A fonte imediata do desastre em Washington pode ser creditada à virada acentuada à direita dada pela classe política
Por Noam Chomsky, tradução para o espanhol de Jorge Anaya para Rebelíon
Durante o mais recente episódio da farsa de Washington que deixou o
mundo atônito, um comentarista chinês escreveu que se os Estados Unidos
não podem ser um membro responsável do sistema global, talvez o mundo
deva se separar do Estado pária que é a potência militar reinante mas
que perde credibilidade em outras áreas.
A fonte imediata do desastre em Washington foi a virada acentuada à
direita dada pela classe política. No passado, os Estados Unidos foram
descritos, com algum sarcasmo, mas não de forma imprecisa, como um
Estado de um partido único: o partido dos negócios, com duas facções
chamadas republicanos e democratas.
Não mais. Ele continua a ser um Estado de partido único, mas agora
tem uma única facção, os republicanos moderados, chamados Novos
Democratas (como a coalizão no Congresso os designou): não é uma
organização republicana, mas há muito tempo abandonou qualquer pretensão
ser um partido parlamentar normal. O comentarista conservador Norman
Ornstein, do American Enterprise Institute, descreveu os republicanos
atuais como “uma insurgência radical, ideologicamente extremista, que
zomba dos fatos e acordos e despreza a legitimidade de sua oposição
política”: um perigo grave para a sociedade.
O partido está em serviço permanente para os muito ricos e o setor
empresarial. Como não podem ganhar votos com essa plataforma, se viram
forçados a mobilizar setores da sociedade que são extremistas, pelos
padrões mundiais. Insanidade é o novo padrão entre os membros do Tea
Party e vários outros grupos informais.
O establishment republicano e seus patrocinadores
corporativos esperavam usar esses grupos como um aríete no ataque
neoliberal contra a população, para privatizar, desregular e limitar o
governo, mantendo as áreas que servem à riqueza, como as forças armadas.
Ele teve algum sucesso, mas agora descobre, para seu horror, que não
pode controlar as suas bases. Assim, o impacto sobre a sociedade do país
torna-se muito mais grave. Um exemplo é a reação contra a Affordable
Care Act e o desligamento virtual do governo.
A observação do comentarista chinês não é totalmente nova. Em 1999, o
cientista político Samuel P. Huntington advertiu que, para a maior
parte do mundo, os Estados Unidos tornaram-se “a superpotência
desonesta”, sendo vistos como “a principal ameaça externa às
sociedades”.
Nos primeiros meses da presidência de George Bush, Robert Jervis,
presidente da Associação Americana de Ciência Política, alertou que “aos
olhos de grande parte do mundo, o Estado primordialmente desonesto hoje
são os Estados Unidos”. Tanto Huntington quando Jervis advertiram que
tal rumo é imprudente. As consequências para os Estados Unidos podem ser
danosas.
Na edição mais recente da Foreign Affairs, a publicação líder do estabilishment,
David Kaye examina um aspecto da forma como Washington se separa do
mundo: a rejeição de tratados multilaterais “como um esporte”. Explica
que alguns tratados são rejeitados de imediato, como quando o Senado
“votou contra a Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência
em 2012 e o Tratado de Proibição de Testes Nucleares, em 1999”.
Outros são descartados por falta de ação, incluindo as relativas a
questões como direitos trabalhistas, econômicos ou culturais, espécies
ameaçadas de extinção, poluição, conflitos armados, a preservação da
paz, armas nucleares, direito do mar e discriminação contra as mulheres.
A rejeição das obrigações internacionais, escreve Kaye, “tornou-se
algo tão arraigado que os governos estrangeiros já não esperam a
ratificação do Washington ou a sua plena participação nas instituições
criadas pelos Tratados.O mundo segue adiante, as leis são feitas em
outro lugar, com participação limitada (se houver) dos Estados Unidos”.
Apesar de não ser nova, a prática tornou-se mais acentuada nos
últimos anos, juntamente com a aceitação silenciosa dentro do país da
doutrina de que os Estados Unidos têm todo o direito de agir como Estado
pária.
Para tomar um exemplo típico, há algumas semanas as forças especiais
dos EUA sequestraram um suspeito, Abu Anas Libi, nas ruas de Trípoli,
capital da Líbia, e levaram-no a um navio para interrogá-lo sem permitir
a presença de um advogado nem respeitar seus direitos. O secretário de
Estado John Kerry disse a repórteres que a ação foi legal porque estava
de acordo com as leis estadunidenses, sem causar maiores comentários.
Os princípios só são valiosos se são universais. As reações seria um
pouco diferentes, é inútil dizer, se as forças especiais cubanas
sequestrassem o proeminente terrorista cubano Luis Posada Carriles em
Miami e o levassem à ilha para interrogá-lo julgá-lo de acordo com as
leis cubanas.
Apenas os Estados desonestos podem cometer tais atos. Mais
precisamente, o único Estado desonesto que tem poder suficiente de agir
com impunidade, nos últimos anos, para conduzir ataques a seu critério,
para semear o terror em grandes regiões com ataques de drones e
muito mais. E para desafiar o mundo de outras maneiras, por exemplo,
com o persistente embargo contra Cuba continuar, apesar da oposição do
mundo inteiro, fora Israel, que votou com seu protetor quando as Nações
Unidas condenaram o bloqueio (188-2) em outubro passado.
Pense o mundo o que pensar, as ações americanas são legítimas porque
assim dizemos que são. O princípio foi enunciado pelo eminente estadista
Dean Acheson, em 1962, quando instruiu a Sociedade Americana de Direito
Internacional de que não há impedimento legal quando a América responde
a um desafio ao seu “poder, posição e prestígio”.
Cuba cometeu um crime quando respondeu a uma invasão dos EUA e, em
seguida, teve a audácia de sobreviver a um ataque orquestrado para
trazer “os terrores da Terra” para a ilha, nas palavras de Arthur
Schlesinger, assessor de Kennedy e historiador.
Quando os Estados Unidos conquistaram a sua independência, procuraram
juntar-se à comunidade internacional de seu tempo. Assim, a Declaração
de Independência começa expressando preocupação em relação ao “respeito
decente pelas opiniões da humanidade”.
Um elemento crucial foi a evolução de uma confederação desordenada
para uma “nação unificada, digna de celebrar tratados”,de acordo com a
frase da historiadora diplomática Eliga H. Gould, que assistiu às
convenções da ordem europeia. Para obter esse status, a nova nação
também ganhou o direito de agir como quisesse na esfera doméstica.
Assim, poderia agir para se livrar de sua população indígena e expandir a
escravidão, instituição tão “odiosa” que não poderia ser tolerado na
Inglaterra, como decretou o ilustre jurista William Murray em 1772. A
avançada lei inglesa foi um fator que levou a sociedade proprietária de
escravos a sair do seu alcance.
Ser uma nação digna de ratificar tratados conferia, portanto, muitas
vantagens: o reconhecimento externo e a liberdade para agir sem
interferência no seu território. E o poder hegemônico traz outra
oportunidade, a de se tornar um Estado pária, que desafia livremente o
direito internacional enquanto enfrenta crescente resistência no
exterior e contribui para a sua própria decadência, com as feridas que
inflige a si mesmo.
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