Em memória do meu amigo e mestre René Armand Dreifuss,
há dez anos ausente e presente
há dez anos ausente e presente
O
sistema midiático contemporâneo apresenta pelo menos três
características fundamentais. Primeiramente, evidencia capacidade de
fixar sentidos e ideologias, interferindo na formação da opinião pública
e em linhas predominantes do imaginário social. Em segundo lugar,
demonstra desembaraço na apropriação de diferentes léxicos para tentar
colocar dentro de si todos os léxicos, a serviço de suas intenções
particulares. Palavras que pertenciam tradicionalmente ao léxico da
esquerda foram ressignificadas no auge da hegemonia do neoliberalismo,
nos anos 1980 e 1990. Cito, de imediato, duas – reforma e inclusão –
insistentemente mencionadas, por exemplo, nas retóricas publicitárias da
era Fernando Henrique Cardoso. Em terceiro lugar, os discursos e falas
massivas da mídia se projetam como intérpretes e vigas de sustentação do
ideário privatista do neoliberalismo e variações associadas. Incutem e
celebram a tirania do dinheiro, a competição e o lucro, propagando
valores e modos de vida que transferem para o mercado a regulação das
demandas coletivas, como se isso fosse possível. Ao mesmo tempo,
procuram neutralizar o pensamento crítico e as expressões de dissenso,
reduzindo espaços para ideias alternativas e contestadoras, ainda que
estas continuem se manifestando, resistindo e reinventando-se.
Esse modelo
está associado à lógica concentracionária e expansivamente reprodutiva
do mercado e da cultura tecnológica, cujos eixos preponderantes são a
digitalização, a virtualização, a mercantilização simbólica e a
internacionalização de negócios. Os projetos mercadológicos e ênfases
editoriais podem variar, menos num ponto chave: operam, consensualmente,
para reproduzir a ordem do consumo e conservar hegemonias constituídas.
Os
megagrupos midiáticos detêm a propriedade dos meios de produção, a
infraestrutura tecnológica e as bases logísticas, como parte de um
sistema que rege habilmente os processos de produção material e
imaterial. Além de planejar e coordenar atividades correlatas, esse
sistema exerce interferência crucial na circulação de informações,
interpretações e crenças indispensáveis à consolidação de consensos
sociais, por mais diversificadas que possam ser as reações e respostas. O
grau de incidência oscila de veículo para veículo, em decorrência de
recursos tecnológicos, linguagens, metodologias produtivas,
características dos mercados, padrões de interação e perfis de públicos e
audiências.
A digitalização favoreceu a multiplicação de bens e serviços de “infoentretenimento”; atraiu players
internacionais para operações em todos os continentes; intensificou
transmissões e fluxos em tempo real; instituiu outras formas de
expressão, conexão, intercâmbio e sociabilidade, sobretudo por meio da
internet (comunidades virtuais, redes sociais); e agravou a concentração
e a oligopolização de setores complementares (imprensa, rádio,
televisão, internet, audiovisual, editorial, fonográfico,
telecomunicações, informática, publicidade, marketing, cinema, jogos
eletrônicos, celulares, redes sociais etc.).
Tudo isso
sob a égide de três vetores: a tecnologia que possibilita as sinergias; o
compartilhamento e a distribuição de conteúdos gerados nas mesmas
matrizes produtivas; e a racionalidade de gastos, custos e
investimentos.
Origina-se
daí um sistema multimídia que explora uma gama de empreendimentos e
serviços tornados convergentes e sinergéticos pela digitalização. A
execução de tal objetivo implica a reorganização das relações entre os
grupos globais e os públicos consumidores regionais, nacionais e locais,
por intermédio de ações de marketing que caucionam uma oferta mais
heterogênea e mesclada de produtos, em consonância com dinâmicas
desterritorializadas de consumo e afinadas com demandas de clientelas
específicas.
A demarcação
do caráter nacional de boa parte dos conteúdos em circulação torna-se
problemática, tendo em vista que os materiais são produzidos e
distribuídos, global e simultaneamente, por grupos transnacionais, a
partir de suas matrizes. Não raro, estes grupos sequer têm filiais ou
estruturas físicas em países onde suas mercadorias são comercializadas
por sócios ou parceiros locais – ainda que se abasteçam de dados sobre
as realidades em que atuam, procurando criar pontes de conexão com as
bases consumidoras. Na essência, as políticas de geração de conteúdos
almejam a maximização de lucros, dentro das conveniências estratégicas
das instâncias de emissão.
Bem sabemos
que existem respostas, interações e assimilações diferenciadas por parte
do público consumidor dos produtos e mensagens midiáticos. Entretanto,
em face da concentração transnacional das chamadas indústrias
culturais, a possibilidade de interferência do público (ou de frações
dele) nas programações depende não somente da capacidade criativa e
reativa dos indivíduos, como também de direitos coletivos e controles
sociais sobre a produção e a circulação de informações e entretenimento.
Ainda que
tenha sido ampliado, de modo exponencial, o espectro de produção,
difusão e consumo de bens e serviços simbólicos, a mundialização
cultural se inscreve mais na órbita das exigências mercadológicas do que
na pluralização de visões de mundo e nos usufrutos equânimes de
conhecimentos e informações.
À medida que
essa configuração se cristaliza, reduz-se o campo de manobra para um
desenvolvimento equilibrado e estável dos sistemas de comunicação e
agravam-se descompassos estruturais em área estratégica da vida social.
Daí a urgência de respaldarmos reivindicações por diversidade cultural
onde hoje vigora a concentração monopólica da mídia. Diversidade se
assegura, sobretudo, com políticas e providências públicas que,
refletindo anseios sociais, valorizem a comunicação como direito humano e
contribuam para deter a oligopolização da produção simbólica. Isso
implica, necessariamente, a definição, a aplicação e a vigência de
mecanismos democráticos de regulação, de universalização de acessos, de
proteção do patrimônio cultural intangível, de descentralização das
fontes informativas e de usos educativos e comunitários das tecnologias.
* Desenvolvo e amplio questões abordadas neste artigo no meu livro Mídia, poder e contrapoder: da concentração monopólica à democratização da informação, em parceria com Ignacio Ramonet e Pascual Serrano. O livro será lançado pela Boitempo Editorial até 15 de abril próximo.
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Dênis de Moraes é
doutor em Comunicação e Cultura pela UFRJ, pós-doutor pelo Consejo
Latinoamericano de Ciencias Sociales (CLACSO, Argentina) e professor
associado do Departamento de Estudos Culturais e Mídia da UFF. É também
pesquisador do CNPq e Cientista do Nosso Estado da FAPERJ.
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