O geógrafo
britânico David Harvey é um dos pensadores mais influentes da
atualidade. Unindo geografa urbana, marxismo e filosofia social na
compreensão das contradições do mundo contemporâneo, sua obra é um forte
eixo de renovação da tradição crítica e ganha especial relevância num
contexto de explosão de movimentos contestatórios urbanos no Brasil e no
mundo.
Neste artigo clássico publicado originalmente na revista New Left Review
em 2008, Harvey se inspira nas ideias de Henri Lefebvre para analisar a
ligação entre urbanização e capitalismo. Traçando paralelos entre o
histórico processo de reurbanização de Paris empreendida pelo Barão de
Haussmann e o projeto de urbanização de Robert Moses para a Nova Iorque
do pós-guerra, ele enfoca o crescimento exponencial das cidades hoje
como sintoma de uma crise sistêmica da acumulação capitalista.
Examinando as mutações nas dinâmicas de resistência popular – da Comuna
de Paris ao ativismo comunitário de Jane Jacobs – Harvey ressalta a urgência democratizar experiência urbana.
*
Vivemos
numa época em que os ideais de direitos humanos tomaram o centro do
palco. Gasta-se muita energia para promover sua importância para a
construção de um mundo melhor. Mas, de modo geral, os conceitos em
circulação não desafiam de maneira fundamental a lógica de mercado
hegemônica nem os modelos dominantes de legalidade e de ação do Estado.
Vivemos, afinal, num mundo em que os direitos da propriedade privada e a
taxa de lucro superam todas as outras noções de direito. Quero explorar
aqui outro tipo de direito humano: o direito à cidade.
Será que o
espantoso ritmo e a escala da urbanização nos últimos 100 anos
contribuíram para o bem-estar do homem? A cidade, nas palavras do
sociólogo e urbanista Robert Park, é:
a
tentativa mais bem-sucedida do homem de refazer o mundo em que vive
mais de acordo com os desejos do seu coração. Mas, se a cidade é o mundo
que o homem criou, é também o mundo onde ele está condenado a viver
daqui por diante. Assim, indiretamente, e sem ter nenhuma noção clara da
natureza da sua tarefa, ao fazer a cidade o homem refez a si mesmo.
Saber que
tipo de cidade queremos é uma questão que não pode ser dissociada de
saber que tipo de vínculos sociais, relacionamentos com a natureza,
estilos de vida, tecnologias e valores estéticos nós desejamos. O
direito à cidade é muito mais que a liberdade individual de ter acesso
aos recursos urbanos: é um direito de mudar a nós mesmos, mudando a
cidade. Além disso, é um direito coletivo, e não individual, já que essa
transformação depende do exercício de um poder coletivo para remodelar
os processos de urbanização. A liberdade de fazer e refazer as nossas
cidades, e a nós mesmos, é, a meu ver, um dos nossos direitos humanos
mais preciosos e ao mesmo tempo mais negligenciados.
Desde seus
primórdios, as cidades surgiram nos lugares onde existe produção
excedente, aquela que vai além das necessidades de subsistência de uma
população. A urbanização, portanto, sempre foi um fenômeno de classe,
uma vez que o controle sobre o uso dessa sobreprodução sempre ficou
tipicamente na mão de poucos [pense, por exemplo, num senhor feudal]. Sob o capitalismo, emergiu uma conexão íntima entre o desenvolvimento do sistema e a urbanização.
Os
capitalistas têm de produzir além de seus custos para ter lucro; este,
por seu lado, deve ser reinvestido para gerar mais lucro. A perpétua
necessidade de encontrar territórios férteis para a geração do lucro e
para seu reinvestimento é o que molda a política do capitalismo. Mas os
capitalistas enfrentam uma série de barreiras à expansão contínua e
desimpedida. Se a mão de obra é escassa e os salários são altos, a mão
de obra existente tem de ser disciplinada, ou então é preciso encontrar
mão de obra nova através da imigração e investimentos no exterior. O
capitalista também deve descobrir novos recursos naturais, o que exerce
uma pressão crescente sobre o meio ambiente.
As leis da
competição também levam ao desenvolvimento contínuo de novas tecnologias
e formas de organização, que permitem ao capitalista superar os
concorrentes que utilizam métodos inferiores. As inovações definem novos
desejos e necessidades, reduzem o tempo de giro do capital e a
distância que antes limitava o âmbito geográfico onde o capitalista pode
procurar outras fontes de mão de obra, matérias-primas, e assim por
diante.
Se não
houver poder aquisitivo suficiente no mercado, então é preciso encontrar
novos mercados, expandindo o comércio exterior, promovendo novos
produtos e estilos de vida, criando novos instrumentos de crédito, e
financiando os gastos estatais e privados. Se, finalmente, a taxa de
lucro for muito baixa, a regulamentação estatal da “concorrência
destrutiva”, a criação de monopólios por meio de fusões e aquisições e
os investimentos no exterior oferecem saídas.
Se nenhuma
das barreiras acima puder ser contornada, o capitalista não conseguirá
reinvestir seu lucro de maneira satisfatória. A acumulação fica
bloqueada, deixando-o diante de uma crise em que o seu capital pode se
desvalorizar. As mercadorias perdem o valor, enquanto a capacidade
produtiva
e as máquinas seguem se depreciando e são
deixadas sem uso. No final, o próprio dinheiro pode ser desvalorizado
pela inflação, e o trabalho pelo desemprego em massa.
De que
maneira, então, a necessidade de contornar essas barreiras e expandir o
terreno da atividade lucrativa impulsionou a urbanização no capitalismo?
Defendo aqui que a urbanização desempenhou um papel especialmente
ativo, ao lado de fenômenos como os gastos militares, na absorção da
produção excedente que os capitalistas produzem perpetuamente em sua
busca por lucros.
* * *
Considere,
primeiro, o caso de Paris no Segundo Império. O ano de 1848 trouxe uma
das primeiras crises nítidas, e em escala europeia, de capital não
reinvestido e de desemprego. O golpe foi especialmente duro em Paris, e
provocou uma revolução fracassada de trabalhadores desempregados e de
utopistas burgueses. A burguesia republicana reprimiu violentamente os
revolucionários, mas não conseguiu resolver a crise. O resultado foi a
ascensão ao poder de Luís Napoleão Bonaparte, ou Napoleão III, que
arquitetou um golpe de Estado em 1851 e se proclamou imperador no ano
seguinte.
Para
sobreviver politicamente, ele recorreu à repressão generalizada dos
movimentos políticos alternativos. Sua maneira de lidar com a situação
econômica foi implantar um vasto programa de investimentos em
infraestrutura, tanto no país como no exterior. Isso significou a
construção de ferrovias em toda a Europa, chegando até o Oriente, bem
como apoio para grandes obras, como o Canal de Suez. No âmbito interno,
veio a consolidação da rede ferroviária, a construção de portos grandes e
pequenos, a drenagem de pântanos. E, acima de tudo, a reconfiguração da
infraestrutura urbana de Paris. Em 1853, Napoleão III chamou
Georges-Eugène Haussmann para cuidar das obras públicas da cidade.
Haussmann
entendeu claramente que sua missão era ajudar a resolver o problema do
capital e do desemprego por meio da urbanização. Reconstruir Paris
absorveu enormes volumes de dinheiro e mão de obra pelos padrões da
época, e, juntamente com a supressão das aspirações dos trabalhadores
parisienses, foi um veículo primordial para a estabilização social.
Haussmann adotou ideias dos planos que os seguidores dos socialistas
utópicos Charles Fourier e Saint-Simon haviam debatido na década de 1840
para remodelar Paris, mas com uma grande diferença: ele transformou a
escala em que o processo urbano foi imaginado.
Quando o
arquiteto Jacques Ignace Hittorff mostrou a Haussmann seus planos para
uma nova avenida, Haussmann os atirou de volta, dizendo: “Não é bastante
larga (…). O senhor quer 40 metros de largura, e eu quero 120.” Ele
anexou os subúrbios e transformou bairros inteiros, como Les Halles.
Para fazer tudo isso, Haussmann precisou de instituições financeiras e
de crédito. Ele ajudou a resolver o problema da destinação do capital
criando um sistema protokeynesiano de melhorias urbanas de
infraestrutura financiadas por títulos de dívida.
O sistema
funcionou muito bem por uns quinze anos, e envolveu não só a
transformação da infraestrutura urbana como também a construção de um
novo modo de vida e uma nova personalidade urbana. Paris tornou-se a
Cidade Luz, o grande centro de consumo, turismo e prazer; os cafés, as
lojas de departamentos, a indústria da moda, as grandes exposições –
tudo isso modificou a vida urbana de modo que ela pudesse absorver o
dinheiro e as mercadorias, por meio do consumismo.
Mas foi
então que o sistema financeiro especulativo e as instituições de crédito
superdimensionadas quebraram, em 1868. Haussmann foi demitido; Napoleão
III, em desespero, foi à guerra contra a Alemanha de Bismarck e saiu
derrotado. No vácuo que se seguiu surgiu a Comuna de Paris, um dos
maiores episódios revolucionários da história do capitalismo urbano –
nascida, em parte, de uma nostalgia daquele mundo que Haussmann tinha
destruído, e do desejo de retomar a cidade por parte dos que se viram
despossuídos pelas obras que ele impôs.
* * *
Saltemos
agora para a década de 1940 nos Estados Unidos. A enorme mobilização
para o esforço de guerra resolveu temporariamente a questão de como
investir o capital excedente, problema que parecera tão intratável na
década de 30, e do desemprego que o acompanhava. No entanto, todos
temiam o que aconteceria depois da guerra. Politicamente a situação era
perigosa: o governo federal adotava, na verdade, uma economia
nacionalizada e estava em aliança com a União Soviética comunista,
enquanto fortes movimentos sociais com inclinações socialistas haviam
surgido na década de 30.
Como na
época de Napoleão III, uma boa dose de repressão política foi exigida
pelas classes dominantes da época; a história subsequente do macarthismo
e da política da Guerra Fria, da qual já havia sinais abundantes no
início dos anos 40, é bem conhecida. Na frente econômica, restava a
questão de saber de que modo o capital poderia ser reinvestido.
Em 1942, uma extensa avaliação dos esforços de Haussmann foi publicada na revista Architectural Forum.
A matéria documentava em detalhes o que ele tinha feito e tentava
analisar seus erros, mas procurava recuperar sua reputação como um dos
maiores urbanistas de todos os tempos. O autor do artigo foi ninguém
menos que Robert Moses, que depois da Segunda Guerra Mundial fez com
Nova York o que Haussmann tinha feito em Paris. Ou seja, Moses mudou a
escala com que se pensava o processo urbano.
Por meio de
um sistema de rodovias, transformação da infraestrutura, expansão para
os subúrbios e uma reengenharia total, não só da cidade como de toda a
região metropolitana, ele ajudou a resolver o problema da aplicação do
dinheiro. Para tanto, Moses utilizou novas instituições financeiras e
esquemas tributários que liberavam o crédito para financiar a expansão
urbana. Levado, em âmbito nacional, a todos os grandes centros
metropolitanos do país, esse processo teve papel crucial na
estabilização do capitalismo global depois de 1945, período em que os
Estados Unidos conseguiram impulsionar toda a economia mundial não
comunista acumulando déficits comerciais.
A chamada
suburbanizaçãodos Estados Unidos não envolveu apenas a renovação da
infraestrutura. Como na Paris do Segundo Império, acarretou uma
transformação radical no estilo de vida, trazendo novos produtos, desde
casas até geladeiras e aparelhos de ar-condicionado, assim como dois
carros na garagem e um enorme aumento no consumo de petróleo. Também
alterou o panorama político, pois a casa própria subsidiada para a
classe média mudou o foco de ação da comunidade, que passou para a
defesa dos valores da propriedade e da identidade individual, inclinando
o voto dos subúrbios para o conservadorismo. Dizia-se que os donos da
casa própria, sobrecarregados de dívidas, seriam menos propensos a
entrar em greve.
Esse projeto
conseguiu garantir a estabilidade social, embora ao custo de esvaziar o
centro das cidades e gerar conflitos urbanos entre aqueles, sobretudo
negros, a quem foi negado o acesso à nova prosperidade.
No fim dos
anos 60, outro tipo de crise começou a se desenrolar: Moses, tal como
Haussmann, caiu em desgraça, e suas soluções passaram a ser vistas como
inapropriadas e inaceitáveis. Os tradicionalistas deram apoio à
urbanista e ativista Jane Jacobs, autora de Morte e vida das grandes cidades,
e procuraram se contrapor ao modernismo brutal dos projetos de Moses
propondo uma estética que voltava a valorizar a vida nos bairros. Mas os
subúrbios já tinham sido construídos, e a mudança radical de estilo de
vida que estes simbolizavam teve muitas consequências sociais, levando
as feministas, por exemplo, a proclamar que o subúrbio era o símbolo de
todos os seus descontentamentos básicos.
Se o projeto
de Haussmann teve papel importante na dinâmica da Comuna de Paris, a
vida sem alma dos subúrbios também teve papel fundamental nos
acontecimentos dramáticos de 1968 nos Estados Unidos. Estudantes da
classe média branca, insatisfeitos, entraram numa fase de revolta,
buscaram alianças com grupos marginalizados que reivindicavam seus
direitos civis e uniram a forças contra o imperialismo americano,
criando um movimento para construir um mundo diferente – incluindo uma
experiência urbana diferente.
Em Paris, a
campanha para deter a via expressa na margem esquerda do rio Sena e a
destruição de bairros tradicionais por torres e arranha-céus, como a
Torre Montparnasse, influenciaram a revolta de 68. Foi nesse contexto
que o sociólogo e filósofo marxista Henri Lefebvre escreveu A revolução urbana,
que afirmava que a urbanização era essencial para a sobrevivência do
capitalismo e, portanto, estava destinada a tornar-se um foco crucial da
luta política e de classes; e que a urbanização estava apagando as
distinções entre a cidade e o campo, com a produção de espaços
integrados em todo o território do país. Para Lefebvre, o direito à
cidade tinha de significar o direito de comandar todo o processo urbano,
que ia ampliando seu domínio sobre o campo, por meio de fenômenos como o
agronegócio, as casas de campo e o turismo rural.
Junto com a revolta de 68 veio a crise das instituições de crédito que tinham alimentado o boom imobiliário
nas décadas anteriores. A crise ganhou força no final dos anos 60, até
que todo o sistema capitalista entrou em queda, começando com o estouro
da bolha imobiliária mundial em 1973, seguido pela falência fiscal da
cidade de Nova York em 1975.
* * *
Façamos
outro salto adiante, agora para a atualidade. O capitalismo
internacional já vinha de uma montanha-russa de quebras regionais – a
crise asiática de 1997–98; a russa de 1998; a argentina de 2001 –, mas
até recentemente tinha evitado uma quebra global, mesmo diante de uma
incapacidade crônica de utilizar o capital excedente.
Qual foi o
papel da urbanização para estabilizar essa situação? Nos Estados Unidos,
o consenso é que o setor imobiliário foi um importante estabilizador da
economia, em especial após o estouro da bolha da alta tecnologia do fim
dos anos 90. O mercado imobiliário absorveu diretamente grande volume
de dinheiro, através da construção de residências e escritórios no
centro das cidades e nos subúrbios; ao mesmo tempo, o aumento do preço
dos imóveis – apoiado por uma onda perdulária de refinanciamento de
hipotecas a um juro baixo recorde – impulsionou o mercado interno
americano de serviços e bens de consumo.
A expansão
urbana americana serviu para estabilizar, parcialmente, a economia
global, com os Estados Unidos acumulando enormes déficits comerciais em
relação ao resto do mundo e tomando emprestado cerca de 2 bilhões de
dólares por dia para alimentar seu insaciável consumismo e suas guerras
no Afeganistão e no Iraque.
Mas o processo urbano sofreu uma transformação de escala. Em resumo, ele se globalizou. Booms imobiliários
na Grã-Bretanha, na Espanha e em muitos outros países ajudaram a
alimentar uma dinâmica capitalista muito parecida com a que se
desenvolveu nos Estados Unidos.
A
urbanização da China nos últimos vinte anos teve um caráter diferente,
com foco intenso no desenvolvimento da infraestrutura, mas é ainda mais
importante que a dos Estados Unidos. Seu ritmo se acelerou enormemente
depois de uma breve recessão em 1997, a tal ponto que a China vem usando
quase a metade de todo o cimento mundial desde 2000. Mais de 100
cidades chinesas já ultrapassaram a marca de 1 milhão de moradores nesse
período, e lugares que antes eram pequenas aldeias, como Shenzhen, se
tornaram grandes metrópoles de 6 a 10 milhões de pessoas. Vastos
projetos de infraestrutura, incluindo barragens e autoestradas, estão
transformando a paisagem.
A China não
passa do epicentro de um processo de urbanização que agora se tornou
verdadeiramente global, em parte devido à espantosa integração dos
mercados financeiros, que usam sua flexibilidade para financiar o
desenvolvimento urbano em todo o mundo. O Banco Central chinês, por
exemplo, teve forte atuação no “mercado secundário de hipotecas” nos
Estados Unidos, enquanto o banco Goldman Sachs esteve muito envolvido na
alta do mercado imobiliário em Mumbai, na Índia, e o capital de Hong
Kong vem investindo na cidade americana
de Baltimore.
Em meio a
uma enxurrada de imigrantes pobres, a construção civil disparou em
Joanesburgo, Taipei e Moscou, assim como em cidades dos países
capitalistas centrais, como Londres e Los Angeles. Projetos de
megaurbanização espantosos, quando não criminalmente absurdos, surgiram
no Oriente Médio, em lugares como Dubai e Abu Dhabi, absorvendo o
excesso da riqueza petrolífera com o máximo possível de ostentação,
injustiça social e desperdício ambiental.
Essa escala
global torna difícil entender que o que está acontecendo é, em
princípio, semelhante às transformações que Haussmann comandou em Paris.
Pois o boom da urbanização global dependeu, tal como todos os
outros antes dele, da construção de novas instituições e arranjos
financeiros que organizem o crédito necessário para sustentá-la. As
inovações financeiras iniciadas nos anos 80 – como a revenda em todo o
mundo de papéis lastreados nas dívidas hipotecárias – tiveram papel
crucial. Seus muitos benefícios incluíam a dispersão do risco, o que não
significou eliminá-lo.
Sem
controles adequados, essa onda de “financeirização” se transformou na
chamada crise das hipotecas podres e do valor dos imóveis. As
consequências se concentraram, primeiro, nas cidades americanas e em
torno delas, com implicações particularmente graves para os negros de
baixa renda e famílias chefiadas por mulheres solteiras. A crise também
afetou aqueles que, sem poder pagar os preços exorbitantes da habitação
nos centros urbanos, foram forçados a morar nas semiperiferias
metropolitanas. Nesses lugares, as pessoas compraram a juros,
inicialmente baixos, casas padronizadas em condomínios construídos
especulativamente; com a crise, passaram a enfrentar o aumento do custo
do transporte para o trabalho e das prestações da hipoteca.
* * *
Como em
todas as fases anteriores, a expansão mais recente do processo de
urbanização trouxe consigo mudanças incríveis no estilo de vida. A
qualidade da vida nas cidades virou uma mercadoria, num mundo onde o
consumismo, o turismo e as indústrias culturais e do conhecimento se
tornaram aspectos importantes da economia urbana.
A tendência
pós-modernista de incentivar a formação de nichos de mercado, nos
hábitos de consumo e nas expressões culturais, envolve a experiência
urbana contemporânea numa aura de liberdade de escolha – desde que se
tenha dinheiro. Proliferam os shopping centers, cinemas multiplex e
lojas padronizadas, as lanchonetes e as lojas artesanais. Temos agora,
nas palavras da socióloga Sharon Zukin, a “pacificação pelo cappuccino”.
Até os
empreendimentos imobiliários monótonos e insípidos dos subúrbios
americanos, que continuam a dominar em algumas áreas, agora recebem um
antídoto no movimento do “novo urbanismo”, que pretende vender uma
réplica customizada da vida nas cidades. É um mundo em que a ética
neoliberal de individualismo, acompanhada pela recusa de formas
coletivas de ação política, se torna o modelo para a socialização
humana.
Vivemos,
cada vez mais, em áreas urbanas divididas e propensas a conflitos. Nos
últimos trinta anos, a virada neoliberal restaurou o poder de elites
ricas. Catorze bilionários surgiram no México desde então, e em 2006 o
país ostentava o homem mais rico do planeta, Carlos Slim, ao mesmo tempo
em que a renda dos pobres tinha estagnado ou diminuído. Os resultados
estão indelevelmente gravados no espaço das nossas cidades, que cada vez
mais consistem de fragmentos fortificados, condomínios fechados e
espaços públicos privatizados, mantidos sob vigilância constante. Em
especial no mundo em desenvolvimento, a cidade, como escreveu o
urbanista italiano Marcello Balbo,
está
se partindo em fragmentos diferentes, com a aparente formação de
“microestados”. Bairros ricos dotados de todo tipo de serviços, como
escolas exclusivas, campos de golfe, quadras de tênis e segurança
particular patrulhando a área 24 horas, convivem com favelas sem
saneamento, onde a energia elétrica é pirateada por uns poucos
privilegiados, as ruas viram torrentes de lama quando chove, e a norma é
a moradia compartilhada. Cada fragmento parece viver e funcionar de
forma autônoma, aferrando-se firmemente ao que conseguiu agarrar na luta
diária pela sobrevivência.
Nessas
condições, os ideais de identidade urbana, cidadania e pertencimento se
tornam muito mais difíceis de sustentar. A redistribuição privatizada
por meio de atividades criminosas ameaça a segurança individual a cada
passo, provocando a demanda popular pela repressão policial. Até mesmo a
ideia de que a cidade possa funcionar como um corpo político coletivo,
um lugar dentro do qual e a partir do qual possam emanar movimentos
sociais progressistas, parece implausível. Há, porém, movimentos sociais
urbanos tentando superar o isolamento e remodelar a cidade segundo uma
imagem diferente daquela apresentada pelas incorporadoras imobiliárias,
apoiadas pelos financistas, as grandes corporações e um aparato estatal
local com mentalidade cada vez mais influenciada pelos negócios.
* * *
O investimento
capitalista na transformação das cidades tem um aspecto ainda mais
sinistro. Ele acarretou repetidas ondas de reestruturação urbana através
da “destruição criativa”, que quase sempre tem uma dimensão de classe,
uma vez que são os pobres, os menos favorecidos e os marginalizados do
poder político que sofrem mais com o processo. A violência é necessária
para construir o novo mundo urbano sobre os destroços do velho.
Haussmann
arrasou os velhos cortiços parisienses, usando o poder de expropriação
do Estado em nome do progresso e da renovação cívica. Ele organizou
deliberadamente a remoção de grande
parte da classe trabalhadora e de outros elementos indisciplinados do
Centro da cidade, onde constituíam uma ameaça à ordem pública e ao poder
político. Criou um desenho urbano no qual se acreditava –
incorretamente, como se viu em 1871 – que haveria um nível de vigilância
e controle militar suficiente para garantir que os movimentos
revolucionários fossem dominados facilmente. No entanto, como Friedrich
Engels apontou em 1872:
Na
realidade, a burguesia tem apenas um método de resolver o problema da
habitação à sua maneira – isto é, resolvê-lo de tal forma que a solução
reproduz, continuamente, o mesmo problema. Esse método se chama
“Haussmann” (…) Por mais diferentes que sejam as razões, o resultado é
sempre o mesmo; as vielas e becos desaparecem, o que é seguido de
pródigos autoelogios da burguesia por esse tremendo sucesso, mas eles
aparecem de novo imediatamente em outro lugar (…) A mesma necessidade
econômica que os produziu vai produzi-los no lugar seguinte.
O
aburguesamento do Centro de Paris levou mais de 100 anos para se
completar, com as consequências vistas nos últimos anos – revoltas e
caos nos subúrbios onde se tenta engaiolar os marginalizados, os
imigrantes, os desempregados. O ponto mais triste, claro, é que o
processo descrito por Engels se repete ao longo da história. Robert
Moses “atacou o Bronx com uma machadinha”, em suas próprias e infames
palavras, provocando lamentos de movimentos de bairro.
Nos dois
casos, Paris e Nova York, depois que a resistência conseguiu conter as
desapropriações promovidas pelo Estado, um processo mais insidioso se
instalou por meio da especulação imobiliária e da destinação dos
terrenos para os que deles fizessem “maior e melhor uso”. Engels
compreendeu muito bem essa sequência:
O
crescimento das grandes cidades modernas dá à terra em certas áreas, em
particular as de localização central, um valor que aumenta de maneira
artificial e colossal; os edifícios já construídos nessas áreas lhes
diminuem o valor, em vez de aumentá-lo, porque já não pertencem às novas
circunstâncias. Eles são derrubados e substituídos por outros. Isso
acontece, sobretudo, com as casas dos trabalhadores que têm uma
localização central e cujo aluguel, mesmo com o máximo de superlotação,
não poderá jamais, ou apenas muito lentamente, aumentar acima de um
certo limite. Elas são derrubadas e no seu lugar são construídas lojas,
armazéns e edifícios públicos.
Embora essa
descrição seja de 1872, ela se aplica diretamente ao desenvolvimento
urbano contemporâneo em boa parte da Ásia – Nova Delhi, Seul, Mumbai – e
à gentrificação de Nova York. Um processo de deslocamento, e o que
chamo de “acumulação por desapropriação”, está no cerne da urbanização
sob o capitalismo. E está originando numerosos conflitos devido à tomada
de terras valiosas de populações de baixa renda, que em muitos casos
vivem ali há muitos anos.
Considere o
caso de Seul nos anos 1990: construtoras e incorporadoras contrataram
grupos de capangas para invadir bairros pobres nos morros da cidade.
Eles derrubaram a marretadas não só as moradias como todos os bens
daqueles que tinham construído suas próprias casas nos anos 50, em
terrenos que depois se valorizaram muito. Arranha-céus, que não mostram
nenhum vestígio da brutalidade que permitiu a sua construção, agora
recobrem a maior parte dessas encostas.
Em Mumbai, 9
milhões de pessoas oficialmente consideradas moradores de favelas estão
assentadas em terras sem título legal de propriedade; todos os mapas da
cidade deixam esses lugares em branco. No esforço de transformar Mumbai
num centro financeiro mundial rivalizando com Xangai, o boom imobiliário
se acelerou e a terra ocupada por esses moradores parece cada vez mais
valiosa. Dharavi, uma das maiores favelas de Mumbai, está avaliada em 2
bilhões de dólares. A pressão para limpar o terreno – por motivos
ambientais e sociais que mascaram a usurpação das terras – aumenta dia a
dia. Poderes financeiros apoiados pelo Estado pressionam pelo despejo
forçado das favelas. Desse modo a acumulação de capital pela atividade
imobiliária vai ao auge, uma vez que a terra é adquirida a custo quase
zero.
Exemplos de
desapropriação também podem ser encontrados nos Estados Unidos, embora
tendam a ser menos brutais e mais legalistas: o governo abusa do seu
direito de desapropriar, deslocando pessoas que moram em habitações
razoáveis em favor de um uso da terra mais rentável, com condomínios ou
lojas. Quando esse procedimento foi contestado na Suprema Corte
americana, os juízes decidiram que era constitucional que os municípios
se comportassem dessa maneira, a fim de aumentar sua arrecadação com os
impostos imobiliários.
Na China,
milhões de pessoas estão sendo despejadas dos espaços que ocupam há
longo tempo – 3 milhões só em Pequim. Como não possuem direitos de
propriedade, o Estado pode simplesmente removê-las por decreto,
oferecendo um pequeno pagamento para ajudá-las na transição antes de
entregar a terra para as construtoras, com grandes lucros. Em alguns
casos, as pessoas se mudam de boa vontade, mas também há relatos de
resistência generalizada; contra esta, a reação habitual é a repressão
brutal do Partido Comunista.
E o que
dizer da proposta aparentemente progressista de conceder direitos de
propriedade privada a populações de assentamentos informais,
fornecendo-lhes recursos que lhes permitam sair da pobreza? Tal sistema
está sendo sugerido para as favelas do Rio de Janeiro, por exemplo. O
problema é que os pobres, sofrendo com a insegurança de renda e
frequentes dificuldades financeiras, podem ser facilmente persuadidos a
trocar sua casa por um pagamento relativamente baixo em dinheiro. Os
ricos normalmente se recusam a ceder seus ativos a qualquer preço, e é
por isso que Moses pôde atacar com sua machadinha o Bronx, uma área de
baixa renda, mas não a Park Avenue.
O efeito
duradouro da privatização feita por Margaret Thatcher da habitação
social na Grã-Bretanha foi criar uma estrutura de renda e de preços em
toda a área metropolitana de Londres que impede as pessoas de baixa
renda, e até mesmo de classe média, de ter acesso à moradia em qualquer
lugar perto do centro urbano. Posso apostar que dentro de quinze anos,
se as tendências atuais continuarem, todos os morros do Rio agora
ocupados por favelas estarão cobertos por prédios altos com uma vista
fabulosa, enquanto os antigos moradores das favelas terão sido
filtrados, excluídos e estarão morando em alguma periferia remota.
* * *
A urbanização, podemos concluir, vem desempenhando um papel fundamental no reinvestimento dos lucros, a uma escala geográfica crescente,
mas ao preço de criar fortes processos de destruição criativa que
espoliaram as massas de qualquer direito à cidade. O planeta como
canteiro de obras se choca com o “planeta favela”.
Periodicamente isso termina em revolta. Se, como parece provável, as
dificuldades aumentarem e a fase até agora bem-sucedida, neoliberal,
pós-moderna e consumista do investimento na urbanização estiver no fim e
uma crise mais ampla se seguir, então surge a pergunta: onde está o
nosso 1968, ou, ainda mais dramaticamente, a nossa versão da Comuna de
Paris? Tal como acontece com o sistema financeiro, a resposta tende a
ser mais complexa porque o processo urbano hoje tem âmbito mundial.
Há sinais de
rebelião por toda parte: as agitações na China e na Índia são crônicas,
travam-se ferozes guerras civis na África, a América Latina está em
efervescência. Qualquer uma dessas revoltas pode se tornar contagiosa.
Ao contrário do sistema financeiro, entretanto, os movimentos sociais
urbanos e das periferias das cidades não têm em geral conexão uns com os
outros. E se, de alguma forma, eles vierem a se unir, o que deveriam
exigir?
A resposta a
essa pergunta é bastante simples em princípio: um maior controle
democrático sobre a produção e a utilização do lucro. E uma vez que o
processo urbano é um dos principais canais de uso desse dinheiro, criar
uma gestão democrática da sua aplicação constitui o direito à cidade. Ao
longo de toda a história do capitalismo, uma parte do lucro foi
tributada, e em fases social-democratas
a proporção à disposição do Estado aumentou significativamente. O
projeto neoliberal dos últimos trinta anos caminhou para privatizar esse
controle.
Os dados
para todos os países da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento
Econômico mostram, porém, que a fatia estatal da produção bruta tem sido
mais ou menos constante desde os anos 70. Assim, a principal conquista
neoliberal foi evitar que a parcela pública se ampliasse, como ocorreu
nos anos 60. O neoliberalismo também criou novos sistemas de governança
que integraram os interesses estatais e empresariais, garantindo que os
projetos governamentais para as cidades favoreçam as grandes empresas e
as classes mais altas. Aumentar a proporção do dinheiro em poder do
Estado só terá um impacto positivo se o próprio Estado voltar a ficar
sob controle democrático.
A cada mês
de janeiro, o Estado de Nova York publica uma estimativa do total de
bônus concedidos aos altos executivos pelos bancos e financeiras de Wall
Street nos doze meses anteriores. Em 2007, um ano desastroso para os
mercados financeiros, os bônus totalizaram 33,2 bilhões de dólares,
apenas 2% menos que no ano anterior. Em meados de 2007, os bancos
centrais americano e europeu injetaram bilhões de dólares em créditos de
curto prazo no sistema financeiro para garantir a sua estabilidade; em
seguida o Banco Central americano reduziu drasticamente as taxas de
juros e injetou vastas quantidades de dinheiro no mercado a cada vez que
o índice da Bolsa de Valores ameaçava despencar.
Enquanto
isso, cerca de 2 milhões de pessoas foram despejadas por não poder mais
pagar as prestações de suas casas. Muitos bairros em diversas cidades
americanas foram cobertos de tapumes e vandalizados, destruídos pelas
práticas predatórias de empréstimos das instituições financeiras. Essa
população não recebeu nenhum bônus. Essa assimetria não pode ser
interpretada como nada menos que uma forma maciça de confronto de
classes.
No entanto,
ainda não vimos uma oposição coerente a esses fatos no século XXI. Já
existem em muitos países, claro, movimentos sociais focados na questão
urbana. Em 2001, o Brasil aprovou o Estatuto da Cidade, depois de anos
de pressão de movimentos sociais pelo reconhecimento do direito coletivo
à cidade. Mas esses movimentos não convergiram para o objetivo único de
ganhar mais controle sobre os usos do dinheiro – e muito menos sobre as
condições da sua produção.
Nesse ponto
da história, essa tem de ser uma luta global, predominantemente contra o
capital financeiro, pois essa é a escala em que ocorrem hoje os
processos de urbanização. Sem dúvida, a tarefa política de organizar um
tal confronto é difícil, se não desanimadora. Mas as oportunidades são
múltiplas, pois, como mostra esta breve história, as crises eclodem
repetidas vezes em torno da urbanização e a metrópole é hoje o ponto de
confronto – ousaríamos chamar de luta de classes? — a respeito da
acumulação de capital pela desapropriação dos menos favorecidos e do
tipo de desenvolvimento que procura colonizar espaços para os ricos.
Um passo
para a unificação dessas lutas é adotar o direito à cidade, como slogan e
como ideal político, precisamente porque ele levanta a questão de quem
comanda a relação entre a urbanização e o sistema econômico. A
democratização desse direito e a construção de um amplo movimento social
para fazer valer a sua vontade são imperativas para que os despossuídos
possam retomar o controle que por tanto tempo lhes foi negado e
instituir novas formas de urbanização. Lefebvre estava certo ao insistir
em que a revolução tem de ser urbana, no sentido mais amplo do termo;
do contrário, não será nada.
* Publicado originalmente na New Left Review 53, Set/Out, 2008.
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