Sobre as greves - elucidativo ...
Que a greve
causa transtornos ninguém há de negar. Que a greve quebra a normalidade,
também é fato. E, por consequência, que haja resistência à greve,
sobretudo daqueles que, direta ou indiretamente, são atingidos por ela, é
compreensível. Aliás, há de se reconhecer que mesmo os grevistas, que
se sacrificam na greve, pois precisam se organizar e se submeter aos
ataques daqueles que são alvo imediato da greve, os quais se valem,
inclusive, de estruturas repressivas para tanto, não vislumbram a greve
como um objetivo de vida, reconhecendo-a, unicamente, como um
instrumento necessário para a luta.
Agora, que professores ligados às ciências sociais e humanas se reúnam para organizar um Manifesto contra a greve,
aí temos uma novidade que vale a pena examinar, na medida em que é de
conhecimento geral que o estágio atual da sociedade, no que se refere à
criação de direitos sociais e à ampliação das possibilidades de atuação
democrática, resulta de inúmeras greves, que, em outros tempos, já
chegaram a gerar o sacrifício de muitas vidas.
É impossível não reconhecer no instituto da greve, que, por meio da própria experiência, adquiriu o status de
um direito fundamental, ligado à livre manifestação, e do qual advêm o
direito à associação e o direito à sindicalização, o mais importante
instrumento de modificação da realidade social em prol daqueles que se
situam em posição de inferioridade ou vulnerabilidade no arranjo
sócio-econômico do mundo capitalista, isso quando não se organizam para
uma ação política de natureza revolucionária, sendo certo que a própria
greve, de índole reivindicatória, pode se constituir um embrião desta
última luta.
Os valores
que permeiam a sociedade atual são fruto de greves e de mobilizações
sociais históricas como o trabalhismo, o feminismo, o pacifismo, os
movimentos contra o racismo e contra a discriminação religiosa, e, mais
presentemente, pela preservação ambiental, incluindo a luta pelos
direitos dos animais.
Não se pode
olvidar que todos esses movimentos foram rechaçados pelas estruturas de
poder, voltadas à preservação do “status quo”, mas que mesmo assim, como
resultado do embate, proporcionaram a construção de uma nova realidade,
tendo assumido papel extremamente relevante para tanto as atentas e
profundas análises de historiadores e sociólogos, que souberam superar a
racionalidade reacionária, advinda, sobretudo, da ciência jurídica.
A questão intrigante é que o papel de resistência aos avanços sociais sempre foi reservado ao Direito e um Manifesto recentemente assinado por mais de 150 professores da FFLCH-USP parece pretender uma inversão neste posicionamento histórico.
O fato é que
várias decisões judiciais começam a acatar de forma mais efetiva e
ampla o conceito do direito de greve, como se verificou, por exemplo,
nos processos ns. 114.01.2011.011948-2 (1ª. Vara da Fazenda Pública de
Campinas); 00515348420125020000 (Seção de Dissídios Coletivos do TRT2); e 1005270-72.2013.8.26.0053 (12ª. Vara da Fazenda Pública do Estado de São Paulo).
De tais
decisões extraem-se valores como o reconhecimento da legitimidade das
greves de estudantes, dos métodos de luta, incluindo a ocupação, e do
conteúdo político das reivindicações, decisões estas, aliás, proferidas
sob o amparo de uma decisão do Supremo Tribunal Federal, na qual se
consagrou a noção constitucional de que a greve é destinada aos
trabalhadores em geral, sem distinções, e que a estes “compete decidir
sobre a oportunidade de exercê-lo e sobre os interesses que devam por
meio dela defender”, sendo fixado também o pressuposto de que mesmo a
lei não pode restringir a greve, cabendo à lei, isto sim, protegê-la.
Esta decisão consignou de forma cristalina que estão
“constitucionalmente admissíveis todos os tipos de greve: greves
reivindicatórias, greves de solidariedade, greves políticas, greves de
protesto” (Mandado de Injunção 712, Min. Relator Eros Roberto Grau).
Trilhando o caminho dessa decisão, recentemente, o Min. Luiz Fux, também do STF, impôs novo avanço à compreensão do direito de greve, reformando decisão do Tribunal de Justiça do Rio (TJ-RJ) no que tange ao corte de ponto dos professores da rede estadual em greve. Em sua decisão, argumentou o Ministro:
“A
decisão reclamada, autorizativa do governo fluminense a cortar o ponto e
efetuar os descontos dos profissionais da educação estadual,
desestimula e desencoraja, ainda que de forma oblíqua, a livre
manifestação do direito de greve pelos servidores, verdadeira garantia
fundamental” (Reclamação 16.535).
Além disso, a
Justiça do Trabalho, em decisões reiteradas de primeiro e segundo
graus, tem ampliado o sentido do direito de greve como sendo um “direito
de causar prejuízo”, extraindo a situação de “normalidade”, com
inclusão do direito ao piquete, conforme decisões proferidas na 4ª. Vara
do Trabalho de Londrina (processo n. 10086-2013-663-09-00-4), no
Tribunal Regional do Trabalho da 17ª. Região (processo n.
0921-2006-009-17-00-0), na Vara do Trabalho de Eunápolis/BA (processo n.
0000306-71-20130-5-05-0511), todas sob o amparo de outra recente
decisão do Supremo Tribunal Federal, esta da lavra do Min. Dias Toffoli
(Reclamação n. 16.337), que assegurou a competência da Justiça do
Trabalho para tratar de questões que envolvem o direito de greve, nos
termos da Súmula Vinculante n. 23, do STF, integrando o piquete a tal conceito.
Bem se vê, portanto, que o aludido Manifesto busca atrair para as ciências sociais o papel reacionário que historicamente se atribuía às ciências jurídicas.
É evidente
que as decisões acima não refletem, ainda, o pensamento único, ou mesmo
majoritário, no âmbito do Judiciário, sobre essas questões, mas,
certamente, pode-se traçar uma linha evolutiva no sentido da ampliação
do conceito do direito de greve, garantindo-lhe uma posição privilegiada
na relação com os demais direitos, sobretudo os de índole liberal,
notadamente o direito de ir e vir, que não pode, como nenhum outro, ser
valorado em abstrato e sem inserção no contexto dos demais direitos
sociais.
O desafio
atual da ciência jurídica está, exatamente, no questionamento acerca da
persistência do direito individual de trabalhar quando uma greve, na
qualidade de autêntico direito coletivo, é deflagrada, ainda mais
considerando os termos da própria Lei n. 7.783/89 (que é bastante
restritiva do direito de greve, diga-se de passagem) que estabelece, em
seu art. 9º., que a continuação dos serviços deve ser definida mediante
acordo entre o sindicato patronal ou o empregador diretamente com o
sindicato ou a comissão de negociação, mesmo no que se refere aos
“serviços cuja paralisação resultem em prejuízo irreparável, pela
deterioração irreversível de bens, máquinas e equipamentos, bem como a
manutenção daqueles essenciais à retomada das atividades da empresa
quando da cessação do movimento”. Ou seja, para a lei, a tentativa do
empregador de manter-se funcionando normalmente, sem negociar com os
trabalhadores em greve, valendo-se das posições individualizadas dos
ditos “fura-greves”, representa ato ilícito, que afronta o direito de
greve.
A decisão de
trabalhar, ou não, no período de greve não pertence a cada trabalhador,
individualmente considerado. Daí porque, também, apresenta-se como
legítima toda forma, pacífica (ou seja, que não chega à agressão
física), de impedir que o trabalho, para além das necessidades
inadiáveis, continue sendo executado, seja por vontade individual de um
trabalhador (ou vários), seja pela contratação, por parte do empregador,
de empregados para a execução dos serviços, não se admitindo até mesmo
que empregados de outras categorias, como terceirizados, por exemplo,
supram as eventuais necessidades de mera produção dos empregadores no
período.
Assim,
piquetes e até ocupações pacíficas no local de trabalho se justificam
para que se faça prevalecer, em concreto, o legítimo e efetivo exercício
do direito de greve, na medida em que se veja ameaçado por atos
ilícitos do empregador que, valendo-se de pressão aberta ou velada com
relação aos grevistas e sugerindo premiações aos que não aderirem à
greve, tenta destruir a greve sem se dispor ao necessário diálogo com os
trabalhadores, sendo certo que o diálogo somente adquire nível de
equilíbrio quando os que se situam em posição de inferioridade buscam a
ação coletiva.
Qualquer
tipo de ameaça ao grevista ou promessa de prêmio ou promoção aos não
grevistas constitui ato anti-sindical, tal como definido na Convenção 98
da OIT
(ratificada pelo Brasil, em 1952), que justifica, até, a apresentação
de queixa junto ao Comitê de Liberdade Sindical da referida Organização.
Essa é a
tensão atual vivenciada pelo Direito com relação à greve e o que menos
se precisa neste instante, pensando na evolução dos arranjos sociais, é
que o saber das ciências sociais venha a público levantar bandeiras
reacionárias, que, mesmo sob a retórica de se firmar a favor do direito
de greve, opõe-se ao piquete e aniquila a greve como meio de luta.
A oposição menos ainda se justifica no contexto histórico da USP,
onde as recentes lutas de estudantes, servidores e professores, desde
2007, foram bastante exitosas e serviram, inclusive, como importante
paradigma para a própria reformulação da ciência jurídica em torno do
direito de greve, transpondo os muros da Universidade. A injustificada
resistência despreza, também, o quanto as mobilizações, no acúmulo das
experiências, favoreceram a produção do conhecimento em torno das
questões políticas, sociais, econômicas e acadêmicas que envolvem a
estrutura da Universidade e sua relação com a sociedade em geral e a
ordem jurídico-democrática, experiências estas que, inclusive,
possibilitaram o desenvolvimento de consciência crítica e efetivo
exercício da ética, da solidariedade e da organização coletiva. Mais
importante, ainda, as lutas permitiram a compreensão sobre a ligação dos
interesses entre estudantes e trabalhadores, com inclusão dos antes
invisíveis trabalhadores terceirizados.
É interessante perceber a contradição do Manifesto,
que se baseia na lógica da individualidade, mas que, ao mesmo tempo, se
socorre da ação coletiva, buscando a legitimação do argumento pelo
número de assinaturas, mas fazendo-o sem respeito a qualquer esfera
institucionalizada de deliberação coletiva, desprezando, pois, a via
pública da ação política, ao mesmo tempo em que se auto-proclama
representante de corrente majoritária, ainda que não apresente
embasamento técnico científico para tal afirmação.
Em suma, no
atual estágio da luta pela consagração do Direito Constitucional de
greve, como preceito fundamental, o que se espera é que a resistência
não venha da ciência social, vez que das estruturas de poder,
considerando os interesses de parte do segmento econômico e do próprio
governo, as gritas já são, historicamente, muito fortes.
Por fim, há de considerar, no caso concreto da luta da USP,
que no momento em que se está tentando derrubar as estruturas arcaicas e
autoritárias da Universidade, atraindo uma racionalidade democrática e
ao mesmo tempo sensível às questões sociais, e esta luta não começou
ontem e não tem sido nada fácil, perpassando gerações, apresenta-se, no
mínimo, como valor bastante mesquinho a vontade de manter a
“normalidade”…
Como já preconizado por José Martí, “Si no luchas, ten al menos la decencia de respetar a quienes si lo hacen”!
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