Nós temos concurso de mulher para sambar pelada na televisão em programa de domingo, mas a menina pode ser levada ao suicídio se mostrar um peito e essa foto for parar na internet
Madeleine Lacsko,
Estamos matando nossas meninas. Acredito ser a tradução desse nó na
garganta que eu sinto, creio que muitos sentem, e que o Lino Bocchini
conseguiu colocar com clareza em palavras no artigo: Quem é culpado pelo suicídio da garota de Veranópolis? É
uma reflexão sincera sobre dois suicídios de meninas que não aguentaram
a humilhação sofrida após terem vídeos íntimos vazados na internet.
Talvez os comentários de alguns leitores embrulhem o estômago tanto
quanto os fatos. Tenho só sentimentos fortes e poucas palavras claras
quando constato a canalhice em ação, principalmente nesses casos que
interrompem vidas no começo. O texto tem palavras e uma linha de
raciocínio coerente dissecando a distância entre o que a nossa sociedade
exige das mulheres e meninas e o possível para um ser humano.
Nós temos concurso de mulher para sambar pelada na televisão em
programa de domingo, mas a menina pode ser levada ao suicídio se mostrar
um peito e essa foto for parar na internet. As bundas ornamentando os
balés dos programas do auditório miram agradar o mesmo público que
oprime mães que amamentam em público. Não somos campeões apenas em
hipocrisia, somos também em falta de opção.
Afinal, o que exatamente se valoriza em uma mulher? Somos — e eu me
incluo — craques em pegar situações fragmentadas e apontar o problema: a
opressão. Às vezes somos craques também em apontar soluções para aquela
situação específica. A vida vem em detalhes, vem aos goles, mas
pensamos nela como um oceano inteiro e é aí que está o ponto em que
poderíamos dar mais foco.
Algumas pessoas entendem o Feminismo ou a busca da igualdade como um
simples assassinato do feminino. E, enquanto isso, os exemplos do
desejável que estão aí para as nossas meninas e meninos são também
amostras do impossível. O modelo de mulher na televisão é pelada e
gostosa mas, socialmente, tem de ser ao mesmo tempo casta. Ser bem
sucedida tem que ser algo combinado com submissão a um sistema onde o
feminino é sempre intruso. Ou seja, não há saída.
A questão é que trabalhamos pouco as opções, principalmente para as
gerações futuras, que vão viver lutas e dilemas diferentes dos nossos.
São caminhos diferentes, escolhas diferentes, que talvez a gente não
aborde porque nem imagine. As mulheres da minha geração vivem vidas que
não foram traçadas para nós, como intrusas em um mundo que originalmente
tinha as portas fechadas.
Vivemos um caminho pavimentado pela coragem de gerações anteriores
que resultou na realização de opções que originalmente não existiam,
seja no campo profissional ou no pessoal. Convivemos com homens
surpreendidos por um mundo muito diferente daquele das histórias que
lhes foram contadas na infância. Mas as meninas e meninos de hoje estão
prontos para escrever uma história nova.
A questão dos brinquedos é, para mim, recorrente. Seja pelo kichute e
pelo skate que me foram negados na infância ou pela dificuldade de
encontrar os brinquedos que meu filho pede e não estão na categoria
transporte, construção ou material de guerra. Por isso, eu fiquei tão
feliz quando vi uma novidade nessa área celebrada por um site de
engenharia: a linha de brinquedos para meninas engenheiras.
No mundo, 89% das pessoas formadas em engenharia são homens. Uma das
razões pode ser facilmente comprovada com uma visita a qualquer loja de
brinquedos, as meninas não são inspiradas a fazer parte desse universo.
Uma engenheira formada em Stanford e que só optou pelo curso por
insistência de um professor, já que jamais havia considerado essa
possibilidade, resolveu usar a porta que abriu para fazer passar outras
meninas. Ela criou uma linha de brinquedos chamada Goldie Blox, dedicada a futuras engenheiras e inventoras.
O vídeo que
promove a empresa se tornou um viral, com mais de 8 milhões de
visualizações na primeira semana. Dessa vez, veio da internet a mudança,
o avanço que fez o tema entrar nos veículos de imprensa mais
importantes dos Estados Unidos, incluindo o tradicional Good Morning America, da rede ABC.
A existência da linha de brinquedos traz a reboque consequências
animadoras, como a discussão social sobre as opções que estamos dando às
nossas meninas e a nova proposta de interação entre as crianças. É uma
tentativa de sair daquele universo que eu vivi onde todos os brinquedos
de meninas são igualmente tediosos e só se faz uma brincadeira legal
quando os meninos admitem que elas entrem naquele universo infantil
masculino.
Se as meninas também tem brinquedos legais e que serão certamente
desejados pelos meninos, entram em pé de igualdade no mundo da
brincadeira. É uma forma de promover na prática essa vivência, mesmo que
os pais ainda não tenham descoberto como fazer isso nas próprias vidas.
Vivemos uma sociedade em que a mulher é uma intrusa e qualquer ação
pode virar um deslize e motivo de execração pública. Os brinquedos para
engenheiras tratam de dar opções, de fazer enxergar a menina como ser
humano, exatamente o que falta nesses casos que pularam da tela do
computador para a tragédia.
Claro que um brinquedo não resolve séculos de opressão e a luta
diária pela igualdade continua necessária e importante. Mas a ideia da
engenheira de pavimentar o caminho para que outras meninas cheguem mais
facilmente onde ela chegou tem toda a minha simpatia. Todos os dias
arrombamos portas e quebramos correntes. Creio que tem a mesma
importância sinalizar a quem ainda está no começo da estrada como passar
pelos caminhos que já foram abertos.
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