O antropólogo do Instituto Milenium afirma que Joaquim Barbosa ganharia “com certeza” no primeiro turno as eleições presidenciais de 2014. E votaria nele.
Por Miguel do Rosário, do blog O Cafezinho
Se havia alguma dúvida sobre a aliança espúria entre o STF e a mídia,
um texto publicado hoje no jornal da maior empresa de mídia no país
esclareceu tudo.
“Joaquim Barbosa seria meu candidato definitivo à presidência da
república e estou certo que ele venceria no primeiro turno”, afirmou
hoje, em sua coluna semanal, o antropólogo Roberto Damatta.
Repare bem a convicção! “Estou certo que ele venceria no primeiro
turno”. No primeiro turno! O artigo revela bem a triste patologia
golpista do conservadorismo brasileiro. Porque golpista? Admito que o
termo golpista permite interpretações bem diversas. Para a direita, a
esquerda é golpista. Para a esquerda, é a direita. No entanto, vejamos
quem é o candidato que, segundo o colunista do Globo, “venceria no
primeiro turno”. É um político? Pertence a partido? É ligado a alguma
legenda? Expressa claramente suas opiniões políticas ou ideológicas? A
resposta para todas as questões é: NÃO!
A asserção de Damatta flerta com uma gravíssima ilegalidade, ao
sugerir que Barbosa, representante máximo do Judiciário, ambiciona
controlar também o Executivo. Juízes estão proibidos,
constitucionalmente, de fazer política partidária, de maneira que a
declaração de voto em Barbosa, por parte de um antropólogo erudito, é,
para dizer o mínimo, de um mau gosto atroz e desastrado.
O pior mesmo é o “eu tenho certeza”, que revela apenas a arrogância
sem limites, à beira da esquizofrenia, de quem vê o jardim que
descortina da janela da Casa Grande como se contemplasse o mundo
inteiro.
Esses não são os únicos problemas do texto. Ele é um amontoado de –
como diria Manoel de Barros – “ignoranças” sobre política, ideologia e
história.
Concordo que não devemos tratar a dicotomia “direita” X “esquerda”
com um viés maniqueísta. Suponho que há canalhas de esquerda e pessoas
íntegras na direita. Alguns diriam que, se a pessoa é canalha, é porque,
na verdade, não é de esquerda, e que se é de direita, também não pode
ser tão legal assim. Não vou entrar nesse tipo de juízo.
Entretanto, quando se observa a dialética ideológica no mundo hoje,
não estamos avaliando a integridade ou valor subjetivo de ninguém, mas
apenas constatando a permanência de um conflito muito natural entre o
trabalho e o capital, que atravessa a história da humanidade desde seus
primórdios. Os termos “esquerda” e “direita” nasceram no âmbito da
revolução francesa, mas as lutas sociais vêm de muito mais longe.
O renomado historiador francês León Homo, que escreveu um dos maiores
clássicos sobre Roma antiga, “Les Instituitons politiques romaines”,
uma obra profundamente documentada e filiada aos critérios mais rígidos
da tradição historiográfica europeia, não hesita em dividir as facções
políticas da república romana em “esquerda” e “direita”. De fato, ao se
estudar a realidade daqueles tempos, não é difícil constatar que a
classe dos nobres, dos aristocratas, o partido dos “optimates”,
representava a direita romana; plebeus, estrangeiros, trabalhadores, o
partido dos “populares”, correspondiam à esquerda. Havia pessoas boas e
más em ambos os lados. A esquerda vivia infestada de traidores,
oportunistas, corruptos, espertalhões. A direita sofria com seus
ambiciosos, ególatras, corruptos. Entretanto, mesmo com os problemas de
cada lado, o partido popular, a esquerda romana, é que representava a
maioria (outra característica da esquerda), e a sua evolução significou a
modernização democrática da civilização romana. Não fossem as
espetaculares vitórias plebeias, Roma jamais teria chegado onde chegou:
seria consumida muito antes disso, de dentro. Foram as conquistas
trabalhistas e políticas plebeias que injetaram orgulho e autoestima no
povo romano. Foi assim na França napoleônica e foi assim nos Estados
Unidos. Sem conquistas sociais, trabalhistas, políticas, por parte de
sua classe trabalhadora, nenhum país consegue olhar a si mesmo com a
dignidade necessária, não consegue ser um país de verdade, permanece
apenas um casual aglomerado geográfico na periferia do mundo.
Damatta fala que a “esquerda tem sofrido de estadofilia, estadomania e
estadolatria. Daí a sua alergia a tudo que chega da sociedade e de seus
cidadãos”.
Pelo amor de Deus, quanta besteira! A esquerda quase sempre esteve
afastada do poder, no Brasil. Suas forças se desenvolveram no chão, na
terra, longe das benesses, das mordomias, do Estado e sua clientela.
Quem sempre sofreu de estadomania é a direita brasileira,
tradicionalmente dependente do Estado. Tanto é que, fora do Estado, não
consegue mais ganhar eleições, porque jamais aprendeu a botar a mão na
massa.
Agora, é evidente que a esquerda tem uma visão de Estado bem
diferente. A esquerda é o partido, em suma, dos pobres. Sim, porque a
direita brasileira, diferente de suas primas no primeiro mundo (que tem
um discurso nacionalista e, em alguns casos, trabalhista), é
fundamentalmente antipobre e antinacional. Os pobres precisam muito mais
do Estado do que os ricos.
Mas Damatta é um grande hipócrita. O jornal para o qual ele escreve
recebeu R$ 6 bilhões do governo federal apenas nos últimos 10 anos.
Acabamos de saber que o STF pagou a passagem de repórter do Globo para
acompanhá-lo à Costa Rica. Agora faça um exercício de imaginação e tente
adivinhar quanto dinheiro as organizações Globo já ganharam do Estado
nos últimos 50 anos? E a esquerda é que sofre de estadofilia?
Quando o Brasil convivia com juros estratosféricos, o Estado permitia
que a direita rentista ganhasse bilhões de dólares por dia, sem
trabalhar, sem fazer nada, mas é a esquerda, segundo Damatta, que sofre
de “estadolatria”…
O antropólogo acusa a esquerda de querer um “Estado forte”, como se
isso fosse algo errado. Na verdade, queremos um Estado justo para um
país que pretende se desenvolver. Compare o tamanho do Estado
brasileiro, em arrecadação fiscal per capita, em número de funcionários
por 100 habitantes, com os países desenvolvidos, e verá que temos um
Estado pequeno, insuficiente, pobre.
Sem contar que Damatta repete, qual papagaio terceiromundista, a
grande mentira americana contra o tamanho do Estado: os EUA tem um
Estado gigantesco, encarnado num aparato militar monstruoso. O Estado
americano, com suas armas de destruição em massa, com seus aparelhos de
repressão doméstica e externa, com seus serviços secretos e seus gastos
trilionários com guerras, não é um “Estado forte”?
Pior, Damatta envereda para o golpismo quando usa a sua coluna do
Globo para fazer proselitismo político com a imagem do presidente do
STF, Joaquim Barbosa. Toda aquela história de separação de poderes, de
Montesquieu, de democracia, vai pro ralo quando ele confere a um membro
do judiciário o poder de governar o Brasil. Sim, é o que ele faz,
simbolicamente, ao dizer que votaria em Barbosa e que este ganharia as
eleições no primeiro turno. Damatta chancela a não-política, e sacrifica
a democracia brasileira no altar sagrado de um STF submisso ao Globo. O
círculo se fecha. O Globo desqualifica a política e o congresso; exalta
e glorifica o STF, sobretudo os juízes que seguem a sua cartilha. E
daí se empolga e quer ver o presidente do STF como presidente da
República!
A promiscuidade do STF com a Globo atingiu as raias do insuportável. O
ex-presidente do STF, Ayres Brito, não esperou um dia: assim que saiu
do STF correu para assinar o prefácio do livro de Merval Pereira sobre o
mensalão – não teve nem a decência de aguardar o processo terminar;
participa regularmente dos programas da Globonews; e pleiteia, com ajuda
global, uma cadeira na Academia Brasileira de Letras. Joaquim Barbosa
foi o grande campeão do prêmio Faz Diferença, promovido pela Globo. Logo
depois correu para os EUA para receber outro prêmio, de outra
publicação direitista, a revista Time. Ele e o cozinheiro Atala. Quando
Lula ganhou o prêmio e saiu na capa da Time, a mídia esnobou e procurou
diminuir. Agora não. Barbosa viajou aos EUA para receber o dinheiro da
Times com passagens e hotel pagos pelo contribuinte.
Vejam só. Barbosa reclama (com razão) de juízes que produzem eventos
em ressortes com patrocínio de empresas, mas ele faz pior. Esses eventos
podem ser pouco éticos, mas pelo menos geram empregos no Brasil e tem
patrocínio privado. Barbosa vai aos EUA, promover uma revista
conservadora norte-americana, hospedar-se em hoteis estrangeiros,
gerando empregos lá fora, com dinheiro público. E tudo para ganhar um
prêmio que vai para subcelebridades e cozinheiros (com todo o respeito
aos cozinheiros!).
Esse é o candidato à presidente da república no qual Damatta votaria.
No artigo, o articulista faz uma tremenda confusão conceitual, sempre
para justificar seu próprio conservadorismo. Além de, naturalmente,
festejar a Ação Penal 470, sem sequer esconder a ideologia “justiceira”
que lhe serviu de base. Os réus do mensalão não foram condenados porque
cometeram os crimes dos quais foram acusados, mas porque a esquerda
“revelou-se incapaz de honrar com os papeis sociais cabíveis na
administração pública e dizer não aos seus projetos autoritários”. Que
significa isso? A linguagem remete aos articulistas do tempo do império,
mas o sentido é sinistramente claro. Não se culpam os réus, a culpa é
da esquerda! Toda a tradição do direito moderno, de que a culpa de um
crime é uma responsabilidade absolutamente individual, vai por água a
abaixo, e a Damatta tenta criminalizar genericamente todo um espectro
ideológico em função dos supostos crimes.
Vivemos tempos sombrios, em que poderosos atores políticos tentam a
todo custo levar a luta para fora do ringue democrático, onde a disputa
se vence pelo debate, na sociedade, no parlamento, nas urnas. Os velhos
setores do golpismo querem travar a luta exclusivamente em seus órgãos
de comunicação e no judiciário. E num gesto de comovente amor pela
democracia montesquiana, querem fazer do presidente do STF o presidente
da República!
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