Por Edson Teles.
Entramos nos
mês de novembro e as ruas continuam sendo tomadas por protestos. Talvez
a maior conquista das “manifestações de junho” seja a ampliação da
ideia do que seja público por parte dos movimentos e práticas sociais. É
impressionante a quantidade de ações ocorrendo no país, em qualquer
canto, a propósito das mais variadas demandas.
O atual
contexto torna viável a retomada de alguns modos de ponderar sobre a
ação política contemporânea, fazendo uso das percepções tornadas
visíveis pela experiência das manifestações de rua e suas significações.
A relação
política entre as ruas, em sua maior parte resultado da ação dos
movimentos sociais, e os lugares instituídos de governo, sejam do Estado
ou não, parece ser uma classificação possível para refletirmos sobre a
atual democracia.
Desta forma,
temos, por um lado, a lógica de governo praticada no Estado Democrático
de Direito, com duas características principais: primeiro, com base na
ideia de que governar é a ação de condução das ações dos outros e das
coisas, se estabeleceu uma dinâmica de cálculos baseados na observação
dos fenômenos populacionais e dos fatos a estes eventos relacionados. De
posse de uma série de dados e probabilidades regulares, pode-se
implantar políticas públicas de aumento da capacidade de governo dos
outros, bem como amenizar o impacto da vida social, lida a partir da
ideia de cura do sofrimento.
No cálculo
desta ação de condução, governa-se com a busca da diminuição do risco,
gerando determinações que trabalhem dentro de um padrão da média
possível, evitando práticas que ultrapassem os limites e possibilitem a
ruptura (a menos que possam ser usadas em favor da arte de governar).
Práticas diante das quais os controles necessários para conduzir a vida
dos outros se tornam instáveis.
Assim,
diante das probabilidades e do conhecimento dos riscos criam-se
políticas estabilizantes das práticas sociais, além das quais nada pode
ser permitido. A diminuição do sofrimento social encontra-se como um dos
principais objetivos desta ação. Não se trata de acabar com as
desigualdades, muito menos de simplesmente manter as práticas que causam
o sofrimento. Trata-se, antes, de encontrar a estabilidade necessária,
diante da qual não haverá ruptura e os sujeitos alvos desta prática
engajem-se voluntariamente.
A segunda
característica forte da lógica de governo é a temporalidade. Ela é
dinâmica, na medida em que não está prioritariamente fundada em
princípios programáticos, mas em resultados e na capacidade de fazer do
governante. Este tempo altera a relação com os sujeitos e os lugares da
ação. Seu sujeito político encontra-se, de modo geral, dentro das
estruturas institucionais autorizadas pela lei para a produção das
políticas públicas e a população alvo é percebida como objeto de sua
ação ou como sujeito de necessidades. Não é pensada como sujeito
político ativo, mas como um elemento do cálculo, tal como as enchentes, o
trânsito, as votações no Legislativo, a distribuição dos lugares e
funções de controle da condução da vida. Os lugares fechados, de acesso
limitado aos especialistas autorizados a fazer uso do discurso
verdadeiro sobre a política, são os preferidos pela lógica de governo.
Em lugar
oposto, encontramos um outro modo de agir na política, que chamaremos de
“lógica dos movimentos sociais”, de modo a permitir uma visualização
mais clara de choque e contradição com a lógica de governo (o que não
nos impede de dizer que os movimentos, ou parte deles, também trabalhem
com esta lógica).
Na ação dos
movimentos sociais a questão programática ganha mais destaque, pois a
leitura de suas práticas e sua própria existência a coloca como
fundacional. E, especialmente, que a solução para suas questões tenham o
caráter de ruptura e, por vezes, de superação do problema. Não se
trata, nesta forma de agir, de diminuir o sofrimento social e de atingir
uma estabilidade sob o custo de transferir para um momento futuro a
possibilidade de uma condição de vida diferenciada.
Há a
constatação do problema por meio da experimentação da falta. Perceber o
dispêndio de 3 a 4 horas diárias da vida em meio a um transporte público
de péssima qualidade e que toma cerca de 25% do salário mínimo permite
ao sujeito desta ação saber exatamente o que quer. Os sujeitos de sua
ação produzem seu próprio discurso e determinam em boa medida as suas
práticas. E, enquanto sujeitos, têm a noção de ocuparem um outro lugar
no cenário político, não mais como mito (o “povo”), nem simples
“protagonista” do fazer político, mas como um elemento inusitado, não
calculado, na política representativa do estado de direito.
A lógica
para agir dos movimentos sociais bate de frente com a violência do
Estado, autorizada pela democracia e legitimada por parcelas
conservadoras da sociedade. E, se não há escuta possível, pois o Estado
trata esta ação como questão de segurança pública, os movimentos tratam
de ocupar ou de expandir o espaço público.
A via das
ruas e avenidas, autorizada somente aos carros, passa a ser caminho para
a construção de lugares de escuta. Assim, vimos a avenida 23 de maio,
clássico espaço reservado na cidade de São Paulo a veículos motorizados,
transformar-se em um rio de multidão cujo destino era o próprio caminho
que se estava percorrendo. De modo semelhante, também são elegidos os
prédios públicos, símbolos de um controle a ser modificado ou
partilhado.
Nesta lógica
de ação não é observada a possibilidade média de condução da ação, mas o
diagnóstico da inaceitável experiência cotidiana. Sob este olhar as
proposições políticas insistem em algo radicalmente realista e de
caráter impossível para o pensamento da estabilidade e do controle.
As
manifestações de junho passado e meses seguintes não são, ao que tudo
indica, nenhuma grande novidade em termos do que seja o contemporâneo.
Contudo, elas nos colocam diante de certas características da ação que
permitem olhar para o campo de forças em choque na política de um modo
diferente do tradicional, aquele sustentado pela ação representativa dos
sindicatos, entidades de segmentos sociais e partidos. Não é a negação
desta velha forma da política, mas a entrada em jogo de modos de ação
que apontam para uma maior responsabilização ética do sujeito político
com seus lugares de pertencimento e preenchimento.
Um
importante ganho das manifestações foi a quebra do fantasma da lógica de
governo. Para os novos atores de rua das principais cidades
brasileiras, a necessidade de consolidação de uma estrutura política
elitizante entra em choque com a possibilidade de práticas livres. As
necessidades e urgências do discurso de governo não legitimam mais, para
os movimentos de junho, as limitações das políticas públicas. Muito
menos uma lógica da governabilidade inserida em um projeto autoritário
de democracia.
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