Movimento não é saudosista, nem anti-civilizatório. Mas sustenta:
sem rever padrões de consumo e produção, “progresso” resultará em
desigualdade e devastação
Por Alan Bocato-Franco
Pouco frequente, ainda, no Brasil,
um debate tomou corpo e expandiu-se rapidamente nos últimos anos, em
paralelo ao desconforto com o capitalismo e seus impasses. Trata-se da
ideia de “decrescimento”. “Outras Palavras” abordou-o em diversos
textos, no passado — mas deu-lhe destaque especial em 10 de outubro. Um artigo do
cientista político catalão Vicenç Navarro criticava “algumas teorias”
do decrescimento. Em sua opinião, elas acabam reduzindo-se a um
ambientalismo elitista e antissocial, ao sugerirem, diante de países em
crise, a continuação das políticas de “austeridade”, que geram mais
desemprego e desindustrialização.
O artigo de Navarro gerou
importante polêmica, na seção de comentários dos leitores. “Outras
Palavras” convidou um dos polemistas, Alan Bocato-Franco, a escrever uma
réplica. O resultado foi melhor que a encomenda. Muito mais que
polemizar com Navarro — com quem, aliás, parece compartilhar pontos de
vista –, Alan traça, no texto a seguir, um importante panorama sobre o
origem, sentido e história das teorias do “decrescimento”.
É algo de enorme
atualidade, num país que precisa encontrar uma síntese entre duas
posições igualmente indispensáveis. Por um lado, as críticas cada vez
mais frequentes a símbolos antes intocáveis do “progresso” — por
exemplo, o automóvel, as grandes obras viárias e a multiplicação de
projetos de geração de energia, desacompanhada de uma análise séria
sobre o consumo de eletricidade. Por outro, a ênfase na redistribuição
de riqueza e na necessidade de assegurar condições de vida dignas à
ampla maioria da população — o que exige, por exemplo, muito mais
infra-estrutura (portanto, obras…) de transporte público, saneamento ou
urbanização das periferias. (A.M.)
–
O movimento pelo decrescimento tem sido alvo de crítica recorrentes e
repetitivas. De modo geral, acusam-no de tratar o crescimento econômico
apenas em termos quantitativos, sem considerar suas variantes
qualitativas. Além disso (ou por isso), afirma-se que seus defensores
são malthusianos, porque propõem que a população e o consumo global
sejam estabilizados, se não reduzidos. Seriam os decrescentistas
saudosistas de um estilo de vida pré-civilizatório, por não reconhecerem
que o progresso tecnológico libertou a população humana dos limites
biofísicos da natureza e nos apresentou o progresso? Este artigo tem
como objetivo dialogar com essas críticas.
A questão do crescimento
Há, no decrescimento, uma defesa explícita pelo aumento das
atividades econômicas que fortalecem a saúde humana e a diminuição das
que intoxicam a sociedade. Defende as atividades que causam impactos
menos acentuados e a diminuição das que degradam o ambiente de modo
acelerado. Defende ainda o aumento das que fortalecem a autonomia das
pessoas, estreitam seus laços e distribuem renda e a diminuição das que
alienam, fragilizam as relações sociais e geram exclusão. Mas os
decrescentistas reconhecem que mesmo para as atividades econômicas
qualitativamente diferenciadas os limites biofísicos do planeta
persistem. Certamente a humanidade terá uma maior margem de manobra. Mas
os limites ao crescimento econômico continuarão existindo.
A partir disto, a qualidade do crescimento econômico é relevante, mas
secundário. O ponto principal é o paradigma do crescimento ilimitado. O
decrescimento coloca em questão o modelo de sociedade, e as teorias de
desenvolvimento que o sustentam, que tem o crescimento como condição
fundamental para a “harmonia” socioeconômica ou, em outras palavras, a
ausência de crise. Para o decrescimento, uma sociedade organizada sob o
paradigma do crescimento ilimitado está fadada ao fracasso, pois é
impossível crescer indefinidamente seja qual for a qualidade desse
crescimento.
População, consumo e tecnologia
O decrescimento reconhece como verdadeira a equação I=PAT
formulada por Ehrlich. Essa referência aparece de modo pontual e
periférico em algumas publicações do decrescimento (1). Ela nada mais
diz que o impacto ambiental (I) tem relação direta com o tamanho da
população (P), sua afluência ou consumo (A) e a tecnologia (T). Com base
nela, os decrescentistas aceitam a conclusão de que a redução de (A)
por suficiência e sobriedade, bem como a de (T) pelo progresso
tecnológico não determinam a redução indefinidamente do impacto sem que a
população seja estabilizada ou diminua.
Dessas três variáveis, o decrescimento foca sua crítica no consumo. E
por isso, seus partidários são acusados de negligenciarem os avanços
tecnológicos. A verdade é que o decrescimento não nega que estratégias
como reciclagem, diversificação da matriz energética e ecoeficiência
sejam essenciais e devam ser estimuladas. Mas não as vê como soluções
salvadoras do crescimento econômico ilimitado. Desta forma, reconhece a
tecnologia sem a ingenuidade de acreditar que seu avanço seja prova de
que a sociedade não deve se libertar da “gaiola do consumismo” (2). De
modo que somente numa sociedade fora do paradigma do crescimento, que
tem como base o consumismo, a tecnologia ganha alguma eficácia para
conciliar atividade econômica e capacidade de carga do planeta.
Já a variável população está muito pouco presente na literatura e nos
debates sobre o decrescimento (3). A redução da população é
categoricamente entendida como uma falsa solução (4). Quando se trata de
uma eventual regulação da população, ela deve ser igualitária e
democrática, em vez de violenta e desumana, conforme propunha Malthus.
Os decrescentistas rejeitam a limitação do número de filhos e assumem
uma transição demográfica por meio da emancipação das mulheres, da
alfabetização e da democracia (5).
Diferentes raízes
O decrescimento não tem uma única raiz. Podem ser identificadas até
seis fontes intelectuais do movimento (6) como: 1) ecológica; 2)
pós-desenvolvimentista e anti-utilitarista (7); 3) sentido da vida e bem
viver (8); 4) bioeconômica (9); 5) democrática (10) e; 6) justiça (11).
Uma das influências intelectuais é Ivan Illich, que figura em duas
dessas seis fontes (2 e 5). Uma das inspirações buscadas nesse autor
está no processo de “coisificação” que consiste na transformação da
percepção das necessidades reais em produtos manufaturados de massa. Ou
seja, as necessidades reais das pessoas transformam-se na necessidade
por produtos industriais: a sede se converte na necessidade de um
refrigerante, a mobilidade se reduz à necessidade de se ter um carro e a
saúde se transforma na necessidade de tomar remédios e suplementos
comprados numa farmácia. Assim, a indústria passa a deter um monopólio
radical sobre as necessidades humanas. A técnica industrial cria as
necessidades fictícias para as pessoas, e sugere que apenas os bens e
serviços produzidos por ela são capazes de atender essas necessidades.
Uma das críticas feitas pelo decrescimento e inspiradas em Illich
recai sobre a hegemonia do sistema de saúde pautado numa abordagem
industrial, individual, privatista e heteronômica. Isso não significa
negar os avanços da medicina científica. Aponta-se, isto sim, a
apropriação perversa da medicina pela indústria, que transforma a
primeira em mero produto destinado ao consumo. Ao denunciar este
processo, o decrescimento pretende contribui para a democratização do
acesso à medicina científica. Mais do que isto, denuncia a supremacia da
prática médica em detrimento às outras formas de conhecimento e
práticas de cuidado com a saúde. Isto implica em entender a saúde
individual e coletiva a partir de múltiplas perspectivas. É ampliar o
leque das possibilidades de cuidados, de modo que ao mesmo tempo
aumenta-se a autonomia do indivíduo em cuidar de si, naquilo que for
adequado. Em outros casos, defende-se acesso democrático ao serviço
especializado.
Diferentes correntes
Sobre o tema do decrescimento, existem dezenas de livros, centenas de
artigos acadêmicos, muitos blogs, inúmeros coletivos de experimentação
prática, grupos de discussão, de pesquisa e de formação em países dos
hemisférios Norte e Sul (12), inclusive o Brasil (13) que se
auto-reconhecem como parte do movimento pelo decrescimento. Todos à sua
maneira e entendimento vêm contribuindo para a construção das múltiplas
identidades e entendimentos sobre o decrescimento. Há inclusive uma
sistematização (14), que não abrange a totalidade dessa diversidade, que
reconhece ao menos duas “vertentes” que se complementam: o
decrescimento à francesa, que foca sua crítica à modernidade; e o
decrescimento sustentável, mais alinhado com a disciplina Economia
Ecológica. Assim, este é um movimento ainda em processo de formação e
significação, sendo que qualquer crítica dirigida a ele baseada em
apenas um único autor constitui um erro precário.
A novidade
Ao reconhecer e divulgar suas fontes intelectuais, o decrescimento
assume que o debate que provoca não é novo (15). Desta forma, o
decrescimento ao mesmo tempo, incorpora e articula movimentos e autores
que já empreenderam criticas à modernidade, ao desenvolvimentismo, ao
consumismo, à democracia, à impossibilidade de generalização do padrão
de consumo dos países e das classes ricas e às desigualdades ecológica e
social.
Mas o decrescimento abre perspectivas radicalmente novas, quando
denuncia que, sem superar o paradigma do crescimento ilimitado, o
crescimento das economias já desenvolvidas irá agravar as desigualdades
globais. Além de explicitar que todas as teorias de desenvolvimento,
sejam quais forem, tratam de como provocar mais crescimento econômico.
Ademais, o decrescimento retoma o debate sobre a autonomia da sociedade
com relação ao Estado e sobre a influência da razão contábil e
instrumental das grandes burocracias públicas ou privadas. Assim, os
decrescentistas rejeitam as falsas soluções que se focam apenas na
gestão e na escolha dos tipos de recursos. Mais que isto, os
decrescentistas buscam provocar mudanças de sentido, não só dos meios,
mas também dos fins (16). Em suma, a novidade está no entendimento de
que sem modificar a essência do modelo socioeconômico e dos valores
pessoais não haverá saída.
-1. KERSCHNER, C. Economic de-growth vs. steady-state economy. Growth, Recession or Degrowth for Sustainability and Equity?, v. 18, n. 6, p. 544–551, abr. 2010;
MARTINEZ-ALIER J. Environmental justice and economic degrowth: An alliance between two movements. Capitalism, Nature, Socialism, v. 23, n. 1, p. 51–73, 2012.
SORMAN, A. H.; GIAMPIETRO, M. The energetic metabolism of societies and the degrowth paradigm: analyzing biophysical constraints and realities. Degrowth: From Theory to Practice, v. 38, n. 0, p. 80–93, jan. 2013.
XUE, J.; ARLER, F.; NÆSS, P. Is the degrowth debate relevant to China? Environment, Development and Sustainability, v. 14, n. 1, p. 85–109, 2012.
2. JACKSON, T. Prosperity without growth: economics for a finite planet. London: Earthscan, 2009.
3. A questão da população, sobretudo relacionada às ideias de Ehrlich, considerado por alguns como um autor malthusiano, não é sequer citada em diversos livros sobre o decrescimento, em edições especiais de revistas acadêmicas dedicadas exclusivamente ao decrescimento ele tampouco figura entre as raízes intelectuais do movimento. Para verificação veja:
BAYON, D. et al. Decrecimiento : 10 preguntas para comprenderlo y debatirlo. [Mataró]: Ediciones de interveción cultural/El Viejo Topo, 2011.
DEMARIA F et al. What is degrowth? from an activist slogan to a social movement. Environmental Values, v. 22, n. 2, p. 191–215, 2013.
FLIPO, F. Conceptual roots of degrowth Proceedings of the First International Conference on Economic De-Growth for Ecological Sustainability and Social Equity. Paris: Research & Degrowth, Telecom Sud-Paris, 2008
KALLIS, G.; KERSCHNER, C.; MARTINEZ-ALIER, J. (EDS.). Special Section: The Economics of Degrowth. Ecological Economics, v. 84, n. 0, p. 172–269, dez. 2012.
LATOUCHE, S. Pequeno Tratado do Decrescimento Sereno. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2009.
LATOUCHE, S. La apuesta por el decrecimiento ¿cómo salir del imaginario dominante? Barcelona: Icaria, 2009.
MARTINEZ-ALIER, J. et al. Sustainable de-growth: Mapping the context, criticisms and future prospects of an emergent paradigm. Ecological Economics, v. 69, n. 9, p. 1741–1747, 2010.
TAIBO, C. En defensa del decrecimiento : sobre capitalismo, crisis y barbarie. Madrid: Los Libros de la Catarata, 2009.
4. Ver a subseção “Uma falsa solução: reduzir a população” do livro Pequeno tratado do decrescimento sereno, de Latouche (2009) – citado acima.
5. Ver o capítulo “El decrecimiento, ¿es malthusiano?” do livro Decrecimiento: 10 preguntas para comprenderlo y debatirlo, de Bayon e colaboradores (2011) – citado acima.
6. DEMARIA e colaboradores (2013) – citado acima
7. Algumas referencias desta fonte intelectual são: os criticos do desenvolvimento das décadas de 1970 e 1980, como Latouche, Arturo Escobar, Gilbert Rist, Helena Norberg-Hodge, Majid Rahnema, Wolfgang Sachs, Ashish Nandy, Shiv Visvanathan, Gustavo Esteva, François Partant, Bernard Charbonneau e Ivan Illich. Inclui também os críticos inspirados por Marcel Mauss como Alain Caillé e outros membros do MAUSS. Além de outros autores como Karl Polanyi e Marshall Sahlins.
8. Algumas referencias desta fonte intelectual são Henry David Thoreau, Pierre Rabhi, Mongeau, Schumacher, Kumarappa e Easterlin.
9. Georgescu-Roegen, Herman Daly, Donella Meadows, Kenneth Boulding, E. F. Schumacher, Howard T. Odum e Elizabeth C. Odum
10. Algumas referências desta fonte intelectual são: Ivan Illich, Jacques Ellul e Cornelius Castoriadis.
11. Uma das referências desta fonte intelectual é Paul Aries
12. Demaria e colaboradores (2013) – citado acima
13. BOCCATO-FRANCO, A. A. O decrescimento no Brasil. In: LÉNA, P.; NASCIMENTO, E. P. DO (Eds.). Enfrentando os limites do crescimento: sustentabilidade, decrescimento e prosperidade. Rio de Janeiro: Garamond, 2012. p. 269–288.
14. Martínez-Alier e colaboradores (2010) – citado acima
15. Para verificação: Latouche (2009); Bayon e colaboradores (2011) e Martínez-Alier e colaboradores (2010) – citados acima.
16. KALLIS, G. In defence of degrowth. Ecological Economics, v. 70, n. 5, p. 873–880, 2011.
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