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quarta-feira, 10 de abril de 2013

Sistema midiático e poder na era digital

13.04.03_Sistema midiático e poder na era digitalPor Dênis de Moraes.*

Em memória do meu amigo e mestre René Armand Dreifuss,
há dez anos ausente e presente


O sistema midiático contemporâneo apresenta pelo menos três características fundamentais. Primeiramente, evidencia capacidade de fixar sentidos e ideologias, interferindo na formação da opinião pública e em linhas predominantes do imaginário social. Em segundo lugar, demonstra desembaraço na apropriação de diferentes léxicos para tentar colocar dentro de si todos os léxicos, a serviço de suas intenções particulares. Palavras que pertenciam tradicionalmente ao léxico da esquerda foram ressignificadas no auge da hegemonia do neoliberalismo, nos anos 1980 e 1990. Cito, de imediato, duas – reforma e inclusão – insistentemente mencionadas, por exemplo, nas retóricas publicitárias da era Fernando Henrique Cardoso. Em terceiro lugar, os discursos e falas massivas da mídia se projetam como intérpretes e vigas de sustentação do ideário privatista do neoliberalismo e variações associadas. Incutem e celebram a tirania do dinheiro, a competição e o lucro, propagando valores e modos de vida que transferem para o mercado a regulação das demandas coletivas, como se isso fosse possível. Ao mesmo tempo, procuram neutralizar o pensamento crítico e as expressões de dissenso, reduzindo espaços para ideias alternativas e contestadoras, ainda que estas continuem se manifestando, resistindo e reinventando-se.
Esse modelo está associado à lógica concentracionária e expansivamente reprodutiva do mercado e da cultura tecnológica, cujos eixos preponderantes são a digitalização, a virtualização, a mercantilização simbólica e a internacionalização de negócios. Os projetos mercadológicos e ênfases editoriais podem variar, menos num ponto chave: operam, consensualmente, para reproduzir a ordem do consumo e conservar hegemonias constituídas.
Os megagrupos midiáticos detêm a propriedade dos meios de produção, a infraestrutura tecnológica e as bases logísticas, como parte de um sistema que rege habilmente os processos de produção material e imaterial. Além de planejar e coordenar atividades correlatas, esse sistema exerce interferência crucial na circulação de informações, interpretações e crenças indispensáveis à consolidação de consensos sociais, por mais diversificadas que possam ser as reações e respostas. O grau de incidência oscila de veículo para veículo, em decorrência de recursos tecnológicos, linguagens, metodologias produtivas, características dos mercados, padrões de interação e perfis de públicos e audiências.
A digitalização favoreceu a multiplicação de bens e serviços de “infoentretenimento”; atraiu players internacionais para operações em todos os continentes; intensificou transmissões e fluxos em tempo real; instituiu outras formas de expressão, conexão, intercâmbio e sociabilidade, sobretudo por meio da internet (comunidades virtuais, redes sociais); e agravou a concentração e a oligopolização de setores complementares (imprensa, rádio, televisão, internet, audiovisual, editorial, fonográfico, telecomunicações, informática, publicidade, marketing, cinema, jogos eletrônicos, celulares, redes sociais etc.).
Tudo isso sob a égide de três vetores: a tecnologia que possibilita as sinergias; o compartilhamento e a distribuição de conteúdos gerados nas mesmas matrizes produtivas; e a racionalidade de gastos, custos e investimentos.
Origina-se daí um sistema multimídia que explora uma gama de empreendimentos e serviços tornados convergentes e sinergéticos pela digitalização. A execução de tal objetivo implica a reorganização das relações entre os grupos globais e os públicos consumidores regionais, nacionais e locais, por intermédio de ações de marketing que caucionam uma oferta mais heterogênea e mesclada de produtos, em consonância com dinâmicas desterritorializadas de consumo e afinadas com demandas de clientelas específicas.
A demarcação do caráter nacional de boa parte dos conteúdos em circulação torna-se problemática, tendo em vista que os materiais são produzidos e distribuídos, global e simultaneamente, por grupos transnacionais, a partir de suas matrizes. Não raro, estes grupos sequer têm filiais ou estruturas físicas em países onde suas mercadorias são comercializadas por sócios ou parceiros locais – ainda que se abasteçam de dados sobre as realidades em que atuam, procurando criar pontes de conexão com as bases consumidoras. Na essência, as políticas de geração de conteúdos almejam a maximização de lucros, dentro das conveniências estratégicas das instâncias de emissão.
Bem sabemos que existem respostas, interações e assimilações diferenciadas por parte do público consumidor dos produtos e mensagens midiáticos.  Entretanto, em face da concentração transnacional das chamadas indústrias culturais, a possibilidade de interferência do público (ou de frações dele) nas programações depende não somente da capacidade criativa e reativa dos indivíduos, como também de direitos coletivos e controles sociais sobre a produção e a circulação de informações e entretenimento.
Ainda que tenha sido ampliado, de modo exponencial, o espectro de produção, difusão e consumo de bens e serviços simbólicos, a mundialização cultural se inscreve mais na órbita das exigências mercadológicas do que na pluralização de visões de mundo e nos usufrutos equânimes de conhecimentos e informações.
À medida que essa configuração se cristaliza, reduz-se o campo de manobra para um desenvolvimento equilibrado e estável dos sistemas de comunicação e agravam-se descompassos estruturais em área estratégica da vida social. Daí a urgência de respaldarmos reivindicações por diversidade cultural onde hoje vigora a concentração monopólica da mídia. Diversidade se assegura, sobretudo, com políticas e providências públicas que, refletindo anseios sociais, valorizem a comunicação como direito humano e contribuam para deter a oligopolização da produção simbólica. Isso implica, necessariamente, a definição, a aplicação e a vigência de mecanismos democráticos de regulação, de universalização de acessos, de proteção do patrimônio cultural intangível, de descentralização das fontes informativas e de usos educativos e comunitários das tecnologias.


* Desenvolvo e amplio questões abordadas neste artigo no meu livro Mídia, poder e  contrapoder: da concentração monopólica à democratização da informação, em parceria com Ignacio Ramonet e Pascual Serrano. O livro será lançado pela Boitempo Editorial até 15 de abril próximo.
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Dênis de Moraes é doutor em Comunicação e Cultura pela UFRJ, pós-doutor pelo Consejo Latinoamericano de Ciencias Sociales (CLACSO, Argentina) e professor associado do Departamento de Estudos Culturais e Mídia da UFF. É também pesquisador do CNPq e Cientista do Nosso Estado da FAPERJ.

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