, que a
cultura brasileira há tempos não consegue criar continuidades,
sequências de trabalhos que fazem a linguagem artística avançar e que
fornecem aos novos artistas um horizonte de exploração.
Certos críticos viram, no simples enunciado da questão, a prova de
que mais uma vez figuras imbuídas de profundo “elitismo cultural”
desconheciam a riqueza subterrânea da cultura popular brasileira. Esses
leem todo debate cultural sob as lentes de uma luta de classe simplória.
Para eles, por exemplo, o simples uso do conceito de “indústria
cultural” para falar sobre certas produções de música de massa, como o
funk do DJ Marlboro, já é prova do academicismo que não sabe o que se
passa na periferia.
Melhor seria, porém, se certa desconfiança fosse injetada no
uso dogmático de dicotomias como cultura de elite/cultura popular. Pois,
provavelmente, “cultura popular” seja um sintagma que não faz sentido
algum. Algo que tem valor apenas estratégico. Logo, a depender do
contexto, ele designa fenômenos completamente diferentes.
“Cultura popular” pode se referir, por exemplo, a tudo o que é
produzido por certos sujeitos que vivem em lugares onde acreditamos que o
povo está. Como se a geografia fosse elevada à condição maior de
valoração da produção estética. Alguém deveria lembrar que só faz arte
quem sabe tirar os pés do chão e parar de olhar o mapa da cidade.
“Cultura popular” pode também nomear certo folclore com aspirações de
fundação de nacionalidades, como se a própria produção do “folclore”
não fosse uma construção recente e interessada, com a idade do advento
dos Estados-Nação. Por fim, ela pode servir para a indústria cultural
vender seus produtos com label de autenticidade, um pouco como esses xampus de plantas amazônicas produzidos em escala industrial pela Natura.
Um debate liberado da “defesa da cultura popular” seria a primeira
condição para colocar de pé um processo de circulação entre formas
estéticas e tradições que hoje se encontra emperrado. O problema não é a
universidade que não ouve hip-hop (o que está longe de ser verdade),
mas a periferia que não tem o direito de conhecer John Cage. Um debate
sem a carta forçada da “cultura popular” seria também mais honesto, pois
não resvalaria no expediente fácil de criticar toda possibilidade de
julgamento de valor estético com anátemas vazios.
Ele poderia se
concentrar na estrutura dos julgamentos de valor na situação histórica
atual.
Vladimir Safatle
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