Extraído de Carta Maior
A continuidade da política de ampliação da base parlamentar do
governo no Congresso Nacional parece não ter limites. Para quem não
acompanha a política brasileira em seu cotidiano, a situação pode
parecer fantasmagórica. Imagine-se um indivíduo que tenha passado uns 12
anos fora do circuito e retornou apenas anteontem à superfície. Soube
que Lula finalmente conseguiu ser eleito Presidente da República em
outubro de 2002. E que, além de vencer a recondução para um segundo
mandato, ainda logrou eleger sua sucessora. Ou seja, nosso personagem se
surpreende com a notícia: mais de 10 anos de PT no poder!
"A antiga prática condenada do 'fisiologismo' passou a ser gentilmente qualificado de 'garantia da governabilidade'" |
Mas aos poucos, à medida que vai se inteirando dos detalhes da
política tupiniquim, a pessoa fica sabendo que a coisa é mais complicada
do que parecia à primeira vista. A antiga prática condenada do
“fisiologismo” passou a ser gentilmente qualificado de “garantia da
governabilidade”. Percebe que figuras como José Sarney, Fernando Collor,
Paulo Maluf, Delfim Netto, Kátia Abreu, Henrique Meirelles, Guilherme
Afif, Gilberto Kassab, Blairo Maggi e tantos outros são ou foram
entusiastas apoiadores dos governos ao longo desse período. Ou seja,
todos aqueles personagens da vida política nacional que eram marcados
pelo anti-petismo radical, passaram rapidamente a fazer parte da base de
sustentação política e eleitoral do governo do PT.
Mudança de
prioridade na agenda do governo.
Limites da Articulação
Não é intenção do artigo discutir aqui os limites da articulação
parlamentar ou a necessidade de alianças para qualquer governo no nosso
regime chamado de presidencialismo de coalizão.
O aspecto mais importante a reter é a forma como o governo se
comporta frente aos representantes das classes e frações de classes
sociais no que se refere ao atendimento de seus interesses no interior
do aparelho de Estado. Há muito tempo que os projetos de transformação
social foram sendo abandonados, em nome de uma suposta impossibilidade
de fazer andar a roda da História. Restou uma agenda reduzida da pequena
política para os chamados setores populares, destinada a fazer valer
algumas solicitações de determinados grupos sociais que estariam na
origem da base do governo. A busca por projetos que pudessem se
caracterizar como mudanças derivadas da vitória eleitoral foi
cautelosamente abandonada. O pragmatismo para evitar derrotas passou a
ser a bússola que orienta a ação dos dirigentes políticos.
Ousadia
O fato é que o núcleo duro dos sucessivos governos deixou de ousar
na formulação - e, principalmente, na implementação - dos elementos
essenciais de políticas públicas alternativas ao ideário que sempre
havia sido encaminhado pelo Estado brasileiro até então. O receio de
buscar o novo levou à paralisia dos caminhos traçados na época da
oposição e à frustração de amplos setores que não viram a transformação
das propostas existentes em políticas de governo. O bordão da primeira
campanha vitoriosa de Lula dizia que a sua eleição seria a prova de que
“a esperança venceu o medo”. Mas, na direção contrária do desejo popular
que ousou votar pela mudança, os governos recuaram. Muito provavelmente
por estarem premidos pelo temor das conseqüências políticas de atos
mais efetivos – processo, aliás, que está na base de qualquer processo
que envolve um mínimo de elemento transformador. Ora - e já que Marx
está em alta novamente - não custa lembrar que se trata tão somente da
inescapável dinâmica da luta de classes. Simples assim: não há como
fugir da contradição e do conflito de interesses.
Primeiros sinais na
“Carta ao Povo Brasileiro”
As mensagens telegráficas e sub-reptícias já
constavam da tristemente famosa “Carta ao Povo Brasileiro”, de julho de
2002, quando foram aventadas as primeiras manifestações de uma possível
guinada programática a ser encaminhada após a vitória eleitoral. A
nomeação dos responsáveis pela política econômica - Antonio Palocci e
Henrique Meirelles - só veio a confirmar tal opção. A hegemonia da
ortodoxia monetarista no comando da economia converteu-se na sinalização
cristalina dirigida ao grande capital de que não havia nada a temer,
pois nada seria mudado em termos da essência das diretrizes dos governos
anteriores.
Hegemonia Financeira
E vejam que não se trata apenas da garantia de que os grandes
conglomerados não seriam prejudicados. A estratégia implicava a
continuidade da hegemonia dos interesses do setor financeiro no bloco
dominante, em prejuízo das demais frações, em especial as vinculadas ao
capital industrial e produtivo.
"Ocorre que a postura adotada no perigoso jogo de equilíbrio terminou por se caracterizar como uma verdadeira fase de submissão dos principais dirigentes políticos aos interesses do grande empresariado" |
Daí em diante, o que se verificou foi uma sequência coerente e
permanente de ações dos governos em busca de sua legitimação junto aos
representantes do capital. Ocorre que a postura adotada no perigoso jogo
de equilíbrio terminou por se caracterizar como uma verdadeira fase de
submissão dos principais dirigentes políticos aos interesses do grande
empresariado. Muito tem sido produzido e discutido a respeito do
fenômeno qualificado como “lulismo”. Na verdade, trata-se justamente
dessa capacidade de oferecer tudo ao capital, mas mantendo um discurso
de convencimento político junto aos trabalhadores e a maioria da
população pobre de nosso País. É óbvio, além disso, que as políticas de
transferência como o programa Bolsa Família, os ganhos reais oferecidos
ao salário mínimo e a ampliação dos benefícios previdenciários
contribuíram para cimentar tal situação, aparentemente paradoxal. Mas
tais melhorias ocorreram sem alteração na ordem anterior. Com isso, os
governos conseguiram, na verdade, maior legitimidade para avançar na
implementação da pauta empresarial.
Valores no orçamento refletem os
setores mais beneficiados
.
Políticas Sociais x Capital
Os valores do orçamento público destinados às políticas sociais são
incomparavelmente diminutos quando comparados ao volume e à extensão dos
favorecimentos e das benesses dirigidas ao capital. No caso das
atividades agrícolas, por exemplo, os valores atribuídos ao Ministério
do Desenvolvimento Agrário (MDA – reforma agrária e agricultura
familiar) equivalem à metade dos recursos para os grandes proprietários,
que são atendidos pelo Ministério da Agricultura, Pecuária e
Abastecimento (MAPA). A educação superior privada conta com todo
estímulo público por meio das bolsas concedidas às universidades
privadas (PROUNI). No caso da saúde, o sucateamento do Sistema Único de
Saúde (SUS) beneficia os planos de saúde privados e incentiva a
transformação da gestão da rede pública por meio de mecanismos de
privatização, como a concessão de hospitais e demais serviços para
empresas e organizações sociais.
A política de rendição aos interesses do capital tem dominado a
agenda do governo. Esse comportamento vem ainda antes da eclosão da
crise internacional em 2008, na época em que prevalecia a tentativa de
vender a imagem do bom mocismo e quando se aplicavam, de forma mais
realista que o rei, as recomendações da ortodoxia do financismo. No
momento atual, o governo aceita a chantagem do grande empresariado e se
torna refém da baixa resposta que o setor privado está oferecendo aos
novos investimentos necessários. Apesar de manter a políticas de
distribuição de renda em favor dos mais pobres, sua dimensão e seus
efeitos não são comparáveis aos ganhos proporcionados às
empresas.
Exemplos de opção pelo favorecimento do capital
.
Base Popular
Se é verdade que os governos pós 2003 não podem ser classificados
como neoliberais em sentido estrito, o fato é que não se utilizaram de
sua base de ampla popularidade para promover mudanças mais efetivas. Os
exemplos são inúmeros a refletir essa incapacidade de escapar da
conhecida postura de submissão. Se partirmos da análise de que toda
decisão política tem lado, o governo tem adotado de forma sistemática e
unilateral a opção pelo lado do capital. Senão, vejamos alguns casos
mais emblemáticos:
1. extensão paulatina e irresponsável da desoneração da folha de
salários das empresas para inúmeros seto res. A contribuição
previdenciária patronal passa a ter como fonte uma alíquota entre 1% e
2% a incidir sobre o faturamento das empresas. O novo modelo arrecada
valores menores de receita e isso deverá provocar desajustes no futuro
de uma previdência social atualmente equilibrada.
2. ampliação do regime de concessão para as atividades econômicas
consideradas como de responsabilidade do Estado - os bens e serviços
públicos. Os contratos para os diversos setores da infra-estrutura
englobam rodovias, ferrovias, portos, aeroportos, energia elétrica,
saneamento, comunicações, exploração de petróleo, entre outros. As
regras variam, mas em geral são condições de extremo favorecimento do
capital, com prazos de 30 anos de exploração, recursos subsidiados do
BNDES para os investimentos e nenhuma menção quanto a exigências de
contrapartidas ou penalidades para o descumprimento das cláusulas. Na
verdade, trata-se de uma ação do Estado criando um n ovo espaço de
acumulação para essas empresas, onde fica assegurado o famoso modelo do
“capitalismo sem risco”.
3. política explícita e louvada pelo governo de apoio ao agronegócio,
com oferecimento de todos os tipos de facilidades para os grandes
empreendedores do campo. Inexistência de políticas públicas para
regulamentar o uso descontrolado de sementes e plantas transgênicas, o
mesmo ocorrendo quanto ao uso indiscriminado e venenoso de agrotóxicos e
fertilizantes. No que se refere à reforma agrária, observa-se uma
contenção no ritmo de reconhecimento de novos assentamentos, com índices
abaixo até dos governos de FHC.
4. inexistência de contrapartidas das grandes empresas em busca de
recursos públicos e outras benesses junto ao Tesouro Nacional ou ao
BNDES. Há inúmeros casos de empresas com “ficha suja” no quesito social
e/ou ambiental - denúncias de trabalho escravo ou irregularidades junto
ao IBAMA - que continuam a receber tais favorecimentos. O mesmo ocorre
quanto aos compromissos de não demissão de trabalhadores, uso de
componentes de fabricação nacional ou outros elementos de política
pública considerada estratégica.
5. comprometimento de parcelas expressivas dos recursos do BNDES para
estimular a formação das chamadas “gigantes brasileiras”, sem que o
governo exija como contrapartida a sua participação nos conselhos
diretivos desses novos megagrupos.
6. concessão de todo o tipo de facilidades às grandes empresas da
construção civil, em especial essa autorização recente para permitir a
elevação dos valores licitados de grandes obras em até 17% em relação
aos preços previamente acordados.
Sentidos Desligados
Ao que tudo indica, o governo permanece com todos os seus sentidos
desligados do mundo real, externo ao ambiente dos negócios. Tal postura
opera bem em momentos de crescimento da economia, mas pode apresentar
dificuldade quando houver sinalização contrária. As sucessivas
tentativas e os equívocos cometidos já deveriam ter operado como alerta
para uma mudança de conduta e de orientação. E vejam que nem se trata de
optar por uma mudança radical na transformação da base de nosso modo
capitalista de convivência social e econômica. O ponto é simplesmente o
de ampliar o leque de alternativas a cada opção de política pública e
não apenas continuar cedendo de forma constante e monotônica às demandas
do capital. A sociedade brasileira é plural e há outras classes que
merecem um tratamento também especial por parte de seus governantes. Uma
atenção que vá muito além da simples distribuição das migalhas das
políticas de transferência de renda e incorpore, de fato, a construção
de um verdadeiro projeto de nação voltado para as necessidades da
maioria de seu povo.
♦ Paulo Kliass é Especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental, carreira do governo federal e doutor em Economia pela Universidade de Paris 10.
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