Paralelos entre Argentina e Brasil
César Felício , no Valor Econômico | ||
Garantir o direito de um indivíduo ou de um grupo faz parte da
própria razão de ser da Justiça, em qualquer país que siga o modelo de
Montesquieu. Conflitos institucionais, antepondo o Judiciário aos dois
outros eleitos pelo povo, portanto, são previsíveis e pertencem à
crônica mundial. O caso dos últimos dias no Brasil, com seu jogo de
ameaças mútuas entre o Congresso e o STF, não foi o primeiro e não será
o último. O problema ganha gravidade quando o conflito entre Poderes é
um método de ação política e a desinstitucionalização é uma meta.
Na Argentina, a presidente Cristina Kirchner deve conseguir do
Congresso na próxima semana a aprovação de uma reforma do Judiciário
que encerra a sua breve experiência como poder independente (apenas
dezesseis anos).
Pela reforma, uma liminar contra o Estado só poderá ter vigência
caso a Presidência não recorra da decisão. Se recorrer, fica
automaticamente suspensa. Sem recurso, vale por seis meses no máximo,
prorrogáveis por outros seis.
Argentina é modelo de construção populista
Atualmente, os juízes são escolhidos ou removidos por um Conselho
Nacional de Magistratura, em que o governo tem cinco vagas em 13. O
número de conselheiros agora sobe para 19 e 12 das vagas serão
decididas em eleições diretas, disputadas pelos partidos. Como o quórum
para deliberação passou de maioria de dois terços para a absoluta,
basta ao governo eleger a metade dos conselheiros para ter controle do
órgão.
A reforma não fica nisso: foi criada uma nova instância do
Judiciário, que passa de dois para três foros antes da Corte Suprema.
Os futuros integrantes da nova jurisdição serão escolhidos pelo novo
Conselho de Magistratura politizado e rateado entre os partidos.
Esta será a quarta reforma do Judiciário na Argentina nos últimos
vinte e cinco anos. Foi para conter o leilão de vagas da magistratura
no Congresso, patrocinado por Menem, que surgiu na revisão
constitucional de 1994 a criação de um modelo autônomo, inspirado na
legislação francesa. A independência do Conselho já havia sido atenuada
na penúltima reforma, a de 2006, quando o peso do governo dentro do
colegiado aumentou e a Presidência ganhou poder de veto sobre a
indicação de juízes.
"Com certeza haverá uma nova reforma caso a oposição ganhe as
eleições presidenciais de 2015. A disputa pelo controle político da
Justiça é tão grande que impede qualquer modernização. Continua em
vigor uma norma que obriga a acondicionar os expedientes judiciais em
envelopes que são lacrados com costura de linha e agulha. "É uma regra
criada há 150 anos e ninguém se lembrou de revogá-la", disse o advogado
Rafael Gomez Diez, diretor de assuntos legais de uma petroleira.
O populismo na Argentina está longe de ser um termo pejorativo. É
condição assumida e reivindicada para si pelo kirchnerismo. Um dos
principais teóricos deste modo de atuar politicamente é o argentino
Ernesto Laclau, autor de "A Razão Populista" e um dos intelectuais
admirados por Cristina.
Laclau afirma que há pressupostos básicos para a construção de uma
liderança: a dimensão anti-institucional, em que a ordem usual das
coisas é desafiada; e a construção de uma fronteira interna ideológica,
em que a base sempre está mobilizada contra um inimigo. O vilão da
ocasião é o Poder Judiciário. No recente encontro de Cristina com a
presidente Dilma Rousseff, o secretário jurídico do governo argentino,
Carlos Zanini, fez a jornalistas brasileiros uma definição que
sintetiza esta lógica: "Quem está contra a reforma está a favor da
defesa dos monopólios".
"É preciso definir quem é o inimigo do povo e constantemente
renová-lo. O inimigo é necessário para a explicação de todos os
problemas. Sempre há uma corporação nova contra quem lutar. É um truque
velho. Repugnante mas eficaz", comentou o historiador Luis Alberto
Romero, que aposentou-se em 2011 do Conicet, uma mistura de IPEA com
CNPq da Argentina, protestando contra a politização do órgão.
No próximo dia 25, se completam dez anos da posse de Nestor
Kirchner, marido e antecessor de Cristina. Como o mandato da atual
presidente irá até 2015, serão, pelo menos, doze anos ininterruptos de
uma mesma hegemonia política, algo que não ocorre na Argentina desde
1930.
O primeiro inimigo do povo definido pelo kirchnerismo veio dos
quartéis. De forma espetacular, Kirchner colocou toda uma guarnição em
forma e disse, em cerimônia gravada: "Eu não tenho medo de vocês".
Com este gesto e outros, dos quais o mais concreto foi o de revogar
todas as normas que preservavam a impunidade dos líderes de um regime
militar genocida, Kirchner se apropriou de uma causa que até então era
transversal na sociedade argentina.
Em seguida surgiram como adversários os monopolistas do comércio, o
sistema financeiro internacional, o grande latifúndio e, já no governo
de Cristina, o conglomerado de mídia Clarín. No ano passado,
reingressou no repertório o nacionalismo, com o relançamento da
reivindicação sobre as ilhas Malvinas e a expropriação da YPF.
"O governo tem sido muito eficiente em levantar bandeiras
inquestionáveis. Quando o governo abraça causas que já fazem parte do
subconsciente argentino, a oposição não consegue estabelecer uma linha
congruente. O espaço para a construção de um discurso opositor
desaparece, ninguém pode se identificar com o inimigo", comentou Romero.
Ao mirar suar artilharia contra o Judiciário, Cristina não só remove
uma eventual barreira contra o exercício pleno de seu poder, mas
escolhe um alvo que só é avaliado positivamente por 27% da população,
segundo o informe Latinobarometro de 2011, da pesquisadora chilena
Marta Lagos. Adestrada a justiça, uma avenida se abriria para Cristina
para escolher a próxima vítima e controlar o jogo de 2015. Sua
debilidade é que há uma eleição parlamentar decisiva em outubro deste
ano. O coquetel de inflação alta, disparada do dólar, baixo crescimento
e pouco investimento sugere que o resultado é incerto.
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