SEPARAÇÃO DE PODERES E A CONSTITUCIONALIDADE da PEC Nº 33/2011
Gilberto Bercovici e Martonio Mont’Alverne Barreto Lima[1].
Sobre o princípio sociológico da separação entre os poderes - " Era um sistema concebido menos para impedir as usurpações do
executivo do que para obstar as reivindicações das massas populares..." - Victor Nunes Leal,
ex-Ministro do STF, cassado pela ditadura militar.
A semana de 21 a 27 de abril movimentou
as instituições constitucionais brasileiras. No dia 24 o Min. Gilmar
Mendes deferiu medida liminar em mandado de segurança contra o Projeto
de Lei nº 4.470/2012 do Senado Federal, o qual estabeleceria “que a
migração partidária que ocorrer durante a legislatura, não importará na
transferência dos recursos do fundo partidário e do horário de
propaganda eleitoral no rádio e na televisão”.
A parte final da decisão entendeu que
“(i) a
excepcionalidade do presente caso, confirmada pela extrema velocidade de
tramitação do mencionado projeto de lei – em detrimento da adequada
reflexão e ponderação que devem nortear tamanha modificação na
organização política nacional; (ii) a aparente tentativa casuística de
alterar as regras para criação de partidos na corrente legislatura, em
prejuízo de minorias políticas e, por conseguinte, da própria
democracia; e (iii) a contradição entre a proposição em questão e o teor
da Constituição Federal de 1988 e da decisão proferida pelo Supremo
Tribunal Federal na ADI 4430. A aprovação do projeto de lei em exame
significará, assim, o tratamento desigual de parlamentares e partidos
políticos em uma mesma legislatura. Essa interferência seria ofensiva à
lealdade da concorrência democrática, afigurando-se casuística e
direcionada a atores políticos específicos”[2].
No mesmo dia 24 de abril, a Comissão de
Constituição e Justiça da Câmara dos Deputados aprovou a Proposta de
Emenda à Constituição nº 33, de 2011, a qual “altera a quantidade mínima
de votos de membros de tribunais para declaração de
inconstitucionalidade de leis; condiciona o efeito vinculante de súmulas
aprovadas pelo Supremo Tribunal Federal à aprovação pelo Poder
Legislativo e submete ao Congresso Nacional a decisão sobre a
inconstitucionalidade de Emendas à Constituição”[3].
Parlamentares e Ministros apressaram-se
em manifestações públicas em todos os sentidos. Sobre o primeiro caso –
Projeto de Lei nº 4.470/2012 – o próprio Presidente da Câmara dos
Deputados não deixou dúvidas sobre sua divergência com a decisão
proferida pelo Ministro Relator no Supremo Tribunal Federal. Quanto ao
segundo caso – Proposta de Emenda à Constituição nº 33, de 2011 – o
mesmo Presidente da Câmara defendeu a necessidade de estudos sobre o
assunto.
Anteriormente ao nosso interesse neste
breve texto, é necessário esclarecer que democracia é conflito. A
maturidade de uma democracia política afere-se exatamente pela
capacidade de seu sistema constitucional em resolver os conflitos, sem
que tal resolução venha a seduzir setores da mesma sociedade a pensarem
em alternativas fora da democracia, fora da disputa política legitimada
pelo poder constituinte, como é o caso do Brasil e de sua constituição
dirigente.
Como não poderia deixar de ser, é nossa
Constituição Federal provocadora e solucionadora dos conflitos.
Portanto, assumimos a posição de que direito constitucional e jurisdição
constitucional nada mais são do que direito político, e que, qualquer
questão de controle da constitucionalidade será sempre uma questão de
poder constituinte, ou, em outras palavras: será, novamente, uma questão
política. No Brasil e em qualquer país do mundo. A política a tentar
esconder a política é que consiste numa atitude fora da democracia,
devendo, desta maneira, ser banida dos embates democráticos e
republicanos.
Relativamente ao controle da
constitucionalidade temos que registrar sem eufemismos: quem lida com
controle da constitucionalidade conviverá sempre com a real
possibilidade de ultrapassar o texto constitucional, ou melhor, de ir
além – ou aquém – do poder constituinte.
O problema passa, então, a ser a
qualidade democrática do controlador da constitucionalidade e,
sobretudo, se sobre este controlador paira algum instrumento de controle
direto da parte da sociedade. Deve ser ressaltado desde já que a
legitimidade do legislativo decorre diretamente do poder constituinte,
já que todos os seus integrantes são eleitos diretamente pelo povo; a
legitimidade do judiciário advém da Constituição. Trata-se de uma
legitimidade indireta.
Acaso seja aprovada a PEC nº 33/2011
ter-se-á o conflito, não a crise. Não vemos como possa vir esta eventual
aprovação desencadear crise, uma vez que, em seu próprio texto é
extremamente limitativa e não se pode imaginar, com sinceridade, que
todos os dias o Congresso Nacional esteja a reapreciar decisões do
Supremo Tribunal Federal, ou sejamos todos os brasileiros chamados a
manifestar-nos, por meio de plebiscito, a respeito destas decisões. Pelo
simples e realista fato de que não se tem registro deste cenário na
história constitucional brasileira, tampouco noutras sociedades.
Interessa-nos aqui a discussão em torno da Proposta de Emenda à Constituição nº 33, de 2011.
Entendemos que é ela absolutamente
constitucional e, em nenhum instante de seus termos, na forma como
aprovada pela Comissão de Constituição de Justiça da Câmara dos
Deputados, viola dispositivos do § 4º do art. 60 da Constituição
Federal, notadamente a radical separação de poderes caracterizadora da
forma presidencialista. Procuraremos sustentar nossa argumentação com
base da filosofia política laica e revindicadora da democracia, a
consolidar-se a partir do século XVII, mas cujos postulados são
detectados quase cem anos antes.
Baruch de Espinosa é considerado o
grande formulador da defesa da liberdade, em toda a dimensão que o termo
pode ensejar. Quando Espinosa adverte-nos de que homens bons e corretos
podem subir ao cadafalso ou serem enviados ao exílio, também lembra que
“é impossível tirar aos homens a liberdade de dizerem o que pensam”[4].
Desta observação de Espinosa descende a
liberdade de manifestação de pensamento ardorosamente tomada como
primeira reivindicação, ao lado da liberdade de ir e vir, do conceito de
democracia do Iluminismo revolucionário. Como Espinosa não é um
filósofo da teologia – quem faz da razão e da filosofia servas da fé com
certeza “ensandecerá”[5]
– sua afirmação sobre a liberdade de manifestação de pensamento
assenta-se no elemento cotidiano da vida de uma república, a demonstrar o
afeto, a vontade de assim viverem todos, sob leis, mesmo que vícios
sociais sejam praticados e não tenham como ser punidos como a avidez e
inveja.
Espinosa é também o pensador da
tolerância, dado que sua condição judia de origem portuguesa e
perseguido pela Inquisição, obrigou sua família a ir para a tolerante
Holanda.
Como se vê, está em Espinosa, e em seus
autorizados intérpretes, a rejeição da moral e do moralismo como
instrumento mediador da construção da vida em comum do homem, com a
mesma intensidade que está presente a política; e esta não deve cair nas
“armadilhas da moral e da tradição jusnaturalista”[6].
Constata-se, desta forma, que Espinosa
não nega a “possibilidade de que os conflitos permaneçam existindo após a
fundação da Cidade”[7],
por força da pluralidade da natureza humana. O que é reafirmado é o
lugar das instituições, portanto da política e de seus desdobramentos,
como essenciais à construção da tranquilidade social. Referida
tranquilidade em nada se relaciona com a ausência dos conflitos, já que
suas soluções encaminham-se pela política; distante esta do
“voluntarismo moralista”[8].
Qual a relação desta primeira reflexão com o tema da PEC nº 33/2011?
Ora, o parlamento tem o direito de
manifestar-se como bem entender, até o final de sua competência
constitucional, sem ser molestado por quem que seja. Proposta de emendas
à Constituição, projetos de leis complementares e ordinárias, de
decretos legislativos nada mais são do que projetos, como bem os definem
seus termos constitucionais. Não possuem eficácia nem vigência. Não
estão no mundo.
Pela nossa Constituição, o controle
judicial da constitucionalidade incide sobre uma espécie normativa;
jamais sobre uma proposta que sequer concluiu todo o processo
legislativo. Reside nesta singela razão o motivo pelo qual o Poder
Judiciário pode controlar a constitucionalidade por inobservância do
processo legislativo, que também é devido processo legal. Mas tudo isto
após gerada a vida legislativa da espécie normativa; não antes de seu
nascimento. Igualmente ancorada neste motivo a impossibilidade de serem
expedidas medidas liminares.
Não há danos políticos a serem temidos.
Tão logo uma espécie normativa absolutamente inconstitucional – formal
e/ou materialmente – ganhe “vida” incidirá sobre ela o controle judicial
da constitucionalidade. Até lá, nada se pode fazer, a exemplo de outras
situações, para lembrarmos a lição de Paulo Brossard, quando Ministro
do Supremo Tribunal Federal e de seus votos nos mandados de segurança
contra atos da Câmara dos Deputados e do Senado Federal[9].
Está-se diante, na presidencialista
separação de poderes, das questões políticas e, nestas, cada um decide
na conformidade da disputa ocorrida nas eleições, defendendo seus
interesses.
Um pensamento atrai o outro. Tem sido
crença disseminada no chamado “neconstitucionalismo” ou “normativismo
constitucional” a certeza de que a efetivação constitucional ou as
deficiências de nossa democracia residem na interpretação das normas ou
que todos os desafios poderiam ser resolvidos com a articulação interna
dos dispositivos constitucionais.
Em tais abordagens, o papel da
política, com todos os seus atores, é praticamente desprezado. Não é
necessário ir muito longe para enxergar a extrema fragilidade destas
teses e a pobreza de sua força explicativa para dar conta dos conflitos
democráticos, como aqueles que enfrentamos nestes dias.
Há mais a autorizar, do ponto de vista
da teoria da democracia moderna, a constitucionalidade da PEC nº 33/11.
E, mais uma vez, Espinosa oferece-nos a indicação do bom caminho a ser
seguido. “Políticos e profetas e doutores” da Igreja” ocupam
centralidade nas formulações filosóficas políticas de Espinosa[10].
A disputa será sempre – entre todos
estes, ou entre uns e outros – para a tentativa de fundação e manutenção
da república na perspectiva de superação do medo, da barbárie e da
tirania que poderá acometer a qualquer sociedade. Porém, seriam os
profetas e doutores ao procurarem, por meio de suas leitura e
interpretação da sagrada escritura, com a consequente extensão desta
revelação particular à sociedade, os responsáveis pela construção e
manutenção o poder político.
Neste compasso, somente a lei revelada é
que seria divina, vez que originada do debate de poucos, dos
particulares. “O mais extraordinário para Espinosa é a demonstração de
que a lei divina só será lei se não divina e só será divina se não for
lei”[11].
Tais elementos estão internos à
sociedade, e não externos a ela; “Se uma das teses fundamentais da
política espinoseana é a de que o inimigo do corpo político é interno a
ele e encarna-se nos particulares que enquanto particulares desejam
apossar-se do poder, compreende-se que o caráter privado do poder
eclesiástico apareça como um dos inimigos políticos principais porque se
torna poder teológico-político”[12].
O aprisionamento do saber num só corpo consiste para Espinosa[13],
aqui ao contrário de Hobbes, na possível fonte de instabilidade
política. Se se objetiva a estabilidade da política devem ser ouvidos
diferentes atores, de modo que seja improvável a corrupção da maioria
por poucos: “Com efeito, o que determina a vontade de uma assembleia
suficientemente numerosa é mais a razão do que a paixão”[14]. Eis aqui o temor de Hobbes que vem a ser o destemor espinoseano.
Ao promulgar-se a Emenda Constitucional
45/2004 reafirmou-se não somente a súmula vinculante como a pretensão
do Supremo Tribunal Federal de revestir-se na condição de soberano, como
se fosse o único corpo político a deter a última palavra sobre quase
tudo.
O ativismo judicial disseminado em
todas as instâncias do judiciário nacional confirmam nossas palavras,
mesmo a qualquer olhar desatento. Cotidianamente, presencia-se
verdadeiro esvaziamento – Ausräumung – da política e dos
políticos pelo poder judiciário. Surpreende – no Brasil e mesmo nas
democracias europeias ou dos Estados Unidos – que pouco enfrentamento
tenha tal cenário desencadeado da parte da sociedade e de outros poderes
políticos.
Na verdade, a discussão a envolver a
constitucionalidade do efeito vinculante no Brasil após 1988 tinha-se
concluído com o julgamento da ação declaratória de constitucionalidade
nº 1, cuja relatoria coube ao Ministro Moreira Alves. Como preliminar
sobre a constitucionalidade da Emenda Constitucional nº 03/1993, foi
possível ao Relator aprovar a astuta tese de que o direito à ampla
defesa “com os meios e recursos a ela inerentes”, previsto pelo art. 5º,
LV da Constituição Federal somente se aplica aos processos subjetivos,
“para a defesa concreta de interesses de alguém juridicamente
protegido”; e não aos processos objetivos, como os de controle
concentrado da constitucionalidade[15].
Apesar de a Constituição da República
não impor este limite, de os direitos e garantias individuais serem
cláusula pétrea, e de o rol de direitos e garantias individuais do art.
5º poder ser somente alterado “para mais”, inexistiu impedimento a que o
Supremo Tribunal Federal realizasse autêntica revelação do poder
constituinte, trazendo para si o controle da política, o que acabou por
se confirmar de 1993 aos nossos dias.
Há mais: como único ator institucional a
ter o poder de decisão para reforma de suas próprias súmulas
vinculantes, o Supremo Tribunal Federal desvincula-se de si próprio,
procurando ratificar sua soberania sobre o poder constituinte.
O desafio aqui, quanto à PEC nº 33/2011
é que ela propõe o retorno à situação de destaque do poder legislativo.
A rediscussão sobre os limites da jurisdição constitucional nada tem
fora do contexto democrático de 1988. Afinal, em todo o mundo,
intelectuais sempre se dedicaram a este tema[16],
não desencadeando nenhuma reação que sequer pudesse ser, de longe,
qualificada de “morte ao tribunal”, contribuindo, ao contrário, com a
maturidade dos conflitos democráticos.
Somente soluções fora da democracia é
que poderiam estranhar a supremacia do poder legislativo ao longo do
pensamento político moderno. Na sua Metafísica dos Costumes, Immanuel Kant não deixa dúvidas quanto à preponderância do poder legislativo sobre o judiciário.
Pertence a Kant a afirmação de que “Todo
Estado contém em si três poderes, isto é, a vontade geral se une em
três pessoas políticas (trias politica): o poder soberano (a soberania),
que reside no poder legislativo; o poder executivo, que reside
em quem governa (segundo a lei) e o poder judiciário, (que possui a
tarefa de dar a cada um o que é seu, na conformidade da lei), na pessoa
do juiz (…)”[17].
Interpretação segura a respeito do
postulado de Kant que afirma a supremacia do poder legislativo é
presente na obra de Norberto Bobbio, quando este, recorrendo à Metafísica dos Costumes, entende que “Apesar da afirmação da subordinação de um poder ao outro, o fundamento da separação dos três poderes é ainda a supremacia do poder legislativo sobre os outros dois poderes: o poder legislativo deve ser superior porque somente ele representa a vontade coletiva”[18].
Antes de Kant, Rousseau defendeu também
a supremacia do legislativo: “O poder legislativo é o coração do
Estado, o poder executivo é o cérebro, que dá o movimento a todas as
partes. O cérebro pode cair em paralisia e o indivíduo prosseguir
vivendo. Um homem fica imbecil e vive, mas assim que o coração cessar
suas funções, o animal está morto. Não é pela lei que o Estado subsiste,
mas pelo poder legislativo”[19].
O retorno da palavra final ao poder
legislativo – somente em casos excepcionais, como deseja a PEC 33/2011 –
apenas reorienta o que já se conhece. Se a Constituição Federal
manifesta-se como democrática, é óbvio que não tem ela como escapar da
tradição democrática em cuja história se inserem sua origem, suas
disputas a darem-lhe sentido concreto na vida da sociedade.
Como poderia cogitar-se de
comprometimento da cláusula de separação de poderes se o poder
constituinte é que dará o último sinal? Não fosse assim, qual o sentido
de referir-se a PEC nº 33/2011 à forma plebiscitária?
O ponto principal aqui é a polêmica
travada sobre a proposta de emenda constitucional, vista por seus
opositores como grave ameaça à autonomia e independência do Poder
Judiciário, o que comprometeria, inclusive, o regime democrático e o
princípio da “separação de poderes”.
Em nossa opinião, trata-se de um debate
equivocado. Em primeiro lugar, porque os opositores da PEC estão
confundindo a posição institucional do Poder Judiciário no regime
constitucional. Falta, pelo visto, relembrar a velha e célebre distinção
criada por Sieyès, ainda em 1789, entre poder constituinte e poderes constituídos[20].
Em segundo lugar, a “separação de
poderes” não é ameaçada pelo maior controle do Poder Judiciário por
parte do Poder Legislativo, pelo contrário.
Para os opositores da PEC nº 33/2011, o
Supremo Tribunal Federal e o Poder Judiciário não poderiam ser
controlados, pois perderiam sua independência, sua autonomia, sua
capacidade de fiscalizar livremente as demais instituições republicanas.
Este discurso, na realidade, confunde a posição constitucional do Poder
Judiciário e do STF.
De poderes constituídos, que
efetivamente são, portanto, submetidos aos limites da Constituição e da
lei, passariam a verdadeiros soberanos, sem nenhuma espécie de controle.
Afinal, o soberano é absoluto, o que significa incontrolável, não
sujeito a determinados controles, não necessariamente totalitário ou
autoritário[21].
Esta visão “absolutista” do papel do
Poder Judiciário nas democracias contemporâneas é mais comum do que
costumamos imaginar, especialmente no que diz respeito à atuação das
Cortes Constitucionais. Faz parte de um fenômeno denominado, entre
outros, por Pedro de Vega García, de positivismo jurisprudencial[22].
Os órgãos de controle de constitucionalidade, assim, são convertidos em
taumaturgos, esquecendo-se da função transformadora da Constituição,
deixada de lado por ser “política”, não “jurídica”.
O risco existente é o de supremacia do
poder dos juízes, poder não eleito, diga-se de passagem, em detrimento
do Executivo e do Legislativo[23].
Portanto, a questão fundamental (e não respondida pelos adeptos do
“positivismo jurisprudencial”) é a da substituição do Poder Legislativo,
eleito pelo povo, pelo governo dos juízes constitucionais. Em quem o
cidadão deve confiar: no representante eleito ou no juiz constitucional?
Se o legislador não pode fugir à tentação do arbítrio, por que o juiz
poderia?[24]
A supremacia dos tribunais constitucionais sobre os demais poderes caracteriza-se pelo fato de os tribunais pretenderem ser o “cume da soberania”,
da qual disporiam pela sua competência para decidir em última instância
com caráter vinculante. Desta forma, o tribunal constitucional
transforma-se em substituto do poder constituinte soberano[25].
A consequência disto é salientada por Pablo Lucas Verdú:
“(…) o
monopólio do conceito e da prática da Constituição pelos Tribunais
Constitucionais, conduz, às vezes, a que estes não se limitem a defender
e a interpretar, como instância máxima, a Lei Fundamental, mas a
assenhorear-se dela. Expressando em termos alemães: não se limitam a ser
o Hüter da Constituição, mas o Herr da mesma” [26].
A visão “absolutista” do Poder
Judiciário não é, de maneira alguma, adequada ao Estado Constitucional.
Dentro do Estado Constitucional, segundo Olivier Beaud, não pode haver
um soberano. O soberano, no Estado Constitucional, está acima da
Constituição, pois tem o poder de fazer e desfazer a Constituição, ou
seja, é o titular do poder constituinte. Soberano, acima do Estado
Constitucional, só pode ser o povo[27].
O Poder Judiciário e, especialmente, o
Supremo Tribunal Federal não são, apesar dos adeptos do “positivismo
jurisprudencial”, detentores do poder constituinte. Não são soberanos.
São poderes constituídos, portanto, submetidos à Constituição e às leis[28].
Deste modo, não só podem, como devem
ser controlados, para que não abusem de suas funções, ou para que não
usurpem funções constitucionais de outros poderes constituídos ou,
ainda, tentem usurpar o próprio poder constituinte, colocando-se acima
da própria Constituição e da soberania popular que a criou e a mantém.
Feita a crítica à visão “absolutista” do Poder Judiciário, passemos, brevemente, ao discurso da “separação de poderes”.
A PEC nº 33/2011 seria inconstitucional
por violar o artigo 60, §4º, III, que dispõe que não será apreciada
emenda constitucional tendente a abolir a “separação de poderes”. Não
discutiremos aqui questões ligadas às chamadas “cláusulas pétreas” ou ao
significado da expressão “tendente a abolir”. Apenas nos limitaremos a
demonstrar que a visão de “separação de poderes” defendida pelos
opositores da PEC nº 33/2011 é mais ortodoxa que a do próprio
Montesquieu.
No célebre capítulo VI do Livro XI do livro De L’Esprit des Lois (1748), Montesquieu teria afirmado a “separação de poderes”[29].
Na realidade, Montesquieu jamais
afirmou que os poderes são separados de forma estanque. Esta
interpretação, chamada por Charles Eisenmann de “interpretação separatista”[30], ignorou a intenção de Montesquieu que, na tradição do chamado “governo misto”[31], buscava a instituição de um governo moderado, controlado.
A separação de Montesquieu diz respeito
à não confusão, à não identidade entre os componentes das várias
funções estatais, não tem nada a ver com separação total e absoluta.
Pelo contrário, Montesquieu exige que um poder controle o outro. O
controle recíproco é essencial em seu sistema, para evitar o abuso de
qualquer um dos poderes sobre os outros.
Os próprios norte-americanos entenderam
que a “separação dos poderes” não exigiria que os poderes legislativo,
executivo e judiciário fossem inteiramente desvinculados uns dos outros.
Na realidade, o essencial era,
inclusive, a sua vinculação e interpenetração, realizadas de maneira que
cada um dos poderes obtivesse o controle constitucional sobre os
demais. A mera declaração escrita dos limites dos vários poderes não era
suficiente[32].
O mecanismo encontrado na Constituição norte-americana foi, ao invés da
separação total e absoluta dos poderes, a introdução do sistema de freios e contrapesos (checks and balances).
No mesmo sentido, o célebre artigo 16 da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 26 de agosto de 1789[33], não propõe um modelo ideal para toda e qualquer Constituição, como muitos chegaram a interpretar.
Pelo contrário, trata-se de uma
afirmação de que a França, naquele momento, estava sem Constituição,
pois o poder todo estava concentrado nas mãos do Rei e, portanto,
competia à Assembleia Nacional elaborar uma Constituição para os
franceses em que se garantissem os direitos individuais e a separação de
poderes, novamente, no sentido de não concentração de todas as funções
estatais nas mãos de uma mesma pessoa[34].
O grande perigo nunca foi o controle de
todos os poderes uns pelos outros. Pelo contrário, especialmente em
relação ao Poder Judiciário, a ameaça sempre foi proveniente da sua
falta de controle. Em 1823, Thomas Jefferson já alertava como um Poder
Judiciário sem controle poderia se tornar uma efetiva ameaça à
democracia constitucional:
“No
estabelecimento de nossa Constituição, os integrantes dos corpos
judiciários eram tidos como os mais inofensivos dos membros do Estado. A
experiência, no entanto, logo demonstrou os caminhos pelos quais eles
se tornaram os mais perigosos: o de que a insuficiência de meios
previstos para a sua remoção deu a eles liberdade e irresponsabilidade
em seu ofício; o de que suas decisões, aparentemente dizendo respeito
apenas aos litigantes individualmente, passam em silêncio e
desapercebidas pelo público em geral; o de que essas decisões acabam se
tornando lei por meio dos precedentes, subvertendo aos poucos as
fundações da Constituição e promovendo sua mudança antes que alguém
possa perceber que aquele invisível e inofensivo verme estava empregado
ativamente, consumindo a sua substância” [35].
Podemos concluir, portanto, que um
maior “controle” do Poder Judiciário por parte do Poder Legislativo não
fere a “separação de poderes”. Pelo contrário, o que se opõe a toda
tradição constitucionalista de “separação dos poderes” é, justamente, a
falta de controle do Poder Judiciário.
A reação à ampliação do controle
democrático sobre o Poder Judiciário se torna mais bizarra e virulenta
quando associada à repulsa a qualquer forma de ampliação da participação
popular direta nas decisões políticas essenciais, como pretende a PEC
nº 33/2011.
A oposição aos instrumentos de
participação direta do povo nas decisões políticas, com o argumento
falacioso da “violação ao princípio da separação de poderes”, em suma,
parece dar razão à afirmação de Victor Nunes Leal, ele próprio
ex-Ministro do STF, cassado pela ditadura militar:
“Aí está,
portanto, explicado o verdadeiro sentido sociológico da divisão de
poderes. Era um sistema concebido menos para impedir as usurpações do
executivo do que para obstar as reivindicações das massas populares
(ainda em embrião, mas já carregadas de ameaça)”[36].
Talvez seja a hora de se prestar
atenção menos nos integrantes do Supremo Tribunal Federal que apoiaram e
sustentaram a ditadura militar, ou que a consideram, ainda hoje, um
“mal necessário”, perpetuando, em uma decisão vergonhosa, a auto-anistia
de 1979 aos torturadores e assassinos da ditadura (ADPF nº 153/DF), e
voltar a atenção para aqueles raríssimos integrantes da Corte que, como
Victor Nunes Leal, Hermes Lima ou Evandro Lins e Silva, jamais tiveram
qualquer dúvida sobre qual deveria ser o papel do Supremo Tribunal
Federal como um órgão inserido dentro da democracia, portanto, submetido
aos limites da Constituição e à livre e soberana vontade do povo.
[1]Gilberto
Bercovici é Professor Titular da Faculdade de Direito da Universidade
de São Paulo. Martonio Mont’Alverne Barreto Lima é Professor Titular da
Universidade de Fortaleza e Procurador do Município de Fortaleza.
[2]In: http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticiaNoticiaStf/anexo/MS_32033.pdf, p. 12. Acesso em 25.04.13
[3]In: http://imagem.camara.gov.br/Imagem/d/pdf/DCD26MAI2011.pdf#page=212, p. 2612. Acesso em 25.04.2013.
[4]Espinosa, Baruch de. Tratado Teológico-Político. SP: Martins Fontes, 2003, pp. 307-309.
[5]Espinosa, Baruch de. Tratado Teológico-Político, p. 224.
[6]Chauí, Marilena: Política em Espinosa. SP: Cia. das Letras, 2003, p. 129.
[7] Guimaraens, Francisco de. Direito, Ética e Política em Spinoza. RJ: Lumen Juris, 2010, p. 186.
[8]Guimaraens, Francisco de. Direito, Ética e Política em Spinoza, p. 193.
[9]“O
Presidente pode violar imunidades parlamentares, usurpar funções
legislativas, descumprir decisões judiciais; sob inspirações facciosas,
entrar em conflito com outros Poderes ou com os Poderes constituídos dos
Estados (…) Pode arruinar o crédito nacional e comprometer o bom nome
do país pelo acintoso descaso com que desrespeita obrigações
internacionais. Pode alienar bens nacionais, contrair empréstimos e
emitir moeda, sem autorização legal. Pode o Presidente retardar
dolosamente a publicação das leis, decretar o estado de sítio, estando
reunido o Congresso, e, sem licença deste, ausentar-se do País. (…)
Pode, enfim, provocar animosidade entre as Forças Armadas, com o premiar
da indisciplina, galardoar a incompetência, fomentar o nepotismo, pode
cometer atos de hostilidade contra nação estrangeira, expondo a
República ao perigo da guerra, celebrar tratados e convenções
humilhantes para a nação…(…) Este painel terrível pode ser o retrato do
país e obra de um governante. (…) Qual a solução jurídica para o
caso esdrúxulo, uma vez que a competência do Senado, para exercer-se,
supõe decreto acusatório da Câmara? Nenhuma solução legal existe (BROSSARD, Paulo. In: Impeachment, Imprensa Nacional, Brasília, 1996
[10]V. Chauí, Marilena: Política em Espinosa. SP: Cia. das Letras, 2003, pp. 37ss.
[11]Chauí, Marilena: Política em Espinosa, p. 127.
[12]Chauí, Marilena: Política em Espinosa, p. 45.
[13]Spinoza, Baruch de: Tratado Político: Cap. 8º, § 6. SP: Tecnoprint, pp.89/90.
[14]Chauí, Marilena. Ib., p. 294.
[15]ADC
nº 1-DF, p. 275. In: Mendes, Gilmar Ferreira: Moreira Alves e o
Controle de Constitucionalidade no Brasil. SP: Instituto Brasileiro de
Direito Constitucional, 2000.
[16]
Os exemplos mais significativos são Ingeborg Maus na Alemanha; Javier
Perez Royo na Espanha, e Mark Tushnet nos Estados Unidos da América.
Para não mencionar a ausência de controle concentrado a
constitucionalidade na França, Inglaterra e Suécia, até os dias de hoje.
[17] Grifamos. KANT, Immanuel: Metaphysik der Sitten. Darmstadt: WBG, Bd. 7, 1983, pp. 431/342.
[18]Grifamos. BOBBIO, Norberto: Direito e Estado no Pensamento de Emmanuel Kant. SP: Mandarim, 2000, p. 227.
[19]ROUSSEAU, Jean-Jacques. Do Contrato Social ou Princípios do Direito Político. SP:, Hemus, 1981, p. 96.
[20]SIEYÈS, Emmanuel-Joseph, Qu’est-ce que le Tiers Etat?, 2ª ed, Paris, PUF, 1989, capítulo V.
[21]Sobre esta concepção, vide BEAUD, Olivier, “Le Souverain”, Pouvoirs º 67, 1993, p. 36.
[22]GARCÍA, Pedro de Vega, “El Tránsito del Positivismo Jurídico al Positivismo Jurisprudencial en la Doctrina Constitucional”, Teoría y Realidad Constitucional nº 1, janeiro/junho de 1998, pp. 85-86.
[23]VERDÚ, Pablo Lucas, La Constitución en la Encrucijada (Palingenesia Iuris Politici), Madrid, Real Academia de Ciencias Morales y Políticas, 1994, pp. 65-78 e 107-108.
[24]SOARES, Rogério Guilherme Ehrhardt, Direito Público e Sociedade Técnica,
Coimbra, Atlântida Editorial, 1969, pp. 154-155 e 182-183 e
BÖCKENFÖRDE, Ernst-Wolfgang, “Grundrechte als Grundsatznormen: Zur
gegenwärtigen Lage der Grundrechtsdogmatik” in Staat, Verfassung, Demokratie: Studien zur Verfassungstheorie und zum Verfassungsrecht, 2ª ed, Frankfurt am Main, Suhrkamp, 1992, pp. 191 e 198-199.
[25]BÖCKENFÖRDE, Ernst-Wolfgang, “Grundrechte als Grundsatznormen: Zur gegenwärtigen Lage der Grundrechtsdogmatik” cit.,
pp. 189-19 e; MAUS, Ingeborg, “Judiciário como Superego da Sociedade: O
Papel da Atividade Jurisprudencial na ‘Sociedade Órfã’”, Novos Estudos nº 58, novembro de 2000, pp. 190-193.
[26]VERDÚ, Pablo Lucas, La Constitución en la Encrucijada cit., pp. 75-76. Thomas Jefferson, em 1823, já fazia crítica semelhante: “A
Constituição (…) significa que seus poderes coordenados devem ser
limitados um pelo outro. Mas, a opinião que atribui aos juízes o direito
de decidir quais leis são constitucionais e quais não são, não apenas
para eles próprios, em sua esfera de atuação, mas para o Legislativo e
para o Executivo em suas respectivas esferas, poderá tornar o Judiciário
um poder despótico” in Carta de Thomas Jefferson a William Johnson (1823).
[27]BEAUD, Olivier, “Le Souverain” cit., pp. 36-40.
[28]BEAUD, Olivier, “Le Souverain” cit., pp. 40-41.
[29]MONTESQUIEU, De L’Esprit des Lois in Oeuvres Complètes, reimpr., Paris, Éditions du Seuil, 1990, Livro XI, Cap. VI.
[30]EISENMANN, Charles, “La Pensée Constitutionnelle de Montesquieu” in Cahiers de Philosophie Politique nº 2-3: Montesquieu, Bruxelas, Éditions Ousia, 1985, pp. 38-50. Vide também TROPER, Michel, La Séparation des Pouvoirs et l’Histoire Constitutionnelle Française, Paris, L.G.D.J., 1980, pp. 109-120.
[31]Sobre
a tradição do “governo misto” e da “constituição mista”, provenientes
de Políbio e recorrentes na formação do constitucionalismo ocidental,
especialmente na tradição inglesa, vide, por todos, POCOCK, J. G. A., The Machiavellian Moment: Florentine Political Thought and the Atlantic Republican Tradition,
Princeton, Princeton University Press, 1975, especialmente capítulos IX
e XI, pp. 272-273, 277, 286, 297-300, 304-308, 315-316, 323-328,
364-371, 382 e 395.
[32]HAMILTON, Alexander; MADISON, James & JAY, John, The Federalist Papers, London/New York, Penguin Books, 1987, Artigo nº 48.
[33]Artigo 16: “Toda
sociedade na qual não está assegurada a garantia dos direitos, nem
determinada a separação de poderes, não tem constituição”.
[34]Vide TROPER, Michel, La Séparation des Pouvoirs et l’Histoire Constitutionnelle Française cit., pp. 157-160 e RIALS, Stéphane, La Déclaration des Droits de l’Homme et du Citoyen, Paris, Hachette, 1988, pp. 252-254.
[35]Carta de Thomas Jefferson a A. Coray (1823).
[36]LEAL, Victor Nunes, “A Divisão dos Poderes no Quadro Político da Burguesia” in Cinco Estudos: A Federação – A Divisão de Poderes (2 estudos) – Os Partidos Políticos – A Intervenção do Estado, Rio de Janeiro, Fundação Getúlio Vargas, 1955, p. 108.
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