Por Ricardo Musse.
Anselm
Jappe filia-se à corrente do marxismo que se autodenomina “crítica do
valor”. Os nomes mais conhecidos dessa vertente são Robert Kurz,
recentemente falecido, e Moishe Postone. Com seu último livro, Crédito à morte: A decomposição do capitalismo e suas críticas, Jappe
se credencia como mais que um divulgador. Atualiza essa teoria,
destacando a pertinência de sua reflexão na análise da conjuntura e,
sobretudo, procurando demonstrar, em tom polêmico, as insuficiências das
contestações corriqueiras ao capitalismo.
A “crítica do valor” parte de uma interpretação de O capital
que, na contramão da leitura impulsionada pela Segunda e Terceira
Internacionais, não considera a denúncia da exploração e seus
desdobramentos sob a forma de luta de classes como o ponto central da
obra de Marx. Na trilha aberta por História e consciência de classe, de György Lukács, e por A teoria marxista do valor,
de Isaak Illich Rubin, desdobrada posteriormente pela Escola de
Frankfurt, considera que o eixo central da teoria marxista consiste na
crítica ao “fetichismo da mercadoria” e às formas envolvidas nesse
processo: valor, mercadoria, dinheiro, capital, trabalho etc.
Não se
trata, porém, apenas de uma correção teórica. A leitura desenvolvida por
essa vertente traduz uma análise histórica e uma opção política que
atribui os fracassos do reformismo social-democrata e dos Estados ditos
socialistas a uma compreensão equivocada do funcionamento do
capitalismo, em particular, do papel nele desempenhado pela
forma-mercadoria.
O
diagnóstico do presente histórico, ancorado nessa linhagem, identifica,
nas transformações recentes do capitalismo, sintomas de seu processo de
decomposição. A circulação incessante da mercadoria dinheiro,
pressuposto necessário da dinâmica do capital, funciona como uma espécie
de “sujeito automático” que se depara cada vez mais com limites
internos e externos. Internamente, o capital presencia o paradoxo de ter
que incrementar inovações no processo de trabalho que tendem a reduzir a
taxa de lucro e a própria massa de mais-valia, fonte primordial da
atual crise econômica e social. Externamente, a lógica da acumulação, a
exigência de ampliação contínua da produção, esbarra nos limites da
natureza, situação que tende a amplificar a crise ecológica.
A força da
reconstituição, por Jappe, dessa dupla crise, deriva da precisão e da
argúcia com que demonstra seus efeitos na configuração contemporânea da
sociabilidade e da subjetividade. A expansão inaudita da
mercantilização, atingindo setores até então infensos ao “fetichismo da
mercadoria”, intensifica as formas de relação social moldadas pela troca
monetária, com o predomínio da abstração e da quantificação. Seu
resultado mais palpável consiste no incremento da barbárie, patente cada
vez mais não só no funcionamento do mercado, mas nas próprias políticas
de Estado.
Em linha
geral, no entanto, nessa fase, o capitalismo tende a promover, no âmbito
das subjetividades, o narcisismo. Trata-se de uma neurose (ou psicose),
cuja matriz, Jappe atribui a uma infantilização massiva oriunda da
ênfase no consumo, na sedução das mercadorias e de uma dessimbolização
em larga escala produzida pela indústria do entretenimento. A regressão a
um estágio no qual prevalece o princípio do prazer, a dificuldade em
aceitar a realidade, a projeção do eu sobre os objetos exteriores, no
mínimo, dificultam a experiência da alteridade, condição imprescindível
para um desenvolvimento psíquico maduro.
As polêmicas
de Jappe contra as correntes contemporâneas críticas do capitalismo
perpassam os dez artigos reunidos no livro. Intervenções no debate
francês, os textos não se eximem de confrontar as principais reações
intelectuais e políticas à crise do capitalismo.
A discussão é
travada em patamares distintos. Num primeiro bloco, rejeita-se “o
cidadanismo do tipo ATTAC, a caça aos especuladores e as críticas cujo
único alvo é a alta cúpula financeira; mas também as propostas de volta à
‘política’ e à luta de classes”. Jappe designa-as como “populistas”,
pois não criticam as bases do capitalismo, limitando-se a “propor
reformas, procurar bodes expiatórios, procurar formas de antagonismo que
afundaram com o próprio capitalismo”.
Num segundo
bloco, propõe um “diálogo crítico” com tendências que julga capazes de
indicar caminhos para uma superação real da sociedade capitalista.
Inclui, nessa série, os teóricos do “dom”, organizados no grupo francês
MAUSS, as posições defendidas por Jean-Claude Michéa e a tese, surgida
no interior do ambientalismo, do “decrescimento”. As objeções que Jappe
levanta referem-se, grosso modo, a uma compreensão insuficiente, por
parte dessas vertentes, da lógica do capital. Desconhecendo as
determinações primordiais do processo de acumulação, esses adversários
do capitalismo correm o risco de propor metas ou roteiros insuficientes
para “sair do capitalismo”.
Os dois
últimos artigos do livro esboçam uma atualização do conceito
frankfurtiano de “indústria cultural”. Jappe insiste na pertinência de
distinções “qualitativas” no campo da arte e da cultura, contra o
relativismo generalizado e o igualitarismo da “esquerda cultural”.
Segundo ele, o pós-modernismo apenas replica a dominação da
forma-mercadoria, com sua indiferença em relação ao conteúdo.
Concluo com uma citação indicativa de sua disposição em não se curvar a consensos consagrados como senso comum:
“a esquerda
quis abolir hierarquias que podiam até fazer algum sentido, com a
condição que não fossem estabelecidas como definitivas, que fossem
modificáveis: as da inteligência, do gosto, da sensibilidade, do
talento. A existência de uma hierarquia de valores contribui para negar e
contestar a hierarquia do poder e do dinheiro que reina absoluta numa
época em que se nega toda e qualquer hierarquia cultural”.
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