Reconhecido internacionalmente por suas contribuições às
Ciências Humanas e, entre os que conviveram com ele, por sua
generosidade e humildade, Milton Santos é hoje uma referência também
para o movimento negro
Por Glauco Faria
“Ele representava nas Ciências Humanas o que se pode chamar de ala
combatente. O que Florestan Fernandes foi na Sociologia, ele foi na
Geografia. Nos seus trabalhos, o rigor científico nunca foi obstáculo a
uma consciência social desenvolvida e profundamente arraigada nos
problemas do Brasil.” Foi assim que um dos grandes intelectuais
brasileiros, Antonio Candido, definiu o geógrafo Milton Santos, que foi
seu colega na Universidade de São Paulo (USP).
Baiano de Brotas de Macaúbas, Milton Santos cursou Direito em
Salvador, embora quando jovem tivesse dado aulas na área que
verdadeiramente o apaixonava, a Geografia. Na universidade, envolveu-se
com a política estudantil e chegou a ser eleito vice-presidente da União
Nacional dos Estudantes (UNE). Mas as letras da lei não foram
suficientes para seduzi-lo e, concluída a graduação, Milton tornou-se
professor de Geografia do Instituto Central de Educação Isaías Alves
(Iceia) e do Colégio Central. Levou a concurso sua tese Povoamento da
Bahia, e passou a ocupar a cadeira de Geografia Humana do Ginásio
Municipal de Ilhéus. E foi ali que escreveu seu primeiro livro, A Zona
do Cacau, que tratava da monocultura na região. A obra já alertava para
os riscos que poderiam advir da adoção de tal prática.
No
ano de 1956, foi convidado pelo professor Jean Tricart, uma de suas
principais influências, a realizar seu doutorado em Estrasburgo, na
França. Sobre o orientando, escreveu Tricart: “O humor, a alegria, e o
sorriso de Milton, classificado como inimitável, conquistaram a simpatia
de toda a equipe da Universidade”. Após viajar pelos continentes
europeu e africano, publicou em 1960 o estudo Mariana em Preto e Branco
e, depois de apresentar sua tese de doutorado, O Centro da Cidade de
Salvador, regressou ao Brasil.
Mas os périplos de Milton Santos pelo mundo não pararam. Logo após o
golpe militar de 1964, foi exilado e retornou à França, onde lecionou na
Universidade de Toulouse por três anos. Seguiu para Bordeaux e, até
voltar ao Brasil em 1977, passou por diversas universidades do mundo.
Deu aulas na Venezuela, no Peru, e no Massachusetts Institute of
Technology (MIT) dos Estados Unidos.
De regresso ao Brasil, boa parte da obra que o faria mundialmente
conhecido já tinha sido escrita, inclusive o clássico Por uma geografia
nova, com enfoque nas questões sociais e referência em geógrafos
marxistas, evidenciando a necessidade de
se constituir uma análise do espaço como algo essencialmente humano, promovendo um redirecionamento da Geografia. Dizia ele na introdução: “A verdade, porém, é que tudo está sujeito à lei do movimento e da renovação, inclusive as ciências. O
novo não se inventa, descobre-se”. A geógrafa Ana Clara Torres Ribeiro trabalhou com Milton Santos e confirma o grande legado deixado por ele na área das Ciências Humanas. A idéia defendida por ele era tirar a Geografia de seu isolamento e promover um diálogo com as outras disciplinas da “A Geografia deve estar atenta para analisar a realidade social total a partir de sua dinâmica territorial, sendo esta proposta um ponto de partida para a disciplina, possível a partir de um sistema de conceitos que permita compreender indissociavelmente objetos e ações”, disse.
se constituir uma análise do espaço como algo essencialmente humano, promovendo um redirecionamento da Geografia. Dizia ele na introdução: “A verdade, porém, é que tudo está sujeito à lei do movimento e da renovação, inclusive as ciências. O
novo não se inventa, descobre-se”. A geógrafa Ana Clara Torres Ribeiro trabalhou com Milton Santos e confirma o grande legado deixado por ele na área das Ciências Humanas. A idéia defendida por ele era tirar a Geografia de seu isolamento e promover um diálogo com as outras disciplinas da “A Geografia deve estar atenta para analisar a realidade social total a partir de sua dinâmica territorial, sendo esta proposta um ponto de partida para a disciplina, possível a partir de um sistema de conceitos que permita compreender indissociavelmente objetos e ações”, disse.
“Por uma geografia nova”
“A verdade, porém, é que tudo está sujeito à lei do movimento e da
renovação, inclusive as ciências. O novo não se inventa, descobre-se.” O
depoimento do geógrafo da USP Wagner Costa Ribeiro ilustra a
generosidade de Milton Santos, que não se furtava a colaborar com
colegas da área. “Conheci o professor Milton Santos em Paris, por
ocasião de uma visita de estudos, em 1988. Naquele ano o professor
também estava pesquisando na França e me recebeu em sua casa, sem nunca
termos nos falado antes, a partir de um telefonema. De maneira direta,
indicou colegas franceses que me receberam com muita atenção, grande
parte deles ex-alunos de Milton. A partir daí, recebi seu renovado apoio
em diversas ocasiões, como quando solicitei artigos para publicações da
Associação dos Geógrafos Brasileiros”, conta.
A seguir, o leitor poderá conferir uma das últimas entrevistas
concedidas por Milton Santos, que revela pontos importantes do
pensamento do único geógrafo fora do mundo anglo-saxão a receber, em
1994, o prêmio Vautrin Lud, o equivalente ao Nobel no campo da
Geografia. E que deixou uma herança que vai muito além da já grandiosa
transformação promovida por ele no estudo da Geografia, que coloca a
exclusão como o principal inimigo a ser vencido. A professora Maria
Adélia Aparecida de Souza, que trabalhou com o geógrafo na USP, define o
que significaria a concretização de sua visão de mundo. “O período
popular da história, a que se referiu Milton Santos, envolve uma nova
humanidade, onde se construirá a paz através da consolidação de
mecanismos solidários que não serão fabricados em laboratórios. Já
estamos em pleno período popular da história.” F
A técnica e o poder
Em uma de suas últimas entrevistas, Milton Santos fala sobre
globalização, a violência do dinheiro e da informação, e analisa qual
deveria ser o papel dos intelectuais
Era um estagiário do Serviço de Divulgação e Informação da Faculdade
de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo
(FFLCH/USP) quando, junto com a colega Julienne Gananian, entrevistei
Milton Santos, em setembro de 2000. Já debilitado pelo câncer, o
professor recebia dois estudantes e conversava com eles como dois
iguais, sem adotar uma postura arrogante, como não raro acontece entre
os acadêmicos.
Docemente, não concedeu uma entrevista, mas deu uma aula. Permitindo
sempre que pudéssemos intervir, esclareceu conceitos e mostrou sua visão
sobre o mundo. Abaixo, alguns trechos da entrevista, que dão um pouco a
dimensão da importância de seu legado.
Globalização
A história é feita pela sucessão de épocas e cada época tem sua
própria marca. A marca de cada época é dada, a meu ver, por dois
fatores, que são na realidade inseparáveis: um é o estado da técnica, o
outro é o estado da política. A nossa época é caracterizada por uma
técnica que atinge níveis altíssimos de precisão, uma técnica altamente
cientificizada, pois é penetrada pela produção científica, permitindo,
por isso mesmo, um alto grau de intencionalidade no seu uso. Deste modo,
os atores hegemônicos atuais se apropriam dessa qualidade da técnica
para aumentar seu poder.
Como a técnica se tornou planetária, algo que nunca tinha acontecido,
os atores se tornaram planetários. A globalização é resultado de uma
forma particular de casamento da técnica com a política. Nesse caso, a
política será exercida pelos atores hegemônicos e não mais pelos
Estados. A técnica hegemônica é a base de dois fenômenos também
inéditos, que são a informação e o dinheiro globalizados. A informação e
o dinheiro globalizados fazem com que as fronteiras tenham se tornado
permeáveis, resultando na diminuição do poder interno das nações.
Na realidade, isso não é algo que se dá de forma homogênea: o país
que mais globaliza, os Estados Unidos, é o menos globalizado. A Europa
também não aceita a globalização totalmente. Eles impõem aos demais a
globalização, querem impor a ideia de democracia, que na verdade é uma
não-democracia, implantada por meio do regime neoliberal. Mas vai dizer
nas ruas que não vivemos numa democracia…
O dramático de nosso tempo
Quanto mais nos informamos, mais nos tornamos desinformados. A
própria casa do pensamento livre, que é a universidade, estimula cada
vez menos o pensamento livre. E nós continuamos com as velhas palavras,
com conteúdos que não são eficazes, razão pela qual a democracia sucumbe
em toda América Latina. Essa desinformação continuada, esse poder
implacável do dinheiro globalizado, são uma ofensa às pessoas, mas
aparecem como se fossem suas metas. Isso é o dramático do nosso tempo.
Violência da informação
A própria violência do dinheiro não se daria sem a violência da
informação. Você liga o rádio e as informações não interessam ao público
em geral, apenas a determinados segmentos. As informações sobre bolsa
de valores, por exemplo, interessam apenas para quem tem muito dinheiro.
Nós somos levados a ficar paralisados diante do discurso do dinheiro,
que é a base da ação do dinheiro globalizado.
As técnicas atuais podem ser utilizadas de forma diferente do que
acontece hoje. Na realidade, na minha juventude, na época das técnicas
de massa, estas só podiam ser utilizadas pelos poderosos. Como eu iria
comprar uma locomotiva? Eu não podia criar uma estrada de ferro… Agora é
diferente: pela primeira vez, as técnicas são “maleáveis”. Só que o
mercado se apossou dessas “técnicas maleáveis” e as endureceu. A técnica
se endureceu politicamente pelo uso que os poderosos fazem dela. Se
amanhã os atores individuais, dotados de uma vocação de generosidade, se
apossam dessas técnicas, aí muda tudo. Aliás, já está mudando. Veja a
multiplicação das rádios piratas, dos pequenos jornais, das televisões
comunitárias… O que não há é uma legislação feita para evitar o
sufocamento desses pequenos atores. É a política corrompendo algo que dá
frutos. Era impossível no tempo do Marx ou do Keynes pensar nisso, hoje
é possível. Por isso digo que não sou otimista, eu sou realista. A base
da vida, de certa forma, é a técnica, que em si não é desfavorável.
O papel da universidade
Não posso abrir as portas da universidade para o trabalho feito para o
mercado e continuar dizendo que é pública. Posso dizer que o meu
trabalho aqui é pensar, discutir o mercado, só que o que é solicitado a
mim é um trabalho para o mercado. É preciso repensar o conceito de
universidade pública, que era válido no século XIX e não é mais. São
duas as universidades públicas no Brasil: a que vende o saber e outra
que produz saber, mas grandes fatias do trabalho acadêmico não têm
relação com o interesse público.
E a universidade tem muita dificuldade para fazer uma autocrítica.
Várias pessoas desviam o foco da questão, dizendo que a maioria dos
alunos é da classe média, que se deveria cobrar mensalidades… É uma
falsa questão. Porque devo cobrar da classe média? Aqui há poucas
bolsas, a maioria está nas faculdades privadas. Há um discurso não só
vazio, mas vadio, que simplifica uma questão que é muito mais complexa.
Se a universidade produz o saber que serve ao mercado e não à grande
maioria, estou paulatinamente fechando as portas a um debate sadio. Não
estamos buscando a solução, estamos buscando remédios. Os intelectuais
críticos estão sendo estrangulados. Não podemos nos contentar com o
grande enunciado e esse é o desafio imposto, por exemplo, às faculdades
de Filosofia e de Geografia, que têm o dever de criticar. Nós estamos
aqui para criticar.
Universidade e mercado
A universidade deve ensinar a usar bem as técnicas. Não posso abrir
as portas da universidade para o trabalho feito para o mercado e
continuar dizendo que é pública. Posso dizer que o meu trabalho aqui é
pensar, discutir o mercado, só que o que é solicitado a mim é um
trabalho para o mercado. É preciso repensar o conceito de universidade
pública, que era válido no século XIX e hoje não é mais. São duas as
universidades públicas no Brasil: a que vende o saber e outra que produz
saber.
Perspectivas
Existe um estreitamento das perspectivas para a juventude. O emprego
hoje se tornou uma obsessão. Quando eu terminei a faculdade, podia
escolher entre os empregos que me eram oferecidos. Isso cria um outro
estado de espírito. Mesmo assim, a juventude tem um caldo de cultura
fértil para as ideias novas.
Creio que o crescimento beneficia algumas camadas mais do que as
outras. Há aquelas que sempre ganharam e as que sempre perderam. No
Brasil, as ofertas para os pobres sempre foram mais reduzidas que em
outros países. Formulam-se teorias de ciência política e de sociologia
baseadas na Europa, mas lá os pobres sempre tiveram mais oportunidades. A
classe média deles sempre teve preocupações políticas, enquanto a nossa
tem preocupações eleitorais.
Intelectuais “prostitutos”
Os compositores de música popular resistiram à massificação da música
e hoje conseguem levar suas ideias à população. Existem músicos, como o
Mano Brown, que não estão nas grandes gravadoras e que conseguem vender
de forma significativa. Nós do meio acadêmico é que estamos atrasados.
Os pobres não têm acesso à elaboração sistêmica da técnica, mas nós
temos. Nós, intelectuais, somos um pouco “prostitutos”. É mais simples
nos aproximarmos dos poderosos que nos dão dinheiro para pesquisas,
financiam nossas viagens. Mas as grandes ideias não precisam de muito
dinheiro. Acho que já está acontecendo uma revolução, mas não estamos
preparados para percebê-la. Como a universidade está burocratizada, tudo
que é novo tem dificuldade para ser absorvido.
A condição de negro
“O fato de eu ser negro e a exclusão correspondente acabam por me
conduzir à condição de permanente vigília.” Esse depoimento de Milton
Santos evidencia a sua consciência em relação à questão do preconceito e
da discriminação que sofrem os negros no Brasil. Não
participava de movimentos ligados à causa, uma questão de coerência com aquilo que ele dizia ser fundamental para um intelectual: a independência. “Não sou militante de coisa nenhuma. Essa ideia de intelectual, apreendida com Sartre, de uma independência total, distanciou-me de toda forma de militância”, declarou.
participava de movimentos ligados à causa, uma questão de coerência com aquilo que ele dizia ser fundamental para um intelectual: a independência. “Não sou militante de coisa nenhuma. Essa ideia de intelectual, apreendida com Sartre, de uma independência total, distanciou-me de toda forma de militância”, declarou.
Descendente de escravos que foram emancipados antes da abolição da
escravatura no país, Milton Santos enfrentou quando jovem diversas
manifestações de racismo. Desistiu de cursar Engenharia, entre outros
motivos, quando o alertaram que havia resistência aos negros na Escola
Politécnica. Em outra ocasião, foi convencido por colegas a não se
candidatar ao cargo de presidente da Associação dos Estudantes
Secundários da Bahia. O argumento usado por eles foi de que, como negro,
não teria acesso ao diálogo com as autoridades.
Mesmo assim, continuou sua trajetória no meio acadêmico e hoje, pela
sua relevância como intelectual, tornou-se referência para o movimento
negro. “Não porque ele militava, era um acadêmico, mas pelo debate que
fazia sobre inclusão. E também por não esquecer suas origens, apesar de
ter se consagrado como um dos mais importantes intelectuais do mundo”,
aponta o geógrafo João Raimundo de Souza, a propósito de uma homenagem
feita pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) a Milton Santos.
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