Brasil - Vermelho - [Carlos Haag]
Nos anos 1950, cultura e política tiveram ligação de
mão dupla que interessava a artistas e ao Partido Comunista do Brasil
(PCB)
Na
década de 1950, o Brasil se modernizava e partidos e movimentos de
esquerda, bem como movimentos artísticos, acreditavam na possibilidade
de uma revolução brasileira, nacional-democrática ou socialista.
"Artistas e intelectuais tiveram um papel expressivo na construção da
utopia de uma 'brasilidade revolucionária', que permitiria realizar as
potencialidades de um povo e de uma nação", diz Marcelo Ridenti,
professor de sociologia da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).
Mas até hoje a compreensão dessa relação, entre política e cultura, é
complexa e inclui nomes de peso do panteão cultural que foram
comunistas, como: Jorge Amado, Nelson Pereira dos Santos, Caio Prado
Jr., Nora Ney, Dias Gomes, Jorge Goulart e Di Cavalcanti, entre outros.
"É um problema que não cabe numa equação simples que supõe a militância
comunista de artistas e intelectuais como parte de um desejo de
transformar seu saber em poder. Tampouco se pode supor que houvesse mera
manipulação dos intelectuais pelos dirigentes do Partido Comunista
Brasileiro [PCB]", explica o professor, que analisou a questão no
projeto Artistas e intelectuais comunistas na consolidação do campo
intelectual e da indústria cultural no Brasil. (Veja aqui)
"Num momento como o atual, em que as pesquisas evitam a politização
dos temas, é importante recuperar como cultura e política se aproximaram
num período turbulento como aquele, entre os anos 1950 e 1970", observa
o pesquisador. Segundo Ridenti, vários campos artísticos e intelectuais
consolidados a partir da década de 1950 só são pensáveis a partir das
lutas em seu interior, em que os comunistas desempenharam um papel
importante, por vezes levando os integrantes do PCB ou ex-militantes às
posições de maior reconhecimento ou prestígio. Muitos mudaram de
convicção política ao longo do tempo. A maioria fez uma autocrítica
sobre a sua atuação naquele período, mesmo os que continuaram se
identificando como de esquerda ou sendo comunistas. Houve também muita
reclamação posterior de que o partido mantinha com eles uma relação
"ornamental" ou "instrumental", ou seja, apenas para angariar prestígio
ou divulgar uma linha política, sem falar nas críticas sobre o
despotismo da direção, pronta a vigiar o imaginário dos militantes. "Só
em parte isso é verdade. Esses artistas só puderam conquistar posições a
partir do histórico de militância organizada, que, assim, esteve longe
de significar mera manipulação de seus artistas e intelectuais. Era uma
relação de mão dupla", observa o autor.
"De fato, o partido tinha uma linha política estreita e dogmática,
dava pouco espaço a seus intelectuais, quase não contribuía para pensar a
especificidade da sociedade brasileira, era marcado pelo centralismo e
por relações autoritárias. Mas havia contrapartidas que mantiveram os
artistas e intelectuais no partido apesar de tudo isso", fala Ridenti.
Para ele, não se deve caricaturar a ação cultural do PCB nos anos 1950,
um elemento expressivo constituinte da cultura brasileira. "A indústria
cultural ainda não estava de todo estabelecida no país. Com a
modernização, muitos artistas e intelectuais estavam em busca de um
espaço que não fosse a Igreja ou o Estado, então as principais
instituições organizadas nos tempos em que a universidade ainda estava
em crescimento", lembra. Na maioria vindos da classe média que se
expandia com a modernização do país, esses intelectuais não cabiam em
nenhum dos dois espaços. "O PCB foi uma chance de organização, um fórum
de debate cultural e político, que permitia ter acesso a uma rede de
revistas pelo Brasil e de contatos no exterior."
Legitimidade
A organização no partido dava legitimidade a certos grupos e
indivíduos que buscavam marcar posição (ou evitar perder prestígio) em
suas atividades. "O grande exemplo foi Jorge Amado, que teve seu talento
potencializado pela ligação com o PCB, cuja rede de contatos
internacionais facilitou a publicação de seus romances em vários países.
Por sua vez, ele emprestava o seu prestígio de escritor ao partido e
acabou sendo eleito deputado pelo PCB na Constituinte de 1946", conta
Ridenti. No exílio na França, a partir de 1948, aderiu ao movimento
internacional pela paz e ganhou notoriedade mundial. "Sem desmerecer o
talento de Amado, isso não teria acontecido se ele não fosse ligado ao
partido. Foi por meio dessa relação que ele teve acesso a uma rede de
contatos em diversos países da Europa e viu seus romances traduzidos em
vários idiomas em razão disso. O mesmo aconteceu com Nelson Pereira dos
Santos, que foi para a França e outros países com apoio do PCB e pôde
conhecer vários cineastas", diz o pesquisador.
Amado se transformou em divulgador do realismo socialista no Brasil e
mesmo quando se afastou do PCB nunca rompeu oficialmente com os
comunistas. "Ele saiu à francesa. Só ganhou autonomia como autor depois
de Gabriela, cravo e canela (1958)", fala Ridenti. As recompensas,
porém, colocavam dilemas para os artistas, que testemunhavam as
perseguições aos militantes dissidentes em escala internacional. "Eles
também se inseriam nas redes comunistas como reprodutores do pensamento e
da política produzida no centro, não como formuladores originais", nota
o autor. "Realmente, entre os anos 1940 e 1950, durante o realismo
socialista, houve um grande controle do partido sobre os artistas e
intelectuais brasileiros ligados ao PCB. Mas, no geral, essa relação foi
flexível, porque o partido não se interessava muito pela cultura, o que
explica por que, nos anos 1970, os artistas tentaram construir uma
política cultural para o PCB, que não tinha uma", lembra o historiador
Marcos Napolitano, da Universidade de São Paulo (USP), autor do
estudoPolíticas culturais e resistência democrática no Brasil nos anos
1970.
"Houve um entusiasmado movimento em que os intelectuais e o partido
convergiram para pensar um projeto revolucionário de nação. O partido e
os intelectuais de esquerda foram as grandes referências, por exemplo,
para os cineastas dispostos a fazer uma arte política e, em tese,
politizadora. Infelizmente, o partido poderia ter usado mais e melhor os
diagnósticos feitos pelos artistas", observa a socióloga Célia
Tolentino, da Universidade Estadual Paulista (Unesp), de Marília, que
estuda o tema em O pensamento social na literatura e no cinema, com
apoio da FAPESP. "Os artistas não eram inocentes úteis para o PCB,
também ganhavam com essa relação", nota Ridenti.
Autonomia
A maior ou menor autonomia do partido dependia da carreira paralela à
política. Figuras como Dias Gomes ou Oscar Niemeyer, para citar dois
exemplos, lembra o pesquisador, não sofreram nenhuma ingerência do PCB
em sua vida e obra. Essa influência atingia mais (embora de forma
desorganizada) os menos conhecidos. "Assim, se há casos em que o partido
foi autoritário com os artistas, fica a pergunta: por que muitos deles
seguiram na militância ainda assim? Havia o sentimento de pertencer a
uma comunidade que se imaginava na vanguarda mundial e podia dar apoio e
organização a artistas e intelectuais em luta por prestígio e poder,
distinção e consagração em seus campos de atuação, para si e para o
partido", diz o autor. Com esse movimento, os artistas comunistas
prepararam o terreno para a renovação futura. "O Cinema Novo, dos anos
1960, não seria possível sem a história anterior de disputas no campo do
cinema fomentada pelos cineastas comunistas", nota Ridenti.
"O mesmo vale para o desenvolvimento das novelas e da TV brasileira
como um todo. Após o golpe de 64, a hegemonia do PCB entre intelectuais e
artistas foi cortada e a partir de 1968 eles acabam abrigados na Rede
Globo, apesar de a emissora ser partidária da ditadura. Figuras como
Dias Gomes, Ferreira Gullar, Gianfrancesco Guarnieri, entre outros, além
de encontrarem proteção, viram a TV como uma continuidade programática,
acreditavam que era uma forma de falar com o povo. Por isso chegaram a
ser rotulados de 'vendidos', quando estavam continuando a sua política
cultural", diz o historiador Francisco Alambert, da USP, autor, entre
outros, do artigo Mario Pedrosa: art and revolution. "Aos poucos, com o
desenvolvimento da sociedade civil e da indústria cultural, as classes
populares vão assumindo sua voz, não precisando mais de intelectuais
falando em nome delas. A produção cultural vai se ligar ao mercado e ao
espaço universitário, esvaziando os partidos e a ideia de revolução,
rompendo a aproximação entre cultura e política", diz Ridenti.
"Não se pode, porém, esquecer o que houve no passado. É preciso
compreender os dilemas e contradições das figuras humanas daquele tempo
que não raro aparecem mitificadas nos escritos sobre elas", finaliza o
pesquisador.
Diário Liberdade
Nenhum comentário:
Postar um comentário