Cinquenta anos após morte de Aldous Huxley, sua obra alerta:
avanço científico pode ser, em sociedades desiguais e mercantilizadas,
caminho para barbárie
(Publicado originalmente no “Le Monde Diplomatique Brasil”, edição internet, setembro de 2000)
Seria pertinente reler, hoje, Admirável Mundo Novo? Seria
pertinente retomar um livro escrito há aproximadamente 70 anos, numa
época tão distante que nem sequer a televisão havia sido inventada?
Seria essa obra algo além de uma curiosidade sociológica, um best seller comum e efêmero que, no ano de sua publicação, 1932, vendeu mais de um milhão de exemplares?
Essas questões parecem ainda mais pertinentes porque o gênero da obra
— a fábula premonitória, a utopia tecno-científica, a ficção científica
social — possui um alto grau de obsolescência. Nada envelhece tão
rápido quanto o futuro. Ainda mais na literatura.
E, entretanto, quem superar essas reticências e novamente mergulhar nas páginas do Admirável Mundo Novo certamente
ficará chocado com sua atualidade surpreendente. E irá constatar que o
presente alcançou o passado, pelo menos por uma vez.
O romance, que se tornou um grande clássico do século 20, narra uma
história que se passa num futuro distante, por volta de 2500, ou mais
precisamente, “por volta do ano 600 da era fordista”. Satírica homenagem
a Henry Ford (1863-1947), pioneiro norte-americano da indústria
automobilística (e ainda hoje uma das famosas marcas do ramo), inventor
de um método de organização do trabalho para a produção em série e da
padronização das peças.
Essa técnica, pensada por Ford na década de 20, transformou, por
assim dizer, os trabalhadores em autômatos, em robôs repetindo o mesmo
gesto o dia inteiro. Apesar de seu caráter desumano, foi uma verdadeira
revolução no universo industrial e rapidamente adotada, da Alemanha à
União Soviética, por todas as grandes indústrias mecânicas do mundo. No
mundo sindical e operário, e também entre os intelectuais, o fordismo
suscitou críticas violentas, que artistas e criadores da época muitas
vezes abordaram com indiscutível talento cáustico. Pensemos, por
exemplo, em Metropolis, de Fritz Lang (1926), ou Tempos modernos (1935), de Charles Chaplin.
O autor de Admirável Mundo Novo, Aldous Leonard Huxley
(1894-1963), era um homem afeiçoado à cultura, particularmente à cultura
científica. O tipo do intelectual onisciente, sedutor e com opinião
sobre quase tudo.
Nascido numa família inglesa à qual pertenceram numerosas
personalidades célebres, Aldous Huxley era parente, por parte de mãe, do
escritor Matthew Arnold (1822-1888), autor dramático, crítico,
humanista, viajante e professor de poesia na Universidade de Oxford. Seu
avô, Thomas Henry Huxley (1825-1895), era um conhecido naturalista,
defensor das teorias evolucionistas de Darwin e autor de uma obra famosa
sobre a origem da espécie humana (O lugar do homem na natureza,
1863). Finalmente, seu irmão Julian Huxley (1887-1975) era biólogo e
filósofo, e também partidário das teorias da evolução. Especialista em
genética, criticava, com muita pertinência, as teorias fantasistas do
geneticista soviético Lyssenko. No período de 1946 a 1948, foi o
primeiro diretor geral da Unesco.
Como não poderia deixar de ser, Aldous Huxley estudou em Eton e
Oxford, os grandes “centros de condicionamento” das elites britânicas.
Também ele havia pensado em estudar ciência, mas foi impedido devido a
uma grave doença na visão. Aos vinte anos, quase cego, só conseguia ler
com o auxílio de uma grossa lupa e aprendeu braille, como todos os
cegos. Apesar da dolorosa deficiência que o acompanhou por toda a vida,
Huxley começou a publicar seus primeiros livros de poemas aos vinte e
cinco anos e, depois dos horrores da primeira guerra mundial
(1914-1918), passou a manifestar uma visão do mundo irônica e
desencantada.
Ao retornar de uma viagem à India, travou grande amizade com o escritor D.H. Lawrence (autor do conhecido romance O Amante de Lady Chatterley,
1928), que, já tuberculoso e às vésperas de sua morte — em 1930, em
Veneza — iria exercer sobre si uma importante e duradoura influência.
Em seus primeiros romances (Crome Yellow, 1921; Antic Hay, 1923;Those Barrens Leaves, 1925; Point Counter Point,
1928), Aldous Huxley apresenta um universo no qual a cultura e o
humanismo são ameaçados por aqueles que mais os deveriam proteger.
Escritos com uma sinceridade cruel, esses livros são sátiras de uma
inteligência aguçada e exprimem as fraquezas e desilusões da “geração
perdida”. Ele mostra um humor frio, cortante, paradoxal, à moda de
Jonathan Swift, ao evocar, com ceticismo, a sociedade da década de 20.
Nesse sentido, Admirável Mundo Novo, que é o livro mais
representativo desse período, seria mais um conto filosófico à maneira
de Voltaire, no qual o talento do escritor, ainda sendo grande, é
ultrapassado pelo temperamento do moralista.
Essa visão pessimista do futuro e crítica feroz do culto positivista
da ciência foi escrita no momento em que as conseqüências sociais da
grande crise de 1929 castigavam as sociedades ocidentais e quando a
credibilidade dos regimes democráticos capitalistas parecia vacilar.
Antes da subida ao poder de Adolf Hitler, em 1933, o Admirável Mundo Novo denuncia
a perspectiva aterrorizante de uma sociedade totalitária fascinada pelo
progresso científico e convencida de poder oferecer uma felicidade
obrigatória a seus cidadãos. Apresenta uma visão alucinante de uma
humanidade desumanizada pelo acondicionamento à Pavlov [1]
e pelo prazer ao alcance da pílula (o “soma”). Num mundo horrivelmente
perfeito, a sociedade dissocia a sexualidade da procriação — por motivos
eugênicos e produtivistas.
Em Admirável Mundo Novo, a americanização do planeta está
completa: tudo padronizado e fordizado, tanto a produção de seres
humanos, resultantes de manipulações genético-químicas, quanto a
identidade das pessoas, produzida por hipnose auditiva, durante o sono —
a hipnopedia, qualificada por um personagem do livro como a “maior força socializadora e moralizadora de todos os tempos”.
Os seres humanos são, portanto, “produzidos”, no sentido industrial
do termo, em indústrias especializadas — os “centros de incubação e
acondicionamento” — segundo modelos variados, de acordo com tarefas bem
especializadas atribuídas a cada indivíduo e indispensáveis numa
sociedade obcecada pela estabilidade.
No momento de sua fabricação num frasco de vidro, graças ao “método
Bokanovsky” (que permite produzir até noventa e seis seres humanos
quando, no passado, só era possível obter um único), cada óvulo — e
depois cada embrião — recebe doses mais ou menos importantes de
estímulos físicos e ingredientes químicos. Essas doses irão condicionar,
de forma definitiva, a capacidade intelectual, e determinarão a que
categoria e casta pertencerão, em ordem decrescente, esses seres
humanos: Alfa, Beta, Delta, Gama, Ipsilon… segundo o grau de
complexidade da atividade profissional a que estarão destinados.
Além do mais, cada ser humano é educado, desde nascença, nesses
“Centros de acondicionamento do Estado” em função de valores específicos
do seu grupo, recorrendo-se sistematicamente à hipnopedia para
manipular seu espírito, para criar nele “reflexos condicionados
definitivos” e fazer com que aceite seu destino. “Cem repetições três
noites por semana, durante quatro anos, declara um especialista em
hipnopedia. Sessenta e duas mil repetições criam a verdade.”
Dessa forma Aldous Huxley ilustrava, no livro, os riscos contidos em
teses formuladas desde 1924 por John Watson, o pai do “behaviorismo”,
“ciência da observação e controle do comportamento” Watson afirmava,
friamente, que poderia pegar na rua, ao acaso, uma criança saudável, e
fazer dela, conforme sua escolha, um médico, um advogado, um artista, um
mendigo ou um ladrão, não importando para isso seu talento, suas
preferências, suas tendências, suas capacidades, seus gostos ou a origem
de seus antepassados.
Em Admirável Mundo Novo, que é fundamentalmente um manifesto
humanista, é possível perceber, e com razão, uma crítica corrosiva à
sociedade stalinista, da utopia soviética construída com mão de aço. Mas
há também uma sátira clara à nova sociedade mecanizada, padronizada,
automatizada que se instalava nos Estados Unidos em nome da modernidade
tecnicista.
Huxley, excessivamente inteligente e admirador da ciência, exprime,
nesse romance, no entanto, um profundo ceticismo em relação à idéia do
progresso, uma desconfiança em relação à razão. Diante da invasão do
materialismo, deixa uma das mais profundas peças de acusação às ameaças
do cientificismo, da mecanização e do desprezo pela dignidade
individual. No fundo, avalia com um desespero lúcido, a técnica que
assegurará aos seres humanos um conforto exterior total, um
aperfeiçoamento notável. Qualquer desejo, na medida em que puder ser
manifestado e sentido, será satisfeito. Porém os homens terão perdido
sua razão de ser. Irão tornar-se, eles mesmos, máquinas. Não será mais
possível falar em condição humana, no sentido próprio.
O título original — Brave New World — é tomado emprestado de uma das
últimas peças de William Shakespeare, The Tempest (1611). Miranda vê os
príncipes de Nápoles desembarcarem de um navio naufragado e exclama:
“Esplêndida humanidade, maravilhoso mundo novo, quem pode nutrir seres
tão perfeitos!”
No espírito de Huxley, esse título é uma antífrase, pois o mundo que
descreve nada tem de maravilhoso. É uma sociedade de castas, imutável,
perene, onde tudo é programado e não há mais lugar para o acaso. Faz-se
tábula rasa do passado, como recomenda A Internacional, o que, de
fato, a cultura de massa realiza. Os monumentos clássicos de todas as
civilizações foram derrubados, a literatura foi queimada, os museus
destruídos, a história apagada.
Excesso de pessimismo ou simples lucidez? Sabemos que Huxley
demonstrou, nesse livro, um senso excepcional de antecipação. A história
recente demonstrou que suas profecias mais sombrias estavam em vias de
se realizar, assim como, em matéria de manipulação, ele soube prever o
surgimento de novas ameaças.
Pessimista e sombrio, o futuro visto por Aldous Huxley nos serve de
advertência e nos incentiva, numa época de manipulações genéticas, de
clonagem e da revolução do ser vivo, a acompanhar de perto os atuais
progressos científicos e seus potenciais efeitos destrutivos.Admirável Mundo Novo ajuda
a compreender o alcance dos riscos e os perigos com os quais nos
deparamos, quando, por todos os lados, novamente, os “avanços
científicos e técnicos” nos confrontam com desafios que põem em perigo o
futuro de nosso planeta. E o futuro da espécie humana.
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