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a partir de exposição fotográfica sobre um dos Centros Clandestinos de
Detenção da ditadura militar argentina conhecido como "el Pozo de
Banfield"]
Kwame
Anthony Apiah, um dos renovadores do pensamento liberal contemporâneo,
em sua recente conferência em São Paulo, apontou que o modo como
“sabemos” de certas situações que envolvem vergonha, humilhação e
desonra nos levam a efeitos sistêmicos corrosivos em termos de
sentimentos morais. São aquelas pequenas ou grandes situações em relação
às quais sabemos que algo está errado, mas não sabemos suficientemente
de modo a produzir uma reação transformativa. O filósofo de origem
anglo-ganesa lembra que quase 1% da população americana encontra-se
encarcerada, sujeita a abuso sexual e desrespeito continuado.
Guantánamo, uma prisão americana “fora da lei” em território cubano, não
é apenas uma anomalia política ou um impasse jurídico, mas também uma
espécie de bomba de retardo e dispersão moral. “Saber” que isso ocorre
entre “nós” nos torna moralmente piores, mesmo que tentemos nos
convencer de que não há nada a fazer. Obviamente tudo depende do que
significa “saber” e “nós”. Saber da existência de atrocidades nos faz
recuar a extensão de “nós”, como se automaticamente tivéssemos que nos
defender atribuindo a origem e responsabilidade da tragédia a “eles”.
Esta estratégia pode ser chamada de cercamento, pois isola e determina o
mal-estar em uma área exterior, visível e controlada, comprimindo e
protegendo o “nós” em um território interior.
O livro Poder e desaparecimento
(Boitempo, 2013), de Pilar Calveiro, sobre as experiências de
desaparecimento de pessoas, vivida pelos argentinos durante o regime
militar, também aborda esta patologia do “saber”. A população argentina
sabia da existência dos campos de concentração. Filhos, parentes e
conhecidos subitamente “sumiam”, mas o fenômeno estava sujeito a uma
estranha nuvem de imobilização e desamparo. Neste caso não é o tamanho
do “nós” que diminui, mas é a extensão do “saber” que fica retida por
uma espécie de muro de mal-estar atrás do qual tudo o mais é invisível.
Como se o que não podemos ver, não pudéssemos também saber.
Daniela Arbex, autora de Holocausto brasileiro
(Geração Editorial, 2012) também aborda o problema do “saber” sem
saber, ao investigar a colônia psiquiátrica de Barbacena. Ali, milhares
de doentes mentais, errantes, pobres e inimigos políticos do Estado
foram “desaparecidos”. Mais de 60 mil mortes ocorridas em meio a maus
tratos, eletrochoques e descaso testemunham o que o italiano Franco
Basaglia, idealizador da reforma psiquiátrica, chamou de “campo de
concentração à brasileira”. Neste caso temos as duas estratégias
combinadas: a extensão indeterminada do “eles”, delimita o acervo de
nossos adversários morais, que cercamos do lado de fora; e os muros, não
nos deixam saber sobre os rastros de memória daqueles que desaparecem.
Reencontramos aqui as duas patologias
sociais descritas por Hegel em inícios do século 19, quando a literatura
romântica começa a ocupar o espaço das narrativas religiosas na
formação de nossos sentimentos morais: a solidão, que associamos ao
cerco e o isolamento que decorre dos muros. No primeiro caso nossa
defesa será a impotência (“o que podemos fazer diante disso, uma vez que
somos tão poucos ou tão fracos”). No segundo caso nosso recuo apela
para nossa distância com relação à responsabilidade (“isso diz respeito
ao poder público e ao Estado, que “sabe” e tem a devida competência para
agir”). A confluência entre muros e cercas é naturalmente o silêncio,
por meio do qual nos recolhemos à nossa pequenez individual (o menor
“nós” que pode haver) e ao sentimento de que no fundo não sabemos
direito o que está acontecendo por trás dos muros.
E quando a equizoidia
dos cercos se casa com a paranoia dos muros isso nos leva ao silêncio
melancólico.
* Publicado originalmente em 24.10.2013 na revista Mente e cérebro.
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