Ao contrário do que pode parecer, o jovem, em geral, é mais vítima do que algoz no país (Foto: Marcos Santos/USP Imagens)
Diminuir a idade penal não só
não reduz a criminalidade como pode agravar ainda mais o problema,
excluindo muitos que quase já não têm direitos
Por Glauco Faria
“O senhor sabe o que vai acontecer com
esse bandido, esse assassino, esse monstro? Nada. (…) Ele deveria ser
linchado (…) Queria ver esse cara torrando na cadeira elétrica.” Esses
trechos foram extraídos do livro Justiça (Nova Fronteira), do
sociólogo Luiz Eduardo Soares, no qual ele relata o encontro com um
taxista, no Recife. A fala é do condutor, que contava um episódio
ocorrido com um amigo seu, motorista de ônibus, morto por um
adolescente, menor de 18 anos, em um assalto.
“Naquele momento não era o homem que
falava; era seu coração, a sua dor”, refletiu o sociólogo, lembrando que
não era um momento para argumentar porque isso poderia soar agressivo
ou desrespeitoso. E o taxista seguiu seu relato, pensando sobre como
seria o destino da viúva e dos cinco filhos, já que seu amigo era arrimo
de família. Soares ponderou a respeito das dificuldades que a mãe teria
para criar os garotos sozinha, explicitando os riscos a que seriam
expostos. “Esses meninos correm o risco de ir para a rua, envolver-se
com drogas, crimes, armas”, no que seu interlocutor concordou. “Um dia,
um deles, desesperado atrás de dinheiro – talvez para comprar crack –
entra num ônibus, rende passageiros e, sem pensar, atira no motorista e
foge”, prosseguiu, concluindo: “o senhor acha que, nesse caso, se isso
viesse a acontecer, o órfão de seu amigo mereceria ser chamado de
monstro? O senhor participaria do linchamento dele? O senhor, se fosse
juiz e se nosso país tivesse pena de morte, o condenaria à morte?”
Durante o resto da viagem o taxista
permaneceu calado e, ao chegar ao destino, finalmente respondeu. “Não”,
completando: “nunca tinha pensado por esse lado”. Como o próprio Luiz
Eduardo Soares ressalta, analisar uma história como essa em todas as
suas implicações não é “passar a mão na cabeça de bandidos”, mas buscar
ver a realidade por diversos ângulos e tentar elaborar alternativas ao
problema da violência que acabem não gerando mais violência. E, ao que
tudo indica, a redução da maioridade não é uma solução ideal, e pode
aumentar uma espiral que vitima jovens e adultos todos os dias no
Brasil.
O tema eventualmente volta ao debate
público, geralmente após a repercussão de crimes cometidos por
adolescentes. Agora, a discussão retorna por conta do assassinato de
Victor Hugo Deppman, de 19 anos, morto na porta do prédio onde morava,
no bairro do Belém, em São Paulo, em 9 de abril. O jovem que cometeu o
latrocínio estava a três dias de completar 18 anos.
O episódio gerou reações e inúmeras
manifestações favoráveis à redução da idade penal para 16 anos. De
acordo com pesquisa realizada pelo Datafolha em 15 de abril, 93% dos
paulistanos são favoráveis à medida, cuja possibilidade de ser efetivada
causa controvérsias no meio jurídico. Muitos, como o ministro da
Justiça, José Eduardo Cardozo, entendem que não pode haver alteração. “A
Constituição prevê inimputabilidade penal até os 18 anos de idade. É um
direito consagrado e uma cláusula pétrea da Constituição do Brasil. Nem
mesmo uma emenda pode mudar isso. Qualquer tentativa de redução é
inconstitucional. Essa é uma discussão descabida do ponto de vista
jurídico”, disse Cardozo, em entrevista ao jornal O Estado de S.Paulo, em 29 de abril.
Já outros entendem que só os direitos
inscritos no artigo 5º da Constituição Federal de 1988 seriam imutáveis.
De qualquer forma, discutir essa questão pode ser a oportunidade de se
traçar um panorama mais amplo das causas da criminalidade e sobre
medidas que podem realmente combater o seu crescimento.
“A sociedade passou a desesperadamente
querer uma proteção e a clamar por policiamento nas ruas, armamentos
mais aprimorados, leis e penas mais rigorosas, isso tudo em uma visão do
fenômeno criminal após a sua ocorrência. Depois que ocorreu, punição;
antes, pouca ou nenhuma discussão sobre as causas do crime”, reflete o
advogado Antônio Cláudio Mariz de Oliveira, que destaca também a
responsabilidade da cobertura da mídia. “Temos um discurso, que se
transformou em uma cultura social, voltado para a repressão, e não para a
prevenção. A mídia tem muita culpa nisso, pois não encara o crime como
uma tragédia, e im como um espetáculo. Um espetáculo digno de todos os
mecanismos que pode oferecer, televisionamento das operações – se
possível do corpo da vítima –, dos julgamentos, e isso passou a ser um
verdadeiro show, um instrumento de faturamento e de Ibope.
Tivesse a mídia encarado o crime de uma forma correta, poderia ter até
extraído lições, discuti-lo.”
O tratamento midiático, por meio da
exploração às vezes cruel de episódios violentos, não leva em
consideração algumas estatísticas. De acordo com números da Fundação
Centro de Atendimento Socioeducativo ao Adolescente (Casa), instituição
responsável pela aplicação de medidas socioeducativas no estado de São
Paulo, 9.016 adolescentes cumpriam alguma das medidas previstas no
Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) – atendimento inicial,
internação provisória, internação, internação sanção e semiliberdade.
Destes, 41,8% estavam ali por tráfico de drogas, 39% por roubo
qualificado, 5,1% por roubo simples e 1,9% por furto. Os jovens que
cometeram latrocínio (roubo seguido de morte), como no caso de Victor
Hugo, correspondiam a apenas 0,9% do total, ou 82 adolescentes, sendo
que 33 deles possuíam mais de 18 anos e 49 estavam abaixo dessa idade.
Ao contrário do que pode parecer, o jovem, em geral, é mais vítima do que algoz no País. Conforme o Mapa da Violência 2012:
Crianças e Adolescentes do Brasil (Julio Jacobo Waiselfisz, Flacso
Brasil/Cebela, 2012), com sua taxa de 13 homicídios para cada 100 mil
crianças e adolescentes, os brasileiros ostentam um trágico 4º lugar
entre 99 países do mundo em assassinatos de pessoas entre 1 e 19 anos,
ficando atrás somente de El Salvador, Venezuela e Trinidad e Tobago. As
taxas de homicídio nessa faixa etária cresceram 346% entre 1980 e 2010,
com 176.044 vítimas no período. Em 2010, foram 8.686 crianças e jovens
assassinados, uma média de 24 por dia. De acordo com dados do Sistema de
Informação de Agravos de Notificação (Sinan), do Ministério da Saúde,
responsável pela notificação de casos de violência doméstica e sexual,
em 2011 foram registrados 39.281 atendimentos de pessoas na faixa etária
entre 1 e 19 anos, representando 40% do total de atendimentos
computados pelo sistema.
Mas não é qualquer jovem a principal
vítima da violência no País. Levantamento realizado pelo Centro
Brasileiro de Estudos Latino-Americanos e pela Faculdade
Latino-Americana de Ciências Sociais – Flacso Brasil, intitulado Mapa da Violência 2012: A Cor dos Homicídios no Brasil,
publicado em dezembro de 2012, mostra que, entre 2002 e 2010, o número
de homicídios na população jovem (considerada a faixa etária entre 12 e
21 anos) caiu 33% entre brancos e, entre os negros, cresceu 23,4%. No
período, morreram 159.543 jovens negros vítimas de homicídios, e 70.725
jovens brancos.
Obviamente a vitimização de crianças e
adolescentes não chama tanta atenção da mídia, tampouco do poder
público. A situação remete a uma reflexão feita pelo deputado estadual
pelo Rio de Janeiro Marcelo Freixo, entrevistado na edição 121 de Fórum.
“A polícia entra na favela e cinco pessoas morrem, isso cria uma grande
comoção? Não. Porque, na nossa cabeça, essas pessoas já foram julgadas,
julgadas pelo nosso medo. ‘Polícia entra na USP e mata cinco’. Toda a
imprensa vai para lá”, ponderou na ocasião. “A dignidade tem endereço, a
decência humana tem endereço, é de classe.”
Responsabilidade penal e maioridade
Em meio ao turbilhão de informações que passou a circular nas redes sociais sobre redução da maioridade, muitas são equivocadas. Em geral, para justificar uma mudança na legislação brasileira, alguns buscam inspiração nas normas de outros países, mesmo sem considerar certas peculiaridades. Uma delas é confundir idades de “responsabilidade penal” de determinados lugares, que é quando o adolescente passa a ser responsabilizado por um ato previsto como crime, com a maioridade penal.
Em meio ao turbilhão de informações que passou a circular nas redes sociais sobre redução da maioridade, muitas são equivocadas. Em geral, para justificar uma mudança na legislação brasileira, alguns buscam inspiração nas normas de outros países, mesmo sem considerar certas peculiaridades. Uma delas é confundir idades de “responsabilidade penal” de determinados lugares, que é quando o adolescente passa a ser responsabilizado por um ato previsto como crime, com a maioridade penal.
“Todos os países têm em suas legislações
uma idade em que criança ou adolescente começa a ser responsabilizado
pelos seus atos infracionais. No Brasil, essa idade é de 12 anos, sendo
que na maioria dos países é de 14”, explica o professor de Direito Penal
da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) Túlio Vianna. Com base
no documento Cross-national Comparison of Youth Justice, elaborado por
Neal Hazel, da Universidade de Salford, é possível desfazer alguns
desses equívocos e verificar como alguns países elaboravam seus sistemas
de Justiça penal em relação a menores de idade até o ano do
levantamento, 2008.
A Organização das Nações Unidas (ONU)
sugere que a idade mínima da responsabilidade penal não seja muito
baixa, embora não faça uma recomendação específica, mas ressalta que é
preciso levar em conta os fatores de maturidade intelectual e emocional.
As ponderações e o trabalho do Comitê sobre Direitos da Criança do
órgão fez com que muitos países elevassem esse limite. Em 1977, Israel
mudou a idade de responsabilização de 9 para 13 anos; em 1979, Cuba
aumentou de 12 para 16; em 1983, a Argentina alterou de 14 para 16; em
1987, a Noruega mudou de14 para 15 e, em 2001, a Espanha elevou de 12
para 14 anos. Todos com uma idade mínima acima dos 12 anos estabelecidos
pela lei brasileira.
Em relação à maioridade, de acordo com o
estudo, a idade padrão de maioridade penal em todo o mundo é de 18
anos. Por sinal, é o que se recomenda na Convenção da ONU sobre os
Direitos da Criança, de 1989. Contudo, o conceito de maioridade também
tem nuances distintas conforme o país, podendo o adolescente perder a
prerrogativa de responder por seus atos diante do sistema especial
juvenil ou, por outro lado, continuar inserido nele mesmo após ter
atingido a idade para ser processado penalmente como adulto. Na
Alemanha, jovens de 18 a 21 anos podem ter a possibilidade de serem
julgados em cortes juvenis; na Suíça, pessoas até os 25 anos têm penas
menos severas do que os que estão acima dessa idade; e mesmo nos Estados
Unidos, que conta com legislações mais repressivas, estados como
Colorado, Havaí e Nova Jersey permitem que jovens cumpram sua pena
integralmente em estabelecimentos para menores infratores, inclusive
depois de terem atingido a idade adulta.
Ou seja, a opinião de que o sistema
brasileiro é “leve” não parece encontrar sustentação quando é feita uma
comparação com outros países. Aliás, em muitos casos a privação de
liberdade para um adolescente no Brasil pode até ser mais severa do que
para um adulto, como lembra o advogado André Luís Callegari, em
entrevista ao IHU On-Line. “Não nos damos conta, e ninguém faz essa
análise, mas muitas vezes o menor de idade cumpre uma medida
socioeducativa mais dura do que uma pessoa penalmente responsável.
Explico: o menor de 18 anos, quando pratica um delito, recebe a pena
máxima de três anos de internação. No caso de um maior praticar um
homicídio simples, a pena varia de seis a 20 anos. Se ele for condenado a
seis anos e cumprir um sexto da pena, ficará preso por um ano e poderá
trocar de regime, ficando no regime aberto. Quer dizer, ele sai mais
cedo da prisão”, argumenta. “Então, reduzir a maioridade penal é uma
alternativa falaciosa, porque queremos dar uma resposta à sociedade por
meio do Direito Penal. Esse não é o melhor caminho.”
“O ECA não é uma invenção brasileira, é
uma lei que representa um compromisso assumido pelo Brasil na comunidade
internacional, a versão brasileira da Convenção das Nações Unidas de
Direitos da Criança, de novembro de 1989, ratificada por todos os países
com assento na ONU, exceção feita aos Estados Unidos”, lembra o juiz
aposentado João Batista Costa Saraiva, coordenador da Área de Direito da
Criança e do Adolescente da Escola Superior da Magistratura RS. Ele
ainda ressalta que, mesmo entre os estadunidenses, há uma tendência à
adequação aos preceitos previstos na Convenção. “Alguns estados federais
mantinham a pena de morte para menores de 18 anos, mas a Suprema Corte
norte-americana, em 2005, declarou a inconstitucionalidade da pena de
morte para eles, um tratamento diferenciado em relação aos adultos”,
pontua. Em 2010, a Corte retirou da legislação crimes que, fora
homicídios, resultavam em prisão perpétua para jovens, sem direito à
liberdade condicional.
Para Saraiva, é um erro fazer analogias
como as de que, se o jovem pode votar aos 16 anos, também deveria ser
responsabilizado penalmente como adulto. “É bom lembrar que o voto aos
16 anos é facultativo, e a maioria não o exerce antes dos 18 anos. Além
disso, são inelegíveis”, destaca. “Mas desde que o Brasil ratificou a
Convenção, trabalhamos com a perspectiva de que os adolescentes não são
incapazes, têm responsabilidade relativa ao seu status, como
sujeito em desenvolvimento. Ele é responsável, sim, e pode ir preso a
partir dos 12 anos. Para a Fundação Casa em São Paulo, por exemplo, ele
vai algemado. O que distingue essa situação do sistema prisional adulto é
que existe um escopo pedagógico no sentido de estabelecer um conjunto
de possibilidades que lhe permita reconstruir sua vida.”
Histórias comuns
“Tive uma infância muito pobre, mano, passava fome demais, cara. Quando tinha 12 anos, perdi minha mãe, meu bem mais precioso, aí fui criado pelo meu pai. Com o passar do tempo, a situação foi apertando mais, a gente estava sem dinheiro em casa e entrei para o crime.” Paulo (nome fictício) contou parte da sua história ao repórter Igor Carvalho, durante a visita do rapper Dexter à unidade Encosta Norte da Fundação Casa. O jovem, que tem hoje 18 anos, vivia no Itaim Paulista, distrito extremo da zona leste de São Paulo, e foi preso por assalto à mão armada.
“Tive uma infância muito pobre, mano, passava fome demais, cara. Quando tinha 12 anos, perdi minha mãe, meu bem mais precioso, aí fui criado pelo meu pai. Com o passar do tempo, a situação foi apertando mais, a gente estava sem dinheiro em casa e entrei para o crime.” Paulo (nome fictício) contou parte da sua história ao repórter Igor Carvalho, durante a visita do rapper Dexter à unidade Encosta Norte da Fundação Casa. O jovem, que tem hoje 18 anos, vivia no Itaim Paulista, distrito extremo da zona leste de São Paulo, e foi preso por assalto à mão armada.
Hoje, ele pensa como vai ser sua vida ao
retornar às ruas. “Tenho um filho para criar no mundo lá fora, não
quero mais voltar para cá, cara. Vejo a vida com outros olhos, quero
terminar meus estudos e dar oportunidades diferentes para meu filho.
Quero que ele nunca pise aqui na Fundação.”
Quando perguntado sobre o que acha da
redução da maioridade penal, medida que não o afetaria mais, já que é
hoje maior de idade, ele é taxativo. “Vai mudar, mas é para pior.” E
justifica: “Porque aqui é um aprendizado, se eu fosse para uma cadeia ia
virar bandido mesmo. Frequentar uma cadeia não tem volta, morre ou fica
pior, mano, é outro mundo. Você vai pra lá e tem menos possibilidades
de voltar para a sociedade.”
Célio (nome fictício) também perdeu sua
mãe e seu irmão cedo, tendo sido criado pela avó. “Nessa época, não
tinha condição de ter um tênis ou uma roupa diferente e me envolvi com o
tráfico, aí isso me possibilitava muita coisa que eu não tinha e via na
rua: roupas, tênis, celular, e outras coisas.” Conta que começou a se
envolver com a venda de drogas aos 12 anos. “Eu vendia desde moleque, já
trafiquei bastante, até chegar num ponto que eu comecei a achar que
aquilo era errado e tentar achar um emprego, mas não consegui, aí eu
voltei.”
Tinha 15 anos quando acabou detido por
tráfico de drogas, de acordo com ele, injustamente na ocasião. “Na
época, eu tinha saído [do tráfico] e arrumado um emprego de
garçom. Estava trabalhando, mas era conhecido dos policiais, por ter
passagem, aí uma vez teve um B.O. [boletim de ocorrência, gíria para crime],
e eles foram me buscar e colocaram no meu nome. Aí, como você vai ter
moral pra falar com o juiz se teve passagem? É a sua palavra contra a do
policial.” Agora, pretende se qualificar. “Parei de estudar muito cedo,
aqui dentro mesmo tenho lido mais e quero continuar os cursos que fiz
aqui, para ter uma profissão”, relata.
Os dois depoimentos ilustram uma
realidade do sistema penal juvenil bastante similar à que ocorre no
sistema prisional adulto no que diz respeito a quem está privado de
liberdade. O recorte socioeconômico é evidente, com uma maioria de
jovens pertencentes a segmentos mais baixos da população. A socióloga
Bruna Gisi Martins de Almeida, pesquisadora do Núcleo de Pesquisa em
Sociologia Política da Universidade Federal do Paraná, cita em artigo
estudo de Silvana Cercal, que analisou cem processos de adolescentes que
estavam em internação provisória no Centro de Socioeducação de Curitiba
(Cense), entre maio e junho de 2006, constatando que, das 125 ocupações
desempenhadas pelos responsáveis dos jovens, 57,6% representavam uma
renda mensal menor que dois salários mínimos ou não havia qualquer renda
fixa.
A falta de estrutura familiar de boa
parte dos internos também salta aos olhos. Levantamento da Fundação Casa
realizado em 2006 apontava que 51% dos internos moravam só com a mãe;
16%, com o padrasto; 7%, só com o pai e 19%, sem o pai e nem a mãe. Na
matéria de Nina Fideles “De Febem a Fundação Casa”, publicada na edição
109 de Fórum, o pedagogo Carlos (nome fictício), que
trabalha na Fundação, ressalta que não há programa específico da
entidade que preste assistência ao jovem em seu retorno às ruas, e é o
suporte familiar que pode fazer a diferença entre reincidir ou não. “Se o
jovem tem uma família, que lhe preste todo o apoio inicial, ele até
consegue se recuperar. Mas, caso não tenha nada lá fora, provavelmente
volta”, analisa.
“Essa opção legislativa pela redução da
maioridade tem aspectos muito ruins como colocar, em um mesmo
estabelecimento, um jovem de 16 anos com um maior de 25, 30 anos. É uma
temeridade. O adolescente precisa do contato com a família e depois com a
comunidade. Justamente quando ele tem 14, 15, 16 anos e inicia esse
contato com a comunidade, qual o retorno que a sociedade vai dar para
ele? A prisão?”, questiona o pesquisador Luis Carlos Valois, da
Universidade de São Paulo (USP).
Soluções repressivas como aumento de
penas ou redução da maioridade podem soar bem em momentos de comoção,
mas a própria experiência brasileira aponta que o endurecimento da
legislação penal não assegura a diminuição da violência. A promulgação
da Lei de Crimes Hediondos, em 25 de julho de 1990, por exemplo, não
evitou que os índices de criminalidade crescessem, como aponta um estudo
do Instituto Latino-Americano das Nações Unidas para a Prevenção do
Delito e Tratamento do Delinquente (Ilanud), elaborado em 2006. Com a
lei, crimes como estupro, homicídio, sequestro, latrocínio e tráfico
foram considerados hediondos, passando a ser punidos com maior rigor. O
estudo chegou à conclusão de que “é possível afirmar que o endurecimento
penal, novamente, não interferiu na criminalidade registrada, mas
concorreu para o agravamento de um problema bastante sério – a
superpopulação prisional.”
Esse cenário de superlotação é
evidenciado por números do Sistema de Informações Penitenciárias
(Infopen), do Ministério da Justiça, referentes a dezembro de 2012.
Hoje, a população carcerária do Brasil é de 548 mil pessoas, mas há
somente 310,6 mil vagas no sistema prisional brasileiro, representando
um déficit de 237,4 mil lugares. Entre 1994 e 2009, o número de
presídios no país mais que triplicou, passando de 511 para 1.806, de
acordo com o Departamento Penitenciário Nacional, mas não foi o
suficiente para abrigar todos os condenados, já que, nos últimos 23
anos, a população carcerária do país cresceu 511%, o que para muitos
evidencia uma verdadeira política de encarceramento que atinge
principalmente as classes mais baixas, sem conseguir frear o aumento da
violência. Tal quadro seria agravado ainda mais com a entrada de jovens
no sistema penitenciário comum.
Essa é outra preocupação daqueles que se
posicionam contra a redução da maioridade. A Constituição, em seu
artigo 5º, inciso 48, determina que “a pena será cumprida em
estabelecimentos distintos, de acordo com a natureza do delito, a idade e
o sexo do apenado”, mas não é isso que ocorre na prática em função do
déficit de vagas em presídios no Brasil.
“Um cidadão que cometeu um delito como
tráfico de drogas não pode estar na mesma prisão de um latrocida, cujo
crime envolve violência. O problema de se colocar jovens de 16 anos no
sistema prisional adulto são as consequências que isso vai acarretar,
tanto para o menor quanto para a sociedade”, acredita Valois, que também
questiona a finalidade de “ressocialização” que o sistema penitenciário
não cumpre. “O termo ‘ressocialização’ nasceu após a Segunda Guerra
Mundial, quando a ONU começou a promover encontros internacionais e a
olhar para os países ocidentais, vendo que tínhamos também nossos campos
de concentração, as prisões. Quando percebeu isso, tentaram justificar
esses campos de concentração em vez de acabar com eles, argumentando que
eles tinham fins de ressocializar”, explica, lembrando de um fato que
exemplifica as condições do cárcere no Brasil e do tratamento que é dado
a quem é preso. “Tiveram quatro presos que estavam sob responsabilidade
da Vara de Execuções Criminais onde eu trabalhava, quatro detentos que
morreram queimados em um incêndio porque estavam algemados às camas.
Eram dependentes químicos e estavam em crise de abstinência.”
“Reduzir a idade penal para lançar
adolescentes nos presídios se faz um equívoco irreparável, porque, no
País, se há algo pior do que o chamado ‘sistema Febem’ é o sistema
penitenciário”, argumenta Saraiva. De acordo com a assessoria de
imprensa da Fundação Casa, a reincidência caiu de 29%, em 2006, para
13,5%, em 2013. Ainda que alguns ex-internos possam fazer parte das
estatísticas do sistema penitenciário adulto mais tarde, o índice é bem
menor que o verificado entre os presos adultos. Ariel de Castro Alves,
advogado e ex-integrante do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e
do Adolescente (Conanda), destaca que os índices de reincidência no
sistema prisional adulto chegam a ultrapassar 60% .
Alternativas à redução
Hoje, no Congresso Nacional, tramitam 25 projetos que têm como objetivo reduzir a maioridade penal, e sete deles teriam condições ir à votação no plenário, mas ainda não entraram na pauta dos parlamentares. Também há propostas como a do senador Paulo Bauer (PSDB-SC), que prevê sanções civis para jovens infratores sem redução da idade penal, como a postergação do início da maioridade civil de 18 para os 21 anos, elevação para os mesmos 21 da idade mínima para habilitação de condução de veículos e a suspensão de direitos políticos pelo período em que durar a medida socioeducativa de internação.
Duas das propostas de emenda
constitucional (PEC) que tramitam no Senado pretendem criar um modelo
“híbrido” de maioridade. Uma, a PEC 74/2011, pretende reduzir de 18 para
15 anos a maioridade penal nos casos de homicídio doloso e latrocínio.
Já a PEC 33/2012 prevê que, a partir dos 16 anos, jovens poderão ser
punidos como adultos se cometerem crimes inafiançáveis ou reincidirem em
crimes de lesão corporal grave ou roubo qualificado. Para Túlio Vianna,
trata-se de uma maioridade penal seletiva, que teria como alvo o
adolescente de classe econômica mais baixa. “Resta saber se essa mesma
sociedade que clama hoje pela redução da maioridade penal vai aceitar
amanhã que seus filhos também sejam presos pelas brigas nas quais se
envolverem na saída dos colégios; ou pelos insultos aos professores e
colegas nas redes sociais; ou pelas violações de direitos autorais na
internet; ou pelo uso de drogas; ou por dirigirem sem habilitação. Ou
será que a proposta seria punir apenas os adolescentes pobres?”,
questiona, em artigo de O Estado de S.Paulo.
“Em quase 90% dos casos, a resposta que o
Estado dá é tão ou mais gravosa que a dada pelo sistema penal aos
maiores de 18 anos. O problema estaria nos delitos graves, para os quais
o Estatuto fixa em três anos o limite da internação sem direito a
atividades externas”, pondera Saraiva. Para ele, é necessário discutir
aprimoramentos da legislação, mas tendo como parâmetro o próprio ECA e
as experiências acumuladas durante os 22 anos de sua vigência. “É
possível estabelecer faixas de responsabilização distintas em face da
gravidade do delito, proporcionando mecanismos de defesa social mais
eficientes do que aqueles concebidos em 1990.” Ele cita como exemplo o
limite máximo de privação de liberdade, fixado em três anos, mas que em
países vizinhos como Colômbia e Chile podem chegar a oito e dez anos,
respectivamente, de forma similar ao que ocorre na Alemanha, onde esse
período pode alcançar dez anos.
Para Luis Valois, o debate sobre a
redução da maioridade penal também se relaciona com outras questões.
“Boa parte da sociedade, desde a escola primária, não tem nenhuma
formação política, e nossa capacidade de engajamento tem diminuído dia
após dia. Descrente da atividade política, entrega-se a seus instintos e
deixa de raciocinar em termos comunitários, raciocinando somente em
termos individuais. E o que sobra? O egoísmo e a vingança, um instinto
não racional”, pondera. Segundo ele, é preciso destacar também o papel
desempenhado pelo Judiciário no contexto do discurso repressivo.
“Infelizmente, hoje o juiz se vê mais como um justiceiro, e proporcionar
um debate nesse meio [o Judiciário] é muito difícil, os
movimento sociais poderiam propor possibilidades de solução, mas também
estão entorpecidos por essa lógica. Muitas vezes, também clamam por
prisão para determinados crimes, e reforçam, assim, um sistema que é
contra eles mesmos.” F
Vingança não é justiça
No jornal Folha de S. Paulo de
28 de abril, um depoimento vai de encontro a muito do que se fala a
respeito da defesa da redução da maioridade penal. Luiza Pastor,
jornalista de 56 anos, contou um episódio que viveu quando tinha 19
anos. Estudante da Universidade de São Paulo (USP) à época, ela foi
violentada por um menor de idade e, apesar da terrível experiência, se
posiciona de forma contrária à redução da maioridade penal.
“A única coisa que eu conseguia pensar
era que não devia reagir. Aguentei a humilhação e a violência do
estupro, chorando de raiva e vergonha, mas finalmente tudo acabou e
ainda estava viva”, lembrou. Na delegacia, soube do passado do agressor.
“Egresso de várias detenções, tinha o estupro por atividade predileta,
mas sempre se safara. Filho de mãe prostituta e pai desconhecido, havia
sido criado pela avó, uma senhora evangélica que tentara salvar-lhe a
alma à custa de muitas surras. Era óbvio que algo havia dado muito
errado no processo.”
Ao escutar uma “proposta” feita por um
policial, que se dispôs a “mandar logo um tiro” no menor, ela rejeitou a
ação. “Ainda me chamaram de covarde, por discordar de um justiçamento. E
insinuaram que, se eu tinha pena dele, era porque, vai ver, tinha até
gostado. Não preciso dizer do alívio que senti ao embarcar, dois dias
depois, para fora deste País.”
Em seu depoimento, ela conta como
separou o desejo de vingança daquilo que idealizava como justiça. “Eu
tinha claro que a vítima, ali, era eu. Que, se tivesse tido ferramenta,
oportunidade e sangue frio, eu teria gostado de poder matar o safado que
me violentara – e dormiria tranquila o resto da vida. Mas tinha mais
claro ainda que a vingança que meu sangue pedia não cabia à Justiça,
muito menos àquele que pretendia descontar no criminoso sua própria
impotência.”
“Se os políticos quiserem fazer algo
realmente eficaz para combater o crime na escalada absurda em que
vivemos, terão de enfrentar os pedidos de vingança dos ofendidos da vez e
criar um sistema penitenciário que efetivamente recupere quem pode e
deve ser recuperado. Sem isso, qualquer mudança nas leis será pura e
simples vingança. E vingança não é Justiça”, concluiu Luiza.
A tragédia e o diversionismo
No dia 11 de abril, após o assassinato
do jovem Victor Hugo Deppman, o governador paulista Geraldo Alckmin
(PSDB) anunciava que iria encaminhar ao Congresso Nacional uma proposta
para aumentar o tempo de internação de adolescentes que cometeram crimes
graves. Em 27 de abril, o secretário da Segurança Pública de São Paulo,
Fernando Grella Vieira, defendeu uma revisão da legislação penal por
conta da alegada participação de um adolescente (entre quatro suspeitos,
três adultos) no assassinato da dentista Cinthya Magaly Moutinho de
Souza.
Não é a primeira vez que Alckmin propõe
um endurecimento da lei referente a infrações de menores de 18 anos. Em
2003, após o assassinato de um casal de jovens em Embu-Guaçu, região
metropolitana de São Paulo, com a participação do adolescente conhecido
como Champinha (preso até hoje em uma unidade de internação
psiquiátrica), ele fez proposta semelhante. As ocasiões das duas
propostas não soam apenas como oportunismo, mas sim uma reação do
governador àquele que pode ser o seu calcanhar de Aquiles nas eleições
de 2014.
Antes favorito absoluto à reeleição, o
tucano viu sua popularidade cair após a onda de violência que
recrudesceu no segundo semestre de 2012. “De acordo com o Datafolha, em
setembro, 40% dos eleitores consideravam seu governo ótimo ou bom e, em
novembro, esse índice foi para 29%. Entre aqueles que apontavam seu
governo como ruim ou péssimo, o percentual foi de 17% para 25%.
Em 2013, a capital paulista teve 305
homicídios registrados de janeiro a março, diante de 258 no mesmo
período de 2012, um aumento de 18,2%. Também cresceram na cidade os
casos de estupro: 867, em 2013, e 688 no primeiro trimestre do ano
passado, e o número de roubos e latrocínios, 28.123 casos de janeiro a
março deste ano e 27.570 nos três primeiros meses de 2012. Pregar
contra a legislação penal para menores parece ser a tática diversionista
de Alckmin.
O juiz de Direito Marcelo Semer, em
artigo publicado em seu blogue, dá a chave do que pode ser uma
explicação para o comportamento do governador. “Talvez seja um pouco
mais difícil explicar porque quando os índices de criminalidade baixam, a
vitória deve ser creditada à Administração, mas quando sobem, o
problema é da lei.”
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